08 mai, 2025 - 06:30 • Salomé Esteves
Se o seu voto tivesse apenas 50% de hipóteses de eleger um deputado, votaria na mesma?
Enquanto este é um cenário longínquo para um cidadão que vote no Porto ou em Lisboa, é o dilema habitual para um eleitor de Portalegre ou dos círculos da emigração.
Já segue a Informação da Renascença no WhatsApp? É só clicar aqui
Se a democracia ensina que os votos são todos iguais, a Matemática desmente: o sistema eleitoral português desperdiça centenas de milhares de votos. Nas legislativas do ano passado, mais de 1,2 milhões de votos não elegeram um único deputado e, este ano, caso os portugueses vão às urnas com a mesma afluência, vamos pelo mesmo caminho.
Mas qual seria a solução? É possível que o sistema eleitoral português, que se segue pelo método de Hondt e tem 22 círculos eleitorais, faça mais uso dos votos?
Na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa há quem acredite que há uma solução matemática para aproveitar estes votos. Ou, pelo menos, mais votos.
Democraticamente, todos os votos são fundamentais para eleger os 230 deputados da Assembleia da República. Se é tão verdade que todos os votos contam, também é verdade que os votos só são desperdiçados a partir do momento em que são contados.
Depois das eleições do ano passado, o professor Henrique Oliveira, coordenador do agregador de sondagens do Instituto Superior Técnico, concluiu que as legislativas de 2024 resultaram em 1 238 760 votos desperdiçados. Matematicamente, há dois tipos de votos que contribuem para este total: os que não elegem de todo e os que restam depois de eleitos os deputados.
No primeiro grupo, Portalegre é o melhor exemplo. “Portalegre só tem dois deputados. A AD teve 14 mil e tal votos e não elegeu nenhum deputado. Portanto, o resultado foi zero e esses 14 mil e tal votos estão imediatamente desperdiçados”, explica o professor Henrique Oliveira.
No fundo, é o que acontece aos partidos mais pequenos do Parlamento – Iniciativa Liberal, Livre, CDU, Bloco de Esquerda e PAN – nos círculos eleitorais com menos de cinco deputados e às forças políticas que acabam por não ter votos suficientes para ter assento parlamentar.
Já o segundo tipo pode ser mais difícil de entender.
Imagine-se que um partido precisava de 15 mil votos para eleger um deputado. Um partido com 15 mil votos tinha um mandato assegurado, mas uma força política com 28 mil votos, elegeria também um deputado, por lhe faltarem dois mil votos para eleger dois. Ou seja, este segundo partido teria 13 mil votos sem representatividade. Na prática, “o resto sobrou. Não serviu para nada”, remata Henrique Oliveira.
Na teoria, qualquer voto de qualquer eleitor pode ser desperdiçado. Mas na prática, há regiões em que o desperdício é maior e há partidos que aproveitam mais os votos.
Enquanto os três maiores partidos – o PS, a AD e o Chega – e os dois maiores círculos eleitorais – Lisboa e Porto – têm cerca de 90% de representatividade de votos, os partidos mais pequenos e os círculos eleitorais com dois deputados – Portalegre, Europa e Fora de Europa – aproveitam cerca de metade dos votos. Em suma, quanto mais pequeno é o círculo ou o partido mais votos vão “para o lixo”.
“Um voto de Portalegre tem menos liberdade de escolha do que um voto de Lisboa. O voto não é todo igual”
“A partir dos 6%-7%, os partidos começam a ter uma espécie de salto quântico e a ter mais aproveitamento dos votos, nomeadamente os partidos que estão muito ligados a áreas urbanas”, como a Iniciativa Liberal ou o Livre, explica Henrique Oliveira.
E finaliza: “Um voto de Portalegre tem menos liberdade de escolha do que um voto de Lisboa. O voto não é todo igual”.
Criar um círculo de compensação na Assembleia da República não é uma ideia nova. Aliás, já foi proposta por vários partidos à esquerda e à direita várias vezes.
Legislativas 2024
A IL propôs um círculo nacional de 40 deputados. S(...)
Mas o que é que isto implica? O Parlamento tem 230 assentos e os deputados que os ocupam são eleitos por eleitores dos 22 círculos eleitorais portugueses. Um círculo de compensação utilizaria uma parte desses assentos para fazer uma distribuição nacional enquanto o resto dos votos era distribuído pelas várias regiões segundo o método de Hondt, que já é utilizado em Portugal. É, por exemplo, o que acontece nos Açores.
Uma investigação de mestrado da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa, de Mariana Fortes, testou dezenas de hipóteses com números de deputados diferentes numa volta de compensação. Por muitas que sejam as particularidades dos números, a resposta foi clara: se Portugal tivesse um círculo de compensação com 10 deputados – o valor mínimo em estudo – o número de votos desperdiçados caía para um terço.
Nas legislativas do ano passado, neste caso, os votos desperdiçados passavam de 1.238.760 (número que parte do estudo do Instituto Superior Técnico coordenado por Henrique Oliveira) para 381.424. Este número cairia ainda mais caso houvesse 20 deputados (279.806) ou 30 deputados (251.458) numa possível volta de compensação.
Por isso, o professor João Telhada, que orienta o estudo que começou meses antes de se saber que Portugal ia a votos outra vez, acredita que, idealmente, uma volta de compensação teria entre 10 e 30 deputados.
Mas a equipa considera que um círculo nacional de compensação também não é a solução perfeita. Afinal, distribuir votos feitos localmente por um círculo de compensação geral pode levar à perda de particularidades regionais que em muito influenciam o modo como as pessoas votam.
Na procura de um meio termo e entre várias opções estudadas, a investigação propõe uma solução dupla: ter uma volta de compensação e distribuir esses mandatos por quatro “mega círculos eleitorais”.
Esta solução combinada "ajuda a diminuir os votos desperdiçados em dois sentidos”: primeiro, pela volta de compensação e, depois, ao “garantir a representatividade regional”, explica o professor João Telhada.
Mas o matemático não deixa de avisar que nenhuma solução estudada resultou em zero votos desperdiçados: “Vamos ter sempre votos que são desperdiçados. Isso é uma inevitabilidade”.
Com o aproveitamento de centenas de milhares de votos, as flutuações acabavam por se sentir na Assembleia da República.
Segundo as contas da equipa de investigação da Faculdade de Ciências, quem perdia mais eram os dois grandes partidos, enquanto os mais pequenos podiam até duplicar o número de mandatos e, no caso do ADN, entrar no Parlamento.
O professor e matemático Henrique Oliveira acredita, por isso, que um círculo de compensação “iria estragar as hipóteses já difíceis e remotas de uma maioria absoluta”. Com uma distribuição dos votos na Assembleia mais semelhante à votação efetiva dos portugueses, seria preciso ter “praticamente de 50% [dos votos] para ter uma maioria absoluta no Parlamento”.
Apesar de os cálculos não darem todas as respostas, o professor João Telhada está confiante que há dois aspetos no voto dos portugueses que se alteravam com um círculo de compensação. Em primeiro lugar, fala de uma possível diminuição da abstenção.
“Se houver uma volta de compensação as pessoas podem ter esta sensação real, baseada em dados, de que vai haver mais representatividade e as pessoas poderão votar mais”, prevê João Telhada.
Depois, acrescenta, há a questão do voto útil. O professor acredita que “se nós tivéssemos este tipo de sistema que que iria aproveitar os votos desperdiçados, ia fazer também com que houvesse transferência do chamado voto útil, tipicamente dos grandes partidos para os pequenos partidos”.
Para já, os matemáticos concordam que podem fazer-se estudos e apresentar as soluções, mas apenas os decisores políticos têm o poder para reformular o sistema eleitoral.