24 jan, 2025 - 06:30 • Filipa Ribeiro
Foi o primeiro a ser ouvido e agora regressa para ser o último. António Lacerda Sales vai esta sexta-feira à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas depois de ter sido, por mais que uma vez, apontado como o autor do pedido para a marcação da primeira consulta das crianças que acabaram por ser tratadas a uma atrofia muscular espinal com um dos medicamentos mais caros no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Há o risco de, como na primeira audição em junho do ano passado, o antigo secretário de Estado da Saúde rejeitar responder a várias questões sobre o caso por ser arguido no processo judicial que decorre em paralelo.
Na primeira audição, Lacerda Sales não confirmou se autorizou ou não a sua secretária pessoal a enviar um email com o pedido de consulta para o Hospital de Santa Maria. Disse apenas que já tinha assumido responsabilidades políticas.
É o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que faz referência a um pedido feito pela Secretaria de Estado. A auditoria feita no Hospital de Santa Maria também conclui que a referenciação para a marcação da primeira consulta teve origem na Secretaria de Estado liderada por Lacerda Sales.
Nessa primeira audição, o ex-governante referiu ainda nunca ter falado com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o caso, mas confirmou ter tido uma reunião com o filho do chefe de Estado – Nuno Rebelo de Sousa. Encontro sobre o qual não quis dar pormenores.
Apesar das respostas curtas, a tese de que o pedido de consulta para as gémeas foi feito através de uma ordem do então secretário de Estado foi mais que uma vez reforçado por quem partilhava o gabinete com Lacerda Sales e por quem estava do outro lado a trabalhar no Hospital Santa Maria.
A antiga secretária de Lacerda Sales, Carla Silva, foi a primeira pessoa a ser clara de que houve ordem do então secretário de Estado da Saúde para se contactar o Santa Maria.
Carla Silva foi a primeira a culpar Lacerda Sales, sublinhando que o ex-governante lhe deu ordens para pedir os dados clínicos das crianças a Nuno Rebelo de Sousa e a encaminhá-los para o Hospital de Santa Maria.
Caso das Gémeas
A diretora de Pediatria do Santa Maria diz que tel(...)
Também o chefe de gabinete de António Lacerda Sales, que acompanhou de perto o trabalho do ex-secretário de Estado da Saúde, deu a entender na Comissão Parlamentar de Inquérito que houve mais do que uma reunião entre Lacerda e o filho de Marcelo Rebelo de Sousa e esclarece que uma secretária nunca teria autonomia para marcar consultas. Tiago Gonçalves disse que só via uma pessoa com responsabilidades para o fazer - “um membro do Governo”- ou seja, Lacerda Sales.
Já Marta Temido, a antiga ministra da Saúde que tutelava o secretário de Estado, disse que soube do caso pela comunicação social e que, quando tornado público, teve conversas com Lacerda Sales numa fase inicial, optando por manter a distância dizendo que se preservam uns aos outros.
Já numa fase avançada das audições vários profissionais do Santa Maria confirmaram a influência do ex-secretário de Estado.
A diretora do serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria assegurou ter recebido o contacto telefónico de Carla Silva - secretária pessoal de Lacerda Sales. Ana Isabel Lopes confirmou que lhe foi indicado que o pedido estava a ser feito a mando do ex-secretário de Estado da Saúde. Uma situação que considerou "atípica".
Ana Isabel Lopes acabou por falar com o diretor clínico do hospital, que autorizou a marcação da consulta, e confessou que não se sentiu "confortável" com o pedido.
Outra audição onde se afirmou a influência do ex-secretário de Estado foi a de Teresa Moreno – a médica que tratou as crianças. No Parlamento, assumiu que o pedido a “irritou um pouco”.
Teresa Moreno disse que recebeu um telefonema da diretora do Departamento de Pediatria, com uma instrução do diretor clínico do hospital a dizer que tinha que marcar uma consulta por indicação de Lacerda Sales.
A tese de que existiu pressão externa foi reforçada por outro neuropediatra chamado à CPI. Tiago Proença dos Santos, que redigiu uma carta a contestar o tratamento das gémeas luso-brasileiras, confirmou que foi feita pressão sobre a médica Teresa Moreno para se marcar a consulta.
Já Daniel Ferro, que era o presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santa Maria na época do tratamento das gémeas, admitiu que a lei não foi cumprida na marcação da consulta. Afirmou que "não terão sido cumpridos" todos os requisitos e que não é normal que o Ministério da Saúde, ou a tutela, dê orientações para a marcação de consultas.
Apenas o diretor do serviço de Neuropediatria disse não acreditar que a consulta, em 2019, tivesse sido marcada por Lacerda Sales. António Levy Gomes acredita que pode ter sido a secretária. "Eu acredito na palavra do [antigo] secretário de Estado. Disse-me a mim que não tinha marcado a consulta".
Também Ana Paula Martins, atual ministra da Saúde que ocupava o cargo de presidente do conselho de administração do Santa Maria em 2023 quando o caso se tornou público num trabalho da TVI/CNN, diz que não encontrou evidências e interferência de Lacerda Sales ou até mesmo do Presidente da República, no entanto, recordou que a auditoria feita ao hospital concluiu que houve uma referenciação para a consulta das crianças da Secretaria de Estado da Saúde.
O Presidente da República continua a deixar tudo em suspenso ao não confirmar se quer responder aos deputados. Por duas vezes, Marcelo Rebelo de Sousa disse que ia aguardar pelo final das audições, que terminam esta sexta-feira.
Também o filho, Nuno Rebelo de Sousa, pouco contribuiu com a sua audição logo no arranque dos trabalhos desta CPI, uma vez que ficou quase sempre em silêncio.
Mas apesar de não haver resposta, muito se falou da alegada influência do Presidente da República, uma vez que houve um contacto do filho para Belém a pedir ajuda com o caso.
Na última audição em que foi inquirida Sandra Felgueiras - jornalista que divulgou o caso - foram deixadas dúvidas sobre o silêncio e a forma como ser comportou o chefe de Estado perante o caso.
A jornalista defendeu que as gémeas receberam em Belém um tratamento diferente de todos os outros pedidos. "Em nenhum outro caso o Presidente da República pediu que fosse uma assessora a tratar pessoalmente do assunto, em nenhum outro caso uma assessora liga para hospitais a pedir o que se passa", disse.
E apesar de os profissionais do Santa Maria terem confirmado só rumores sobre "as meninas do Presidente", foram muitos os inquiridos que não encontraram provas de uma influência da Presidência no processo.
Desde logo o técnico responsável pela auditoria interna no Hospital de Santa Maria ao caso das gémeas garantiu nunca ter encontrado registos sobre uma possível influência de Belém. António Almeida disse que foram encontrados apenas os registos sobre a Secretaria de Estado da Saúde.
Dos que na altura estavam a trabalhar no Palácio de Belém, tanto o chefe da Casa Civil, como a assessora para Assuntos Sociais e Comunidades negaram tratamento preferencial neste caso.
O chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, confessou ter sido desconfortável por tratar de um pedido do filho do Presidente, mas garante que não existiu um tratamento diferente e contou na audição que o email enviado pelo filho a Marcelo foi encaminhado para a Casa Civil, com a indicação de que o caso fosse avaliado pela assessora Maria João Ruela, que pediu mais detalhes a Nuno Rebelo de Sousa, um método que usou com outros casos que chegaram a Belém.
Na audição mencionou, no entanto, vários emails trocados com o filho do Presidente, sendo que num último lhe terá dito que o SNS iria cobrir em primeiro lugar doentes que residissem em Portugal. No final, terá remetido o assunto para o gabinete do primeiro-ministro - omitindo que o remetente do pedido era Nuno Rebelo de Sousa.
Quanto ao gabinete de António Costa não terá dado pelo assunto por ter reencaminhado o processo para a tutela da Saúde.
Também Maria João Ruela, a assessora que tratou do caso, assegurou que não houve tratamento de excecionalidade e que o próprio filho de Marcelo "lamentou a minha inação". a assessora assegurou não ter contactado o Santa Maria referindo, sem certezas, que a fazer um contacto foi para o Hospital D. Estefânia.
Pela CPI passou ainda o antigo consultor para a saúde da Presidência, Mário Pinto, que garantiu "não ter nada a ver com o assunto" e que soube do caso pelos jornais, afirmando que a Presidência é um "local de muitos segredos".
Apenas um ponto ficou claro nas audições na CPI ao caso das gémeas: a atribuição da nacionalidade portuguesa às crianças cumpriu todos os requisitos.
Esta sexta-feira, no Parlamento, volta a ser ouvido António Lacerda Sales e nas próximas semanas a deputada do Chega, Cristina Rodrigues, fica responsável de redigir o relatório desta Comissão Parlamentar de Inquérito. Relatório que será depois votado na CPI e levado a plenário na Assembleia da República.