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"Novidades". Nasceu há 100 anos o jornal que olhava a atualidade "com uma lente católica"

15 dez, 2023 - 06:00 • Ângela Roque , Liliana Monteiro

Há 100 anos era publicado o primeiro jornal diário católico de âmbito nacional. Competia com o "Diário de Notícias" e com o jornal "O Século". Durante décadas, deu voz aos intelectuais católicos, mobilizou elites, demarcou-se do regime autoritário e foi alvo da censura. Foi nas suas páginas, e nas da revista Renascença, que nasceu a ideia de criar a emissora católica.

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"Novidades", o jornal que olhava a atualidade "com uma lente católica"
​"Novidades", o jornal que olhava a atualidade "com uma lente católica"

Foi a 15 de dezembro de 1923, em Lisboa, que o "Novidades" começou a ser publicado como um jornal diário e nacional ligado à Igreja Católica. Mas, a aventura tinha já começado uns anos antes, no coração da capital. Em 1885, Emídio Navarro fundou a gazeta "as Novidades". Já nessa altura o nome não era original, outros jornais tinham saído anteriormente com essa mesma designação – precedida, ou não, do artigo definido ‘as’. Mas foi essa a opção dos fundadores.

A redação funcionou sempre no Chiado, até ser extinta, em 1913. O ressurgimento como jornal, 10 anos depois, coincidiu com a mudança de proprietário, diz à Renascença Nelson Ribeiro, diretor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.

“É importante assinalar estes 100 anos, mas o jornal, na verdade, foi criado no final do século XIX. Inicialmente, foi publicado como diário, mas, no período da Primeira República, perdeu importância, passou a ter apenas algumas edições ao longo da semana. Quando regressa, em 1923, tinha sido comprado por instituições da Igreja Católica e vai assumir-se como uma voz, diria ‘oficiosa’ - embora muitas vezes pudesse ser confundida com uma voz oficial - da Igreja. E assim vai permanecer durante o período do Estado Novo”.

Nas décadas de 20 e 30 do século XX, o jornal "Novidades" foi contemporâneo de muitas outras publicações católicas, como a revista ilustrada "Renascença", que viria a transformar-se, anos mais tarde, na Rádio Renascença.

“Há, de facto, uma grande presença da Igreja Católica na imprensa portuguesa, nessa altura, com meios que até conseguem competir com projetos mais comerciais. Claro que nunca teve a pujança financeira nem a capacidade de angariação de publicidade que tiveram, por exemplo, os jornais 'Diário de Notícias' ou 'O Século', mas, de certa forma, era neste campeonato que o Novidades se procurava colocar”, explica Nelson Ribeiro.

"O Novidades não poucas vezes foi incomodado pela censura, mas apesar disso havia diversidade de opinião"

A importância do "Novidades" pode medir-se pela quantidade e qualidade dos colaboradores que teve ao longo de mais de 50 anos. “Era um projeto que tinha a ambição de ser um grande jornal diário nacional, que olhasse a atualidade através de uma lente católica”, e foi “não só repositório, mas um meio que procurava discutir e olhar a realidade até à luz dos valores da doutrina social da Igreja”. De resto, “a época dourada do 'Novidades' coincidiu com o grande período de atividade da Ação Católica, que conseguia mobilizar as elites a terem uma presença ativa na sociedade”.

Nelson Ribeiro fala num “ecossistema de imprensa católica”, onde existiam outras publicações, como a revista "Renascença". Muitas das pessoas que escreviam num lado, também escreviam no outro e é aí “que nasce e se desenvolve a ideia de criação de uma emissora católica portuguesa”, para que “a visibilidade que a Igreja tinha na imprensa” se alargasse ao que era então considerado “um novo meio de comunicação” - a rádio.

Nelson Ribeiro - que no plano académico estudou de forma particular o aparecimento da Renascença, rádio onde já foi diretor de programação - lembra alguns colabores de renome do "Novidades". “O padre Abel Varzim foi um cronista muito conhecido e uma das figuras que subscreveu essa ideia da rádio”, refere.

Outra figura relevante, no final dos anos 20, foi monsenhor Lopes da Cruz. “Teve um papel determinante a chefiar a redação das 'Novidades', que chegou a acumular com a gestão da revista 'Renascença'”, a partir da qual avança, em 1933, com o projeto radiofónico. "É a obra que nos deixa até hoje, uma vez que o 'Novidades' deixou de ser publicado pouco depois do 25 de Abril", sublinha.

“O meu avô tinha a coleção completa do jornal, encadernada”

Manuel Braga da Cruz, antigo reitor da Universidade Católica Portuguesa e investigador, destaca a importância do "Novidades", que funcionou em pleno entre 1923 até 1974. “Era um jornal diário que mantinha, não só os católicos portugueses, mas toda a sociedade portuguesa informada sobre aquilo que a Igreja pensava, fazia e opinava sobre aquilo que estava a acontecer. Desempenhava, por isso, uma função da maior importância. A Igreja conseguia marcar com influência a vida social portuguesa e, como jornal diário, manteve-se ininterrupto até praticamente ao 25 de Abril”.

O jornal era presença assídua em casa da família. “Habituei-me desde muito cedo a consultar as 'Novidades'. Era um jornal que existia em minha casa, em casa da minha família. O meu avô, inclusive, tinha a coleção completa do jornal, encadernada, e foi aí que eu comecei a fazer muitas das minhas investigações sobre a Igreja em Portugal ao longo do século XX”.

Hoje, continua a ser uma das suas fontes de investigação. “Consultei-o na biblioteca do meu avô, que está hoje na biblioteca da Universidade Católica, no Porto, mas tenho-o consultado muitas vezes em Lisboa, nas várias bibliotecas, sobretudo na Biblioteca Nacional. Estou, aliás, neste momento a trabalhar no conhecimento do pensamento de alguns católicos e intelectuais importantes dos anos 30, e é uma fonte necessária".

Braga da Cruz lembra que a publicação “não poucas vezes” foi “incomodada pela censura”, mas, apesar disso, “havia uma diversidade de opinião”, não eram apenas os bispos, ou a hierarquia da Igreja, deu voz aos leigos e a muitos intelectuais católicos, que se demarcavam da tendência repressiva do regime.

“É muito interessante folhear as páginas do 'Novidades' tantos anos volvidos, porque aí se vai encontrar com surpresa uma demarcação muito clara da hierarquia e dos católicos em relação a algumas práticas do regime. Deixe-me dar-lhe um exemplo: a política educativa. A Igreja sempre foi defensora da liberdade de ensino, nunca apenas da tolerância de que nós hoje beneficiamos. E é palpável, sobretudo nos anos 50, esse papel que teve”, diz o investigador.

Braga da Cruz lembra, ainda, os “importantes testemunhos da reivindicação da liberdade sindical, da liberdade de organização dos trabalhadores, não apenas católicos, mas dos trabalhadores em geral. Portanto, as 'Novidades' são uma fonte imprescindível para entender a história contemporânea de Portugal, não apenas a história da Igreja, mas a história da sociedade portuguesa e também do regime do Estado Novo”.

“Uma referência” sem paralelo nos dias de hoje

Aurélio Carlos Moreira, de 86 anos, é o locutor de rádio há mais anos no ativo em Portugal, muitos deles na Renascença, mantendo atualmente o podcast semanal 'Páju'. Recorda que o "Novidades" não faltava em sua casa, e que o pai o consultava sempre.

“O meu pai era assinante, amigo do diretor e procurava o jornal para uma coisa muito curiosa: é que naquela altura não havia ninguém que desse indicação dos filmes que eram mais próprios para a juventude. E, quando nós íamos ao cinema, eu e o meu irmão mais velho – isto nos anos 40, tinha eu sete ou oito anos – o meu pai perguntava: ‘que filme é que vocês vão ver?'”.

“Viemos a descobrir que ele consultava o 'Novidades', porque trazia sempre os filmes que eram próprios para a juventude. O meu pai era um católico praticante, um homem de fé e queria defender os filhos de qualquer percalço ou qualquer sugestão que pudesse aparecer nesses filmes”, remata.

"Faz muita falta um jornal diário católico em Portugal, com a qualidade e com o impacto que as 'Novidades' tinham"

Do que se lembra, o jornal “era uma referência, mesmo para quem não estivesse ligado à Igreja, nem fosse católico. Era um jornal muito bem feito, muito bem orientado. Naquela altura, nós não apreciávamos esses pontos, mas sabíamos que o meu pai o consultava para ter referências”.

Aos 82 anos, o cónego António Janela lembra-se bem da fase final do jornal "Novidades", e recorda como, quando ainda andava no seminário, se esforçavam, como podiam, para fazer publicidade ao "Novidades". “Era seminarista na primeira metade dos anos 60 e tínhamos uma associação que juntava várias dezenas de jovens do seminário de Almada e dos Olivais. E nas férias, animados pelo cónego que nos ajudava e acabou bispo em Coimbra, íamos aos quiosques pedir o 'Novidades'. Diziam que não havia, e nós dizíamos para mandarem vir que era para ver se se expandia mais”, conta.

Responsável pela paróquia do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, e presidente do Instituto Diocesano da Formação Cristã, o cónego Janela diz que hoje, como ontem, é imprescindível um olhar cristão sobre a atualidade, e diversificar as vozes que fazem comentário e opinião na comunicação social. “Era importante que fossem apoiados os 'opinion makers', porque são importantes. E temos pessoas católicas, que não são católicas de sacristia, é gente que afirma valores. Por exemplo, a Comissão Justiça e Paz, que divulgação têm os seus documentos nos media? O Sínodo, que teve a sua última sessão em outubro, que divulgação teve? Quem não aparece, desaparece!”.

Braga da Cruz também lamenta que o "Novidades" não tenha paralelo nos dias de hoje. “Faz muita falta um jornal diário católico em Portugal, com a qualidade e com o impacto que as 'Novidades' tinham, que dê a conhecer, não apenas aos católicos, mas à sociedade portuguesa, a vida da Igreja Internacional e a vida da Igreja em Portugal, e onde sejam assumidas posições críticas e orientadoras para a grande variedade de problemas sociais e económicos, políticos, culturais, éticos que atravessam a sociedade portuguesa na modernidade. Lamento que não tenhamos conseguido isso”.

“O jornal deu origem a muitas outras iniciativas católicas, entre as quais a Rádio Renascença. Portanto, acho que é um exemplo a estudar, a analisar, porque pode ser fonte de inspiração para conseguirmos hoje unificar a totalidade dos jornais diocesanos, dando-lhes uma dimensão nacional”.

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