09 out, 2025 - 06:11 • Ana Catarina André
Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, considera que os problemas na área da saúde em Portugal se devem, sobretudo, a uma questão de organização e menos a uma falta de meios.
“Ao longo de décadas, o sistema de saúde foi evoluindo através da presença de novos atores, sem que tenhamos sabido antecipar essas mudanças e tenhamos sabido organizar essas mudanças de maneira a que elas se traduzam sempre naquilo que é mais importante: sermos capazes de tratar os nossos concidadãos da melhor maneira possível”, diz a antiga ministra da Saúde, chamando a atenção para a necessidade de haver um esforço para que os profissionais se sintam mais realizados e não tenham necessidade de emigrar.
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Em entrevista à Renascença, a propósito do Dia Mundial da Visão que se assinala esta quinta-feira, Leonor Beleza fala sobre a investigação desenvolvida pela fundação que dirige e a complementaridade entre os setores público e privado. Diz, ainda, esperar que o atual contexto internacional não limite a mobilidade global de cientistas.
A Fundação Champalimaud atribui anualmente o maior prémio na área da visão, no valor de um milhão de euros. Atendendo a que as neurociências e o cancro são centrais na investigação que a fundação desenvolve, este prémio é uma maneira de chegar a mais uma área? Foi assim que foi concebido?
Aquilo que fazemos na fundação também se relaciona com a visão. Porquê? No corpo humano tudo se relaciona, e nós somos uma instituição de investigação sobre ciências da vida. As duas áreas em que trabalhamos aqui dentro são as neurociências e o cancro e qualquer delas tem a ver com a visão. As neurociências têm a ver com o estudo do cérebro. Cobrem aquilo que em termos médicos se chama neurologia e psiquiatria e têm, sobretudo, a ver com o modo como o cérebro funciona. Ora, nós vemos com o cérebro e, portanto, o cérebro tem tudo a ver com a visão. Por outro lado, o cancro também tem, porque há cancro em áreas relacionadas com a visão.
Portanto, nenhuma destas áreas que nós trabalhamos aqui é completamente distante da ideia de visão. Em todo o caso, centrado na visão, o que fazemos é a atribuição anual do Prémio António Champalimaud de Visão que, de certa maneira, celebra o nosso fundador e a pessoa dele de uma maneira mais direta. A ideia é cobrir tudo aquilo que tem a ver com a visão e, por isso, vai muito para além das questões exclusivamente ou diretamente relacionadas com a oftalmologia. Na verdade, o prémio que temos vindo a atribuir já foi várias vezes para neurocientistas.
De cada vez que fazemos escolhas, tentamos situar-nos em torno da ideia que referiu: o que é que António Champalimaud faria?
Disse numa entrevista que a equipa da fundação gasta um tempo considerável a tentar perceber o que é que António Champalimaud faria se estivesse aqui. Neste momento, para onde é que caminha a fundação?
Somos uma fundação criada por ele, com aquilo que produziu, que tinha. Nos termos da lei, um criador de uma fundação tem o direito de determinar para que é que ela serve, o que é que vai fazer, em que áreas. Ele foi muito parco em instruções. Simplesmente escreveu no testamento que a fundação se destina a apoiar a pesquisa científica na área da medicina. É a expressão exata que usou e isto é muito amplo e, como é muito amplo, quis deixar à equipa a escolha das áreas, das regras fundamentais. Deixou isso à equipa que dirige a fundação, deixou-me concretamente a mim, em conjunto com o Dr. Daniel Proença de Carvalho, também nomeado no testamento dele, como a pessoa que comigo determinaria as regras principais.
De cada vez que fazemos escolhas, tentamos situar-nos em torno da ideia que referiu: o que é que António Champalimaud faria? O que é que escolheria? O que é que apreciaria que fizéssemos? Nós entendemos que temos uma obrigação ética de pensar nesses termos e fazemo-lo muitas vezes. António Champalimaud era um criador, um industrialista e um financeiro, mas sobretudo criou coisas que não tinham sido criadas até então, e fez coisas que, na altura, se pensava que eram difíceis de fazer em Portugal.
Por outro lado, era um homem profundamente interessado nas consequências, nos resultados daquilo que fazia, e isso tem-nos orientado muito: fazer coisas que não tinham sido eventualmente feitas antes, tentar também inovar e ter a ambição que sempre pensámos que era a dele. A ideia dos resultados, por exemplo, tem muito a ver com o facto de esta fundação fazer investigação científica. A referência que ele faz à medicina, no testamento, fez-nos compreender que queria investigação que se pudesse traduzir em melhor prevenção e tratamento de doenças e, portanto, tivesse resultados também. As escolhas que fizemos e que continuamos a fazer, porque continuamos a fazer escolhas e a tentar fazer coisas que ainda não foram feitas, têm sempre por trás este pano de fundo.
Há planos para alargar a investigação a novas áreas, além das neurociências e do cancro?
Estas duas áreas ainda têm muita investigação [a fazer]. Em relação ao cancro, estamos longe de saber resolver muitos dos problemas. Quando temos de fazer escolhas em relação ao cancro, também escolhemos as coisas mais difíceis. É por isso que temos um centro que está a funcionar, desde o ano passado, completamente dedicado ao cancro do pâncreas, um dos cancros de que se sabe menos, que é menos dominado hoje pela ciência e pela medicina, onde a expectativa de sobrevida quase não se alterou desde os anos 90, ao contrário do que aconteceu com muitos outros cancros.
E nas neurociências?
Este sítio onde estamos chama-se Centro Champalimaud Desconhecido. Costumo dizer que o desconhecido de que andamos à procura está dentro de nós e ainda é larguissimamente desconhecido. O cérebro ainda é larguissimamente desconhecido, tal como as doenças que ligamos mais diretamente ao cérebro. Vamos pensar no Alzheimer ou mesmo noutras [doenças]. Há muito ainda para saber e, portanto, por enquanto, estamos sobretudo a pensar nessas e é no interior dessas que estamos a fazer coisas novas e diferentes, sobretudo no cancro do pâncreas.
Temos, neste momento, uma área nova de abordagem das questões das neurociências, menos em termos de ciência fundamental, como temos sobretudo feito até agora, e mais em termos de neurociências, neurociência humana. Temos, neste momento, uma parte destinada ao estudo da neurociência humana, com uma parte muito importante também de clínica, quer em neurologia, quer em psiquiatria e estudando terapêuticas novas, nomeadamente terapêuticas de tipo digital para tratar doenças neurodegenerativas. Portanto, doenças que ligamos ao cérebro. As nossas áreas de evolução mais recentes são o pâncreas de um lado, e as terapias digitais para doenças neurodegenerativas, mais do lado das neurociências. Infelizmente para a humanidade ainda há muitíssimas coisas quer de um lado, quer do outro que não são sabidas. Na visão, temos o prémio Champalimaud de visão, mas também há alguma investigação aqui feita diretamente.
De que se trata?
Temos um laboratório que tenta caminhar no sentido de terapêuticas que nós chamamos "low cost" em áreas ainda caríssimas, em que a ciência já sabe alguma coisa, aquilo que se faz com terapia gênica em relação a doenças dos olhos. Aliás, já atribuímos um dos Prémios Champalimaud de Visão para a primeira aplicação de terapia desse tipo, mas ainda custam tanto que não é sequer imaginável estender esse tipo de terapias.
Mas em compensação faz sentido tentarmos perceber como é que essas terapias podem ser substituídas, usando a ciência que é conhecida por meios do ponto de vista técnico que não custem valores tão impossíveis. Temos um laboratório a fazer isto, portanto, investigação em "low cost" terapia gênica para doenças dos olhos, trabalhando em conjunto com parceiros nossos que estão na Índia.
Recebemos e precisamos muito de receber financiamento de outro tipo, puramente filantrópico, como aquele com que fizemos o centro do cancro do pâncreas
Falava da necessidade de explorar o desconhecido, mas há também uma aposta em colmatar uma falha no investimento público nestas áreas?
De certa maneira, todos os que trabalhamos em investir em ciência trabalhamos para um objetivo comum. Não é tanto porque o investimento público precisa de ser colmatado, mas porque acreditamos, e era nisso que o nosso fundador acreditou, que valia a pena também investir em termos privados, numa fundação privada com um objetivo que é comum a todo o sistema de investigação: descobrir maneiras novas, conhecimento que ainda não existe no sistema científico e ao mesmo tempo prevenir e tratar doenças melhor.
Há digamos uma tarefa comum, interesses comuns ou missões comuns, mas o objetivo quer do sistema público, quer das entidades privadas que investem em ciência é o mesmo ou é muito próximo um do outro. Temos maneiras diferentes de lá chegar e funcionamos com instrumentos que de alguma maneira são diferentes, mas diria que em áreas como esta, tudo o que seja investir para conseguir conhecer melhor e tratar melhor é bem-vindo.
Nós aqui funcionamos com o nosso património financeiro e com aquilo que obtivemos dele. Funcionamos com as nossas próprias atividades e recorremos a toda a espécie de financiamento exterior. Existem sistemas estabelecidos de financiamento da atividade científica quer em Portugal, quer na Europa, quer noutros países e nós temos, do ponto de vista da nossa organização, gente especializada em saber como é que se vai atrás de financiamento. Recebemos e precisamos muito de receber financiamento de outro tipo, puramente filantrópico, como aquele com que fizemos o centro do cancro do pâncreas – 50 milhões que nos foram doados por um casal espanhol – e a investigação que estamos a fazer no cancro do pâncreas, também, com mais 50 milhões de euros que nos estão a ser dados por um casal alemão. Portanto, tudo o que venha por este tipo de via é preciso.
Enfim, ouvimos falar dos investimentos extremamente importantes que têm vindo a ser canalizados para este tipo de fins em Portugal, com coisas que nós aqui conhecemos, mas também no mundo, nomeadamente muitas vezes estas coisas começam com as enormes fundações nos Estados Unidos e também no Reino Unido. Na Europa continental há menos tradição disto, há muito a ideia de que o Estado faz as coisas. Felizmente essa ideia está a ser alterada, mas quer no Reino Unido, quer nos Estados Unidos, há uma tradição forte de filantropia a que nós aqui, na fundação, também estamos completamente abertos a recorrer sempre que queiram aproximar-se de nós com esse objetivo.
Tenho a impressão que o nosso país está a revelar-se atrativo para pessoas que venham de outras latitudes, muitas delas muito qualificadas
De forma geral, Portugal tem dificuldade em atrair mão de obra qualificada, refiro-me sobretudo a cientistas. A fundação é uma exceção à regra?
Não sei se é uma exceção à regra. Tenho a impressão que o nosso país está a revelar-se atrativo para pessoas que venham de outras latitudes, muitas delas muito qualificadas. Nós sempre funcionamos, tanto na parte de investigação como na parte clínica, com pessoas que vêm de muitos outros sítios. Isso para nós, desde o princípio, um fator muito relevante. Trazem novos saberes, novas culturas, novas maneiras de olhar para as coisas, porque a própria interação entre gente proveniente de latitudes diferentes é, na minha convicção, mais fecunda, mais interessante e isso para nós é tão importante que temos na porta da fundação as bandeiras de toda a gente que trabalha connosco, porque gostamos de mostrar que somos uma casa onde convivem pessoas não apenas vindas de áreas científicas e de formação muito diferentes, mas também de geografias muito diferentes.
Quando queremos muito que alguém muito qualificado venha trabalhar connosco convidamos essa pessoa a vir aqui à fundação, para ver o que é que fazemos, como é que trabalhamos e tentamos convencê-la a trabalhar connosco. Muitas vezes temos tido bastante sucesso.
É preciso um esforço aqui, como noutras áreas, para que os portugueses se sintam mais realizados no seu país
Por outro lado, há portugueses que querem trabalhar na área da ciência e que acabam por emigrar. Alguns fazem-no, como dizia neste mercado global, porque querem; outros por falta de investimento, falta de condições de trabalho em Portugal que os obriga a procurar outras oportunidades fora do país.
No mundo da ciência as fronteiras tendem a esbater-se, porque as pessoas que habitam esse mundo estão habituadas a ler as mesmas revistas científicas, a ir a encontros científicos, a um relacionamento muito intenso entre os laboratórios que fazem investigação em várias partes do mundo e é assim que as coisas progridem e tem de ser assim. É por isso que é tão importante, para nós, termos aqui dentro pessoas que vêm de outros sítios e que têm outras experiências.
É claro que Portugal é de certa maneira um país com meios relativamente limitados em termos de laboratórios e de sítios onde as pessoas podem trabalhar, mas também julgo que é extremamente importante para os nossos cientistas andarem por outras latitudes, durante as fases da sua carreira. No mundo da ciência, isso é normal. Não devemos, do meu ponto de vista, nem olhar para os portugueses que vão para outros sítios, nem para os estrangeiros que vêm para aqui, simplesmente como movimentos de emigração e de imigração.
As coisas são mais complexas. Mesmo quando estão aqui a trabalhar os portugueses e todos os outros mantêm uma intensa colaboração com os laboratórios de onde vieram, com os laboratórios onde o mesmo tipo de estudos é feito. Nas candidaturas a grandes financiamentos fazemos isso com investigadores de outros países. Isso são movimentos normais.
Não estou a tentar ignorar com isto que em Portugal temos problemas em relação a profissionais de certas áreas por eles, porventura, não encontrarem uma satisfação suficiente aqui e tenderem a emigrar. Agora não estou tanto a falar de cientistas, mas de profissionais de saúde – isso está a acontecer mais do que aquilo que nós precisaríamos. É preciso um esforço aqui, como noutras áreas, para que os portugueses se sintam mais realizados no seu país. Eu não ignoro que isso aconteça, mas no mundo científico, considero normal que venham dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Alemanha, ou de outro sítio qualquer trabalhar aqui, que estejam connosco uns tempos e que ao fim desse tempo queiram regressar, tal como outras pessoas estão a vir de outros sítios também para trabalhar connosco.
Faz parte.
São mundos onde o convívio entre pessoas de países diferentes e de origens diferentes é normal, é corrente, é desejável, acontece e nós, como lhe disse, de certa maneira exibimos essa componente do nosso trabalho com as bandeiras de toda a gente na nossa entrada. Isso está a acontecer não apenas no mundo científico, mas também na nossa parte clínica, com uma colaboração muito intensa com gente que vem de outros sítios. Espero que os tempos que correm não limitem a nossa capacidade de viajar para outros sítios neste tipo de atividades e de receber pessoas que vêm de outros sítios.
Julgo que as questões têm muito mais a ver com a organização do sistema de saúde português do que com outros fatores
Referiu a questão dos problemas dos profissionais de saúde. Falando de Portugal, por exemplo do caso dos médicos, parece-lhe tratar-se de uma questão de oportunidades a que têm acesso ou do número de médicos que formamos todos os anos?
Bom, haverá muitos fatores que interferem nestas coisas, mas é conhecido, e Deus me livre de estar aqui a não ser capaz de olhar para a realidade, é conhecido que estamos com dificuldade de profissionais em muitas áreas e nomeadamente em áreas médicas. Julgo que as questões têm muito mais a ver com a organização do sistema de saúde português do que com outros fatores. Julgo que, ao longo de décadas, o sistema de saúde foi evoluindo através da presença de novos atores, sem que tenhamos sabido antecipar essas mudanças e tenhamos sabido organizar essas mudanças de maneira a que elas se traduzam sempre naquilo que é mais importante: sermos capazes de tratar os nossos concidadãos da melhor maneira possível.
Julgo que há aí um problema da organização do sistema. Não é só um problema de se há profissionais a menos ou a mais. Se olharmos para os números globais nem sequer se consegue detetar propriamente que estejamos muito carecidos de profissionais, se os compararmos com outros países. Julgo que o problema tem muito mais a ver com a nossa organização interna, dos meios que temos.
Este mês vai receber o prémio Árvore da Vida, que destaca a “autenticidade e o compromisso que nortearam o seu projeto de vida no sentido do humanismo cristão”. É assim que olha para a sua vida?
Foi uma enorme surpresa e constitui uma grande honra que se pense em mim como merecedora de um prémio com esse tipo de objetivo. Julgo que tem tudo a ver com a minha vida e com a maneira como olho para a sociedade e para a maneira como nos devemos relacionar uns com os outros.
De certa maneira, quando lhe disse que o sistema de saúde o que devia era olhar para os cidadãos e para as necessidades deles, não estou a pensar só em questões de carácter técnico. Estou a pensar noutro tipo de questões que têm a ver com a solidariedade, com o modo como olhamos uns para os outros como sociedade, como é que nos tratamos e o que é que achamos que é mais importante. Acho que essas coisas terão a ver com aquilo que terão visto em mim. Para mim [este prémio] é uma honra e uma enorme surpresa.