27 abr, 2023 - 08:20 • Diogo Camilo
“Se me quiserem fazer algum elogio - ainda não o mereço - seria dizer-me: o padre João, sendo um padre secular, tornou-se num místico de cada dia. Um espantado místico de cada dia.”
Foram estas as palavras do cónego João Aguiar Campos na sua última entrevista, à Agência Ecclesia, há cerca de um mês, a propósito da celebração dos seus 50 anos de ordenação sacerdotal, assinalados na terra que o viu nascer e crescer: São João Campo, hoje designada por Campo do Gerês, no concelho de Terras de Bouro, a menos de 20 quilómetros da fronteira com Espanha.
Na cerimónia realizada a 25 de março, o padre João Aguiar Campos desejou ser recordado como alguém que fez “alguma coisa de bem” para alguém. Faleceu esta quinta-feira, aos 73 anos, mas será lembrado pelo seu amor pela vocação, pela capacidade de comunicação, pelo sentido de humor e ironia, pelo o gosto que tinha pela literatura e pela escrita e também o amor pela natureza.
O corpo de João Aguiar Campos estará em câmara ardente a partir das 16h00 desta quinta-feira na Sé de Braga. Amanhã, celebra-se missa de corpo presente às 15h00, seguindo o cortejo fúnebre para Campo do Gerês.
Na aldeia-natal de João Aguiar Campos, haverá nova celebração eucarística, prevista para as 18h00, seguindo-se o funeral no cemitério local.
Entrevista
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Cónego do cabido de arquidiocese de Braga desde 2004, sempre gostou de ser tratado simplesmente por "padre João Aguiar" ou "padre João". Nasceu a 23 de dezembro de 1949, quase no Natal, na sua pequena aldeia do Gerês, e recebeu a ordenação sacerdotal em 1973.
Entre 1974 e 1976, frequentou o curso de Ciências da Informação na Universidade de Navarra, em Espanha, abrindo caminho para uma missão de 40 anos na Comunicação Social. Em Navarra, estuda jornalismo e, nos intervalos, “explicava aos colegas espanhóis a revolução de abril”, como costumava lembrar. Em 1976, começa a trabalhar como jornalista no Diário do Minho, do qual viria a ser diretor entre 1997 e 2005.
No ano de 1981, inicia funções na Renascença, onde foi jornalista, chefe de redação, diretor de Informação em diferentes momentos, e presidente do Conselho de Gerência da Renascença entre 2005 e 2016. Em todo o percurso jornalístico, deixou a marca do total respeito pela verdade, mesmo nos temas mais sensiveis para a igreja, como foi o caso dos primeiros escândalos de pedofilia que surgiram nos Estados Unidos, em Boston. Sobre estes casos, para a redação, teve apenas três palavras: “Respeitamos a verdade”.
A sua ação na Renascença destaca-se ainda pelo abraçar do digital e do multimédia, posicionando a Renascença como um exemplo de pioneirismo e inovação nesta área, pelo alargamento da oferta de rádios do grupo, com a criação da Rádio Sim, entretanto extinta, e pelo preparar do futuro, dando um novo sentido aos estúdios do Porto e de Lisboa, com instalações novas e dignas.
O ser gerente, ou administrador ou jornalista foram circunstâncias a que a Igreja me conduziu, mas a minha vocação efetivamente é falar aos homens das coisas de Deus
Na capital, as instalações históricas da Rua Ivens, em pleno Chiado, deram lugar a uma sede moderna que foi inaugurada no dia 13 de maio de 2016, na véspera de a Renascença completar 80 anos.
No decorrer do seu mandato como presidente do Conselho de Gerência do grupo, a Renascença, no âmbito da celebração dos 75 anos, recebeu do Presidente da República da altura, Cavaco Silva, o título de Membro Honorário da Ordem de Mérito.
Na cerimónia de entrega da distinção, dizia na altura o Presidente da República: “Nos nossos dias, a Renascença ampliou de forma extraordinária a sua esfera de ação. Não ficou aprisionada ao passado, modernizou-se. Multiplicou o número de canais, desenvolveu novas áreas de atividade, foi a base de criação de um vasto grupo de comunicação social. Mais recentemente, trilhou os caminhos da inovação, marcando presença na multimédia, em áreas como a Web, Mobile, Vídeo, Online ou Web TV."
Em 2011, foi nomeado diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, cargo que ocupou até abril de 2016, encetando um processo de reformulação da agência Ecclesia, nos planos da gestão e da organização, naquele que foi também um difícil exercício financeiro de assegurar um serviço à igreja e a fidelidade do conteúdo.
Entrevista
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É nesse ano que recebe o prémio de jornalismo D. Manuel Falcão, juntamente com o cónego António Rego, um prémio que distingue anualmente personalidades ou trabalhos jornalísticos na área religiosa. Nessa altura, e depois de muitos anos dividido entre Braga, Porto e Lisboa, decide regressar às suas raízes, por motivos de saúde.
“O ser gerente, ou administrador ou jornalista foram circunstâncias a que a Igreja me conduziu, mas a minha vocação efetivamente é falar aos homens das coisas de Deus”, disse, em entrevista no programa “Pequenas Grandes Coisas”, na Rádio Renascença, em 2021, na qual fez uma retrospetiva de uma vida ligada à comunicação.
Nesse tempo, para “o ajudar vencer a solidão”, começa a publicar uma série de livros com reflexões. “A escrita é o meu contributo, a partilha do que penso, do que sinto, do que proponho. Não é ensinar nada”, disse, na mesma entrevista.
Entre as obras publicadas estão “Circunstâncias” (2016), “Rio abaixo” (2017), “Descalço também se caminha” (2019), “Morri ontem” (2019), “Fragmentos” (2020), “InTemporal” (2021), “Flores de Feno” (2021) e “Cochichos” (2023).
Estas reflexões do padre João Aguiar não eram novidade. No ano de 2013, na Rádio Renascença, conduziu o programa “Marca D’Água”, em que partilha os seus pensamentos em forma de poesia.
“Movemo-nos assim entre o passageiro e aquilo que faz história, entre a fugacidade de um momento e a determinação que preservera. Chegaremos ao fim apenas teimando porque a virtude não é um episódio, nem há canções de uma só nota. No caminho nem sempre perceberemos a linha reta, mas chegaremos se nunca dissermos que não queremos ir mais além”, disse, no último programa.
Outro dos seus amores era a natureza: "É interessante que a horta funciona para mim como o meu ginásio: dada a necessidade de exercício físico para combater os efeitos secundários do tratamento, a horta, além de preencher o meu gosto pela terra, responde à necessidade de alívio físico e psicológico", disse na entrevista à Renascença, em 2021.
O antigo presidente do conselho de gerência do Gru(...)
No ano passado, o cónego João Aguiar foi condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa com o grau de comendador da Ordem de Mérito, numa cerimónia no Palácio de Belém, a 19 de janeiro.
Nos seus 11 anos à frente do Grupo Renascença, a ação do padre João Aguiar marcou todos os que com ele contactaram em várias dimensões: pela fidelidade, pela vocação, pelo respeito pela verdade, pela atenção que colocava na comunicação e por alguma rebeldia que sempre o caracterizou. Num dos textos que publicou na Renascença escrevia assim:
“Não sei definir o medo.
Sei, no entanto, que apenas pode ser feito de ausência, porque de facto nas suas manifestações é um vazio, um buraco que nos aspira como se um íman estivesse escondido algures na barriga da terra.
Na infância o medo é escuro; na adolescência uma borbulha que não aceita esconder-se; na idade madura um sabor a imperfeição no fim de cada degrau; na velhice, a escassez do tempo que se apressa.
O medo existe, mas não pode sair vencedor da luta que trava contra o sonho, porque o sonho é a vida, tem o calor do sol, a fecundidade da água, a força do vento.
O medo nada tem a não ser que a ele nos entreguemos.
O medo só faz prisioneiros aqueles que se rendem”