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JMJ Lisboa 2023

Da saúde mental à solidão, Via-Sacra com o Papa foi dos jovens que querem sorrir

04 ago, 2023 - 21:36 • João Pedro Quesado

Depois da festa, o Parque Eduardo VII encheu-se de silêncio. Os gritos da "juventude do Papa" deram lugar às palavras de reflexão, e os temas que ferem os jovens subiram ao palco, uma estação de cada vez.

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“Há coisas na vida que nos fazem chorar? Todos na vida choramos, mas Ele chora connosco, acompanha-nos na escuridão que trazemos dentro”, disse esta sexta-feira o Papa a 800 mil peregrinos, no Parque Eduardo VII.

Francisco falava durante a Via-Sacra, o momento em que os católicos regressam à origem da fé. É um momento que marca o calendário cristão, e um momento em que a festa da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) acalma para dar lugar à reflexão.

No encontro do Papa com jovens católicos de todo o mundo, a Via-Sacra não esqueceu os medos da juventude. Afinal, foram 20 jovens dos cinco continentes, parte do International Youth Advisory Body do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida que os sugeriram.

E foi precisamente isso que as palavras do Papa Francisco no início da Via-Sacra - e no início deste texto - referiram, dando o mote para um momento de forte introspeção na JMJ.

Cada jovem, entre os 800 mil presentes no Parque Eduardo VII, terá sentido cada estação, cada tema, de forma diferente. Depende, como perguntou Francisco, do que os faz chorar na vida. Mas os testemunhos certamente deram mais força a alguns assuntos.

A ferida que traz medo da rejeição

O testemunho que talvez tenha ecoado mais - não por ser de um jovem português - foi ouvido na sétima estação, a que representa a segunda queda de Jesus. “Quando caímos uma vez, achamos que foi acidente, que foram as circunstâncias. Quando caímos mais vezes, ficamos com medo”, dizia a meditação.

“Estava no segundo ano da faculdade quando a pandemia começou e o quotidiano, que nos parecia garantido, deu lugar a um dia a dia de medo, de dúvida e cheio de artificialidades. (…) Ao mesmo tempo, uma saída de casa gerava um sentimento de culpa perante o fantasma de poder infetar um familiar”.

João, com 23 anos, precisou de recorrer às urgências por dores de cabeça muito fortes. O diagnóstico foi que “o corpo está programado para enviar sinais para cuidarmos da nossa saúde mental”, o que o fez procurar ajuda de um psicólogo. “É difícil reconhecer a nossa fragilidade, pedir ajuda e perceber que não somos autossuficientes; temos medo de ser um fardo e de encontrar rejeição.”

“Por vezes, questionamo-nos acerca de quem somos e se vale a pena viver. Às vezes, sentimo-nos mesmo em baixo, por terra. Pior do que ter um problema é ser um problema”, continuava a meditação da Via-Sacra.

O isolamento fez com que João se começasse a ouvir, e revivesse um tempo mais complicado, em que sofria bullying. “O isolamento que sinto hoje já não obedece a regras de segurança, mas se a minha fé e a minha energia esmoreceram, se não consigo dar-me e envolver-me, então persiste um isolamento silencioso, um isolamento emocional, que a ausência de máscaras não conseguiu calar”.

“Normalmente quem mais sofre são aqueles que não se sentem bem-vindos. É preciso pensarmos como nós próprios acolhemos quem mais precisa”, desafiou João.

A ferida dos que estão sós com gente à volta

O primeiro testemunho, ouvido na terceira estação - em que Jesus cai com a cruz pela primeira vez - foi de Esther, uma jovem espanhola de 34 anos, que teve, aos 24 anos, um acidente em que lesionou a medula, e passou a viver numa cadeira de rodas. Assim estava no palco, com a filha e o marido.

“Foi muito duro, e estragou os meus planos para o futuro, mas com o tempo descobri que foi uma dádiva. Tirou-me do ambiente em que estava enfiada, mudou o meu ponto de vista e vi que não estava a viver bem”.

Apesar da ajuda de familiares, dos profissionais do hospital e de conhecer o futuro marido, Nacho, os problemas continuavam a aparecer. “Não sabíamos amar-nos um ao outro sozinhos, e continuávamos a acreditar em tudo o que o mundo nos dizia”.

Depois de um aborto, o caminho levou-a a confessar-se pela primeira vez em muito tempo, a voltar à igreja, a ter uma filha, a procurar orientação familiar, a melhorar a comunicação com o seu namorado - com quem viria a casar.

A oração, sobre a solidão, refletia o sentimento. “É assim também que, por vezes, me sinto quando espero uma mensagem que não vem ou um abraço que não aparece. Às vezes, acho que é culpa minha, que não tenho jeito e que me fecho; outras vezes, acho que vivo num mundo egoísta onde cada um só pensa em si mesmo. Não sei, só sei que há muitos jovens sozinhos. Mesmo quando estão rodeados de gente.”

As feridas que dão medo e paralisam

A ansiedade e a incerteza sobre o futuro é um sentimento que toca grande parte da juventude. A última estação, em que Jesus é depositado no sepulcro, falou do medo que paralisa.

“Tantas vezes na nossa vida parece não haver futuro. Não vemos qualquer luz ao fundo do túnel. Ficamos com medo de olhar para a frente. Não conseguimos tomar decisões, não vemos por onde a história possa continuar, só vemos o caminho bloqueado por pedras grandes diante de nós”.

Entre a saúde mental, a solidão e as dependências - que tiveram espaço na nona estação, a terceira queda de Jesus, encontraram-se outras pedras, como a “destruição da criação”. Por outras palavras, as alterações climáticas.

Se Jesus, a caminho do Monte do Calvário, não queria “lágrimas fáceis que não mudassem nada”, mas pensamentos sobre o mundo que ia ficar para a geração seguinte, também os jovens se interrogam sobre o futuro da humanidade no planeta Terra.

“Assistimos ao consumo descontrolado dos recursos da terra, à extinção de espécies, à devastação de florestas. Assistimos assustados às alterações climáticas e sentimo-nos muito inseguros em relação ao futuro. E tudo isto associado a estilos de vida desequilibrados que fazem com que alguns morram à fome enquanto outros fiquem doentes por comerem demais”, ouviu-se na Colina do Encontro.

Para a 12ª estação, a da morte de Jesus na Cruz, ficou reservado o produtivismo. O momento mais forte de toda a Via-Sacra foi acompanhado pela música “Eli, Eli”, ecoando o clamor de Jesus por Deus antes da morte.

Não é a morte um desperdício? Não é uma inutilidade? “Quantas coisas boas não poderias ter feito em mais umas décadas de vida! E, no entanto, as Tuas palavras foram “Tudo está consumado”. Não ficou nada por realizar. Porque ali, na Cruz, deixaste-nos tudo o que era preciso para nos salvar: o amor puro, embora impotente e aparentemente inútil.”

Num mundo em que só conta quem produz e não contam idosos, pessoas com deficiência, desempregamos, sonhadores, ou sequer as brincadeiras das crianças forçadas a trabalhar, a meditação foi bem clara: “o que salva é o amor”.

Também as crises humanitárias foram assunto, num caminho que levou os jovens da base do palco até ao topo, onde ficou a cruz. Numa altura em que muitos “fogem da guerra, da fome, da falta de água, das perseguições políticas”, e acabam por morrer à procura de esperança e futuro, pediu-se “ânimo” para quem tem que fugir, e “um coração parecido” ao de Jesus para quem vive “confortável na sua casa”.

As feridas que impedem a “verdadeira felicidade”

A Via-Sacra falou da pobreza que rouba o futuro aos jovens e da violência que rouba a força para caminhar, assim como da intolerância para que tantas vezes Francisco alerta.

“Há minorias que não têm direito a falar ou mesmo a existir. Em muitos países, nem se pode praticar a religião que se entender. Há muitas pessoas que não podem exprimir livremente as suas ideias”, alertou-se.

“Cada grupo quer impor a sua maneira de ver e afastar quem pense diferente. Por vezes até mesmo dentro da Igreja. Por vezes até mesmo dentro dos nossos corações”, continuou a meditação. O desafio? Ser construtor de pontes.

Também a incoerência criada pela tirania da imagem, com os jovens a procurar ser alguém que não são, teve direito a um momento. “A tirania do corpo certo e do sorriso perfeito. Fotos de si mesmo nas redes sociais em poses cuidadamente estudadas” e uma “sensação terrível de não podermos ser nós mesmos, de termos de nos vender para que gostem de nós e não ficarmos isolados”. Precisa-se de “força para ser diferente”, para “não viver em função da imagem, mas em fidelidade à minha consciência”.

O individualismo e a falta de compromisso, feridas que magoam os jovens sem que muitos o percebam, foram sentidos numa Colina do Encontro em profundo silêncio.

“Aqui estamos, autocentrados, cada um focado no seu telemóvel, nos seus assuntos, na sua ilha, à espera de uma felicidade que não vem”, ouviu-se. Cada um fica à espera do momento ideal, “da pessoa ideal, do trabalho ideal, da Igreja ideal”.

Mas, como “a verdadeira felicidade está em deixar-se atrair pelo rosto do outro”, os jovens não querem ficar sentados “a imaginar, enquanto o mundo avança” sem eles e sem o que teriam para dar.

“Amar é arriscado, mas é preciso correr esse risco”, lembrou Francisco. Jesus quer “curar a nossa solidão, o teu medo, o meu medo”, empurra e “abraça-nos para arriscar amar”.

“Pensem na vontade que têm que a alma volte a sorrir”, pediu o Papa. “Jesus caminha até à cruz, morre na cruz, para que a nossa alma possa sorrir”.

Pode esta Via-Sacra, e esta Jornada, ajudar os jovens a que as suas almas sorriam?

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