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Entrevista Renascença

Thomas C. Bruneau. De turista americano no 25 de Abril a especialista na democracia portuguesa

27 mar, 2025 - 19:07 • José Pedro Frazão

Professor emérito de Segurança Interna na Escola de pós-graduação Naval da Marinha dos Estados Unidos, Thomas C. Bruneau trabalhou para o governo americano até 2013. Fez doutoramento sobre a relação entre a política e a Igreja Católica no Brasil e, quando começava a preparar o mesmo estudo em relação a Portugal, a Revolução de Abril encaminhou o seu estudo para as relações partidárias nos primeiros anos da democracia portuguesa. Em entrevista à Renascença, em português, este norte-americano recorda personalidades que entrevistou como Guterres, Marcelo ou Eanes mas também Carlucci e Soares. E alerta para os sinais de fraqueza da sociedade civil que emergem da presença de militares na política.

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Atende-nos o telefone na Califórnia, antes de viajar para Portugal, onde lança esta semana a versão portuguesa do livro de 1986 “A política no Portugal Contemporâneo: os partidos e a consolidação da Democracia”, de que é coautor com Alex Mac Leod. Em português, com o inevitável gerúndio de quem começou pela sociedade brasileira, Thomas C. Bruneau foi largando gargalhadas na entrevista à Renascença – “as suas perguntas não são muito fáceis” – como se a memória do que assistiu há 40 ou 50 anos em Portugal viesse quase de tão longe como a sua América de hoje, de Trump, se parece posicionar face à Europa.

No dia 25 de Abril estava em Évora. O que é que estava a fazer em Portugal?

Turismo. Naquela altura eu morava em Montreal, no Canadá. Sabe, o inverno no Canadá é terrível, dura seis meses. Ganhei algum dinheiro para viajar com a minha esposa e os meus dois filhos para Portugal. Não vim com uma bolsa de estudos ou com a finalidade de estudar, apenas para passear com a minha família por Lisboa, Algarve, Évora, Nazaré. Foi totalmente por acaso que eu estava aí nessa altura. Claro que aproveitei depois. Tive a sorte e a oportunidade de estudar e acompanhar um processo que já sabia naquela altura que seria muito importante.

Mas já tinha estado cá em lua-de-mel, em 1966.

Exatamente. Voltei em 1973 com uma bolsa de estudos realmente para estudar sobre a Igreja e política em Portugal. Mas nessa outra viagem, em 1974, vim totalmente em turismo.

E como é que soube do golpe militar?

Estava na Pousada, em Évora, se não me engano. A Rádio Renascença já existia naquela altura. Tomei conhecimento pela rádio ou pela televisão. Mas, de repente, passámos por várias ruas que estavam cheias de carros blindados e tanques, etc. Soubemos rapidamente que a situação ficava diferente de um dia para outro.

E depois continuou em Portugal, nesses dias seguintes?

Évora é perto de Espanha, como sabe. Quando o golpe aconteceu, pensei que isso poderia acabar muito mal para a minha família. Pensei em levá-los para a Espanha, mas, de repente, vi que este grupo de capitães não era assim [ameaçador]. Então, mandei a minha família de regresso para o Canadá, fui para Lisboa onde passei uma semana a assistir, falando e aprendendo com a situação.

Até ao 1.º de Maio, certo?

Exatamente. Houve aquela grande manifestação com Álvaro Cunhal. Tenho que ver o meu passaporte, mas acho que fiquei aí até dia 3 ou 4 de maio.

Como é que viu a ação dos Estados Unidos durante este processo? Foi muito debatida a influência do embaixador Carlucci na altura.

Como leu nos trabalhos de Kenneth Maxwell, Kissinger pensava que o Mário Soares seria um Kerensky [líder revolucionário russo], que tudo estaria perdido. Conheci Carlucci e fiz entrevistas com várias pessoas de embaixada naquela altura. Carlucci realmente fez um grande trabalho ao convencer Kissinger - que naquela altura mandava na política externa dos Estados Unidos - que nem tudo estava perdido. Depois eu fiz entrevistas no Banco Mundial, etc. Eles decidiram apoiar Portugal durante esta situação difícil.

E depois esteve na embaixada em Lisboa, onde abordou a importância dos Açores, para a relação entre os dois países, certo?

Tudo naquela altura aconteceu no contexto da NATO, nada disso é segredo. Os Açores foram bastante importantes para os Estados Unidos, para a NATO saber onde estavam os submarinos russos com capacidade nuclear.

Mais tarde, quando estava na embaixada em Lisboa em 1992, foi interessante quando um submarino americano teve um problema e teve que se levar alguém de helicóptero para um hospital, e foi necessário obter a autorização de Portugal para fazer alguma coisa naquele contexto, o que mostra, até um ponto, algum poder de Portugal em tudo isso.

50 anos depois do 25 de Abril, Portugal tem um debate sobre o possível regresso de um militar à Presidência da República. O senhor estudou as relações entre os militares e o poder civil. Não estamos a voltar à história que existiu desde sempre, ou seja, a ligação cíclica dos militares à política de uma forma direta ou indireta?

É uma pergunta que exige bastante pensamento. Num centro de estudos de relações civis-militares fiz programas de pequenos cursos em 44 países. A minha conclusão é que uma democracia onde os militares têm muito poder é complicadíssima. O militar tem força, tem armas, tem capacidade de organização, tem, em vários países, uma história de envolvimento na política.

Uma democracia real - e penso muito nisto aqui no meu país agora também necessita realmente de uma sociedade civil ativa, de partidos políticos que representam o povo, grupos de interesse, etc. E não uma instituição, seja a Igreja, seja militar, porque tem demasiado poder, olhando para o balanço de vários tipos de poderes. Até ao fim da primeira Administração Trump, escrevi sobre o papel do Estado-Maior dos Estados Unidos, que realmente tentou manter uma posição de neutralidade, que é muito difícil. Muita gente neste país estava à espera de um envolvimento maior das nossas forças armadas.

No contexto português, por exemplo, escreve no seu livro que os militares, por terem sido os autores do golpe de Estado de 25 de Abril, apesar de o poder ter transitado para a esfera civil, conservaram o seu prestígio. Ou seja, eles permanecem na imagem da sociedade como uma reserva do próprio país. A participação dos militares é sinal de que o poder civil pode não estar a fornecer personalidades políticas suficientes para as tarefas que a democracia consolidada exige?

Há dois problemas aí, na minha maneira de ler a história. Por um lado, quando uma parte das forças armadas entra na política, cria dificuldades com outros ramos das forças armadas o que as divide e enfraquece também. Foi uma das razões pelas quais as forças armadas do Brasil quiseram sair do poder na época de 70, porque viram que a capacidade das forças armadas da Argentina era muito fraca, por estarem demasiado involucradas no poder.

Há outro aspeto. Se o povo civil, se a gente normal está à espera de alguém que chegue e resolva todos os problemas do país, é uma maneira dos civis não fazerem o que devem fazer para governar, para agir, para mobilizar, para fazer o que deveriam fazer. Falo sobre o que eu estou a ver no meu país e noutros países, não só sobre Portugal.

Mas a ideia dos "militares acima dos partidos" é também uma das conclusões que justifica o papel que teve Ramalho Eanes na Presidência. Na conclusão do seu livro de 1986, lembra que a Presidência é o ponto de convergência para todos os partidos e, portanto, é uma personagem central no sistema político português.

Fiz uma entrevista a Ramalho Eanes e penso que a sua decisão de sair da política, quando saiu, foi bastante importante para estabilizar o regime democrático no país. Porque tinha naquela altura tanto prestígio que poderia ter-se mantido ele mesmo no poder por mais tempo. A meu ver, isso seria mau para o país.

Outra questão que aborda é a dimensão pessoal que sempre desempenhou um papel na cultura política portuguesa. Pode dar-nos alguns exemplos?

Os mais recentes naquela época eram Álvaro Cunhal, Mário Soares e Balsemão. Quando tento explicar a História de Portugal para outras pessoas, nos Estados Unidos e outros países, quando um povo durante mais ou menos 50 anos não teve capacidade ou possibilidade de participar, explico que depois do 25 de Abril, os políticos devem ser vistos como jogadores de futebol. Quer dizer, há alguém muito importante numa posição, outro noutra posição, como os mais famosos jogadores hoje em dia de Portugal, Argentina ou França, por exemplo.

Só pouco a pouco o povo português foi assumindo um entendimento dos políticos diferentes face aos jogadores do futebol. Mas continuam focados sobre algumas pessoas bastante em destaque. Eu acho bem, até um ponto, mas mal depois, porque personaliza demasiado a política, a meu ver.

Na preparação dos estudos, teve quatro partes que contou também com a participação de vários especialistas que vos ajudaram a entender os desafios portugueses. Inclusivamente, entre eles, estava António Guterres, que hoje é secretário-geral das Nações Unidas. Como é que ele vos ajudou também neste estudo?

Naquela altura, Guterres, como Mário Mesquita e outros que colaboraram connosco, estavam ainda à procura de um futuro. Naquela época, muitos voltaram dos outros países, foi uma confusão na economia, etc. Era gente ligada a um centro de desenvolvimento onde participámos. Estavam disponíveis para colaborar connosco e escrever alguns textos para nós, que incluímos mesmo nos dados no livro, sem citar os seus nomes, porque apenas utilizámos partes dos trabalhos.

Num dos estudos sustentam que os portugueses, depois do 25 de Abril, sublinhavam a importância da liberdade, mas também sinalizavam muita preocupação em relação à economia. E no livro até se questionava se o descontentamento com a situação económica poderia ser dirigido contra o regime. Atualmente, o descontentamento económico também está ligado em Portugal à ascensão de novas forças populistas, até de extrema-direita, que não existiam como tal, com tanta força, naquela altura em Portugal. Como é que foi interpretando este crescimento à direita do sistema político português?

É difícil de entender como a economia funciona no mundo inteiro. O povo mora na realidade de cada dia. Então, é muito fácil culpar os governantes por um problema de inflação ou outro qualquer. E aparece alguém, como aqui no meu país, que diz que vai resolver tudo. Para pessoas que não sabem muita coisa, é fácil acreditar nisso.

Falando com muitos dos meus amigos aqui, pergunto como é que o senhor Trump é presidente. Porque é que muita gente neste país acredita nele? Isto não acontece só em Portugal, mas noutros países também.

Mas como viu a passagem em Portugal do Estado Novo para a Democracia? Muitos apoiantes do antigo regime de Marcelo Caetano e de Salazar foram-se integrando, de certa maneira, no processo social e político com os partidos existentes, eventualmente mais à direita.

Estou a rir um pouco, porque encontro-me com algumas dessas pessoas. Eu morava no Canadá naquela altura. Havia muitas pessoas que tinham bancos, etc. em Portugal, que estavam ali a tentar ganhar a vida. Mas quando se tem eleições e toda essa máquina da democracia, não acredito que essas pessoas com antigos títulos e fortunas tenham muito a oferecer. Talvez já ganhando dinheiro, pudessem comprar um jornal, uma estação de rádio, etc. Como americano, vindo de um país que nunca tinha uma nobreza, é difícil para mim entender como essas pessoas poderiam realmente ganhar alguma influência política.

Mas, socialmente, as corporações do Estado Novo transferiram-se para a democracia portuguesa?

Sim, em algum sentido. Como sabe, Samuel Huntington escreveu o seu livro sobre a "terceira vaga. Não foi só Portugal, mas também a Espanha, a Roménia, a Hungria, etc., que evoluíram para outra forma de governo. Atualmente, esta forma de governo está a ser questionada, mas, ainda assim, assume-se que a democracia, de um tipo ou outro, vai continuar. De vez em quando, a esquerda ganha, outras vezes, a direita. Mas, esperamos que “o jogo” continue. Há muita preocupação agora sobre isso no meu país, mas acredito que vai continuar de uma maneira ou outra.

Quando olhamos para o livro que escreveu, e olhamos, por exemplo, para a avaliação que os portugueses faziam dos governos em 1984, dez anos depois da Revolução do 25 de Abril, quando os portugueses respondiam sobre que governos ou regimes que melhor governaram o país, o mais votado era Marcelo Caetano. E Salazar tinha 11%. Portanto, já em democracia, 35% consideravam que os melhores governos estavam no Estado Novo.

Uma coisa é pensar sobre o passado e ter alguma perspetiva positiva sobre a falta de crime, o Ultramar, etc. Outra coisa é tratar do dia-a-dia, ganhando a vida com inflação, com liberdade de imprensa para mostrar todos os problemas atuais, etc. É uma certa maneira de pensar, é um ‘romanticismo’ do passado, culpando o dia-a-dia atual e compensando com o passado mais ou menos glorioso. Mas não é apenas em Portugal, isso acontece noutros países também.

Em Portugal, hoje há um debate sobre a descolonização e também em relação ao histórico dos Descobrimentos. Afinal, na sua perspetiva, como é que foi feita a descolonização?

Tive a oportunidade de visitar Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e outros países descolonizados da França e da Inglaterra. É uma situação que nunca é como gostaríamos que fosse. Na situação de Portugal, os militares estavam cansados de lutar no Ultramar e havia o fato da Guiné-Bissau ser dada como perdida. A ideia era sair o mais rápido possível. Era uma situação de fato. Nunca como deveria ser, mas é como é.

À distância de 50 anos, na sua opinião, qual é que era o objetivo de Álvaro Cunhal e do Partido Comunista a seguir ao 25 de Abril, nomeadamente no processo revolucionário?

A meu ver, o Partido Comunista queria conquistar poder, recebendo recursos da União Soviética e outros países. A situação talvez hoje em dia pareça ridícula, mas acho que naquela altura a ideia foi ganhar poder. Era a ideia de um partido leninista.

No seu livro sublinha que o papel da Igreja Católica era limitado já no regime democrático. Como viu essa relação depois do 25 de Abril entre a Igreja e a sociedade?

Estou aqui no meu escritório a olhar para os livros que escrevi sobre a Igreja Católica no Brasil e na América Latina. Fiz o meu doutoramento sobre este tema também, sobre o Brasil. Penso que uma Igreja, sendo a Católica ou outra, trata de arranjar as condições para uma pessoa chegar à Salvação. E todas as situações em que a Igreja está envolvida na política não saem muito bem.

O que uma religião poderá ter é influência e nunca - só em alguns poucos instantes - tem uma situação de poder. É outro tipo de instituição, com outro tipo de justificação, de legitimação. O que me interessou em Portugal naquela altura, foi a diferença entre a situação da Igreja em Portugal e no Brasil. No Brasil, durante o regime militar, depois de 1964, a Igreja foi a instituição mais organizada contra o regime. Mas depois da democracia, é uma religião como quase qualquer outra.

Nas suas entrevistas a todas as personalidades políticas que conheceu, alguma personagem o marcou, no sentido de ser alguém que verdadeiramente considerou uma personalidade única, singular, ou verdadeiramente diferente das outras?

Sem pensar no presente, Marcelo Rebelo de Sousa foi realmente único de várias maneiras. Por um lado, ele fala tão rápido que foi quase impossível para mim entender o que dizia. Assisti à dissertação da tese dele na universidade e li os livros dele sobre a Constituição. Ele chamou muito a minha atenção. Cunhal? Nunca fiz uma entrevista com ele. E Mário Soares foi muito político, afinal de contas, e não é para dizer mal dele. Mas Marcelo Rebelo de Sousa foi, na minha perspetiva, especial. E é interessante que ele é Presidente. Nunca tinha pensado sobre essa pergunta. Entrevistei Eanes, por exemplo, um homem bastante inteligente e com muita força de carácter, de acreditar nas suas ideias. Esses dois homens chamaram muito a minha atenção, talvez porque já foram presidentes, não sei.

Chegou a conhecer Sá Carneiro?

Não. Morreu cedo. Gostaria de o ter conhecido.

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