Reportagem Renascença

"Os atuais autarcas fazem de si deuses". Francelina Chambel, uma das primeiras mulheres presidentes de Câmara

06 out, 2025 - 07:30 • Tomás Anjinho Chagas , Beatriz Pereira

É uma das "cinco magníficas", uma das primeiras mulheres a ser eleita presidente de Câmara em 1976. Hoje, assiste a tudo à distância, lamenta o "aburguesamento" e a falta de proximidade dos atuais presidentes de Câmara.

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Francelina tem 91 anos e foi uma das cinco primeiras mulheres autarcas em Portugal
Francelina tem 91 anos e foi uma das cinco primeiras mulheres autarcas em Portugal

Pedimos para Francelina Chambel se apresentar, explicar quem é, o que faz e o que fez. Com um sorriso na cara, responde: "É um bocado complicado, porque a vida já é um bocado comprida, não é?".

Tomara a todos chegar aos 91 anos como os 91 anos chegaram a Francelina Chambel. Ao dia de hoje, os problemas de saúde obrigaram-na a sair do Sardoal - para onde volta sempre que pode -, mas a idade não tira o espírito crítico em relação à sociedade.

Sentada no sofá de sua casa, agora em Cascais, recebe a Renascença com a satisfação - mas sem "vaidade" - de quem deu o que tinha nos 17 anos enquanto presidente da Câmara do Sardoal, entre 1976 e 1993. Parece um percurso normal, mas foi pioneira. Uma das "cinco magníficas", as cinco mulheres a serem eleitas presidente de Câmara nas primeiras autárquicas em democracia e quebrar uma barreira num país recém-saído de uma ditadura.

Na altura, não conhecia a fundo o concelho ribatejano. Nasceu mais acima, em Miranda do Corvo, distrito de Coimbra, e foi através do marido que conheceu o Sardoal. O país vivia em agitação política e preparava-se para as primeiras eleições autárquicas da sua ainda verde democracia.

Eleita inesperadamente

O Sardoal era a terra do marido, iam lá com "muita frequência", mas só "de visita". Surgiu um convite do PS que a deixou "perplexa", candidatou-se sem qualquer expectativa: "Aceitei o convite na esperança de que aquilo não fosse viável, não é?".

"Fomos fazer campanha no escuro e resultou. Alguma vez as pessoas me elegiam? Acabou por acontecer", conta, bem disposta. A vida trocou-lhe as voltas, saiu de Marvila, em Lisboa, onde estava a chefiar uma secção da segurança social, e lá foi para o Sardoal. O resto é história, fez cinco mandatos no concelho.

Na altura não era militante socialista. Mas isso mudou por força de um homem: "Só fui militante passados oito anos, com grandes insistências do Mário Soares, que me apanhou lá no Sardoal numa celebração e disse 'agora assinas aqui o teu nome', e eu lá assinei".

Uma campanha "experimental"

Ninguém sabia muito bem como fazer uma campanha eleitoral: "Era tudo novo", recorda Francelina Chambel. A divulgação de ideias era feita oralmente ou com recurso a um "pequeno prospeto" que iam distribuindo pelos munícipes.

E essa inexperiência generalizada era a mesma na gestão autárquica, depois de vencer as eleições, Francelina Chambel lembra-se de entrar num "edifício depauperado" que precisava de obras "com muita urgência". Faltavam verbas, "só havia dinheiro para pagar aos funcionários".

Uma folha em branco para um autarca: "estava tudo por fazer". Francelina Chambel arregaçou as mangas e começou a fazer o "levantamento do que era necessário". E para o necessário, somente o necessário, era preciso "muito dinheiro", e isso, compreensivelmente, "levou tempo".

"Havia falta de tudo, só através do diálogo é que nós tomávamos conhecimento das necessidades", lembra. Com os anos apanhou-lhe o jeito? "Claro", responde, com o sorriso de volta.

Uma mulher no meio de homens

Quebrar preconceitos era algo que teria de fazer inevitavelmente. Francelina Chambel era uma das primeiras mulheres a mandar em homens no pós 25 de abril "Foi um bocadinho complicado", assume.

A verdadeira complicação não era, ao contrário do que seria expectável, o facto de ser mulher, mas antes o tanto que havia para fazer. "Contrariamente àquilo que se fosse a pensar, os homens não me perseguiam.Tratavam-me como um familiar, deram-me sempre boa colaboração", conta. E remata: "Não tive problemas".

O peso era mesmo o da lista interminável de afazeres. "Era muito trabalho, trabalhava 12, 14 horas por dia, e às vezes ia resolver problemas para casa".

Havia resistência? Claro, mas resistência política. "Tinha oposição, mas fazia o seu papel, e bem", explica, referindo-se ao PSD.

Mais "fairplay" político antigamente

Descreve uma "boa comunicação" com os restantes partidos: "Era engraçado, andávamos bem com toda a gente". Não hesita em concordar que havia mais "fairplay" nessa altura do que hoje em dia, a antiga autarca defende que o país regrediu nesse aspeto.

"Quando eu ouço candidatos dizer que vão trabalhar para aprovar uma lei que permita apenas uma cor no Executivo Municipal, acabou-se a democracia", atira Francelina Chambel.

Quase 50 anos depois de ter sido eleita pela primeira vez, diagnostica o momento atual da política: "Está um bocado confusa, perdeu-se um bocadinho da pureza da política". A antiga autarca socialista refere-se à "perda de ideiais" e lamenta que se tenha passado a olhar para a política "como um meio para atingir qualquer coisa". Não discrimina partidos.

Francelina Chambel adjetiva a política autárquica como "um bocado vilipendiada" e justifica-o com a falta de obra de alguns recandidatos às câmaras. "Fico horrorizada quando oiço alguns autarcas a dizer que não fizeram uma única casa no seu concelho, é altamente chocante". Assinala os cinco bairros municipais que foram construídos durante o seu mandato no Sardoal, mas afasta quaisquer "vaidades" com essa obra.

Crítica aos autarcas que se equiparam a "deuses"

Com 17 anos de experiência, 91 de vida, e desafiada a deixar um conselho aos que querem liderar um concelho, Francelina Chambel pede uma atitude altruísta no exercício do poder, mesmo que isso implique ir contra a vontade do partido que representam: "É para se esquecerem de si próprios e tratarem bem os outros".

Assume que tem "saudades" da vida autárquica, mas não como é vivida agora: "Os atuais autarcas fazem de si uma espécie de deuses, não somos deuses, somos pessoas que têm de trabalhar ao nível dos que nos procuram".

Lembra os tempos em que "não havia vaidade nenhuma" e os autarcas saíam de madrugada para ir ter com o pessoal, diz que isso "já não se faz, é descer muito", ironiza. E pede mais proximidade entre os eleitos e os eleitores.

"Estão muito endeusados. Isso não é bom, a pessoa ter vaidade. Têm bons carros eu quando fui para o Sardoal não tinha carro", descreve, e assinala um "certo aburguesamento da política".

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