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Igreja Católica

Abusos: 21% das vítimas denunciaram os crimes pela primeira vez nos últimos 12 meses

18 jun, 2024 - 15:11 • Ana Catarina André , Salomé Esteves (gráficos)

O relatório do grupo VITA, apresentado esta terça-feira, em Fátima, indica que que mais de dois terços pediram apoio psicológico, e cerca de um terço pretende receber uma compensação financeira – são já 39 os pedidos.

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No último ano, 21% das vítimas de abuso sexual na Igreja que recorreram ao grupo Vita, criado em maio de 2023, falaram pela primeira vez sobre os crimes de que foram alvo. De acordo com o relatório apresentado esta terça-feira, em Fátima, em 81% dos casos não foram feitas denúncias às estruturas da Igreja, e em mais de 86% das situações não houve reporte ao Ministério Público ou à polícia.

O documento, o segundo apresentado pelo Grupo VITA desde a sua criação, em maio de 2023, refere que mais de dois terços (67,2%) das vítimas pediram apoio psicológico, e cerca de um terço (34,5%) manifestou a vontade de receber uma compensação financeira. Como a Renascença avançou já, o Grupo VITA identificou, entre maio de 2023 e junho de 2024, 105 vítimas de violência sexual no contexto da Igreja. Destas, 39 pediram já apoio monetário. Há ainda 23 vítimas a receber apoio psicológico regular, cinco a beneficiar de apoio psiquiátrico, cinco com apoio social, uma com apoio jurídico e uma com suporte espiritual. Em dez situações, o grupo VITA acompanhou as vítimas em audiências junto dos bispos ou em processos de audição por parte de comissões diocesanas.

Apesar de os critérios para a atribuição das compensações financeiras não terem sido ainda divulgados pela Conferência Episcopal Portuguesa, Rute Agulhas adiantou que aspetos como a idade da vítima, a frequência dos abusos, a relação com o agressor e a forma como a família e os amigos reagiram “são variáveis” a ter em conta na altura de definir o montante a atribuir a cada pessoa. “Efetivamente vai ser este o caminho e esta é a decisão consensual que foi tomada”, frisou a coordenadora do grupo VITA.

No último ano, o grupo VITA reportou 66 casos de abuso sexual às estruturas da Igreja e enviou 24 à Procuradoria-Geral da República e à Polícia Judiciária. "Esta discrepância, tal como já acontecia no primeiro relatório, entre as sinalizações à Igreja e depois ao Ministério Público e à Polícia Judiciária, relaciona-se com o facto de, em muitas situações, o suspeito já ter falecido, ou ter decorrido, ou até estar a decorrer, à data atual, um processo judicial de natureza criminal e, portanto, aí naturalmente não se justificaria uma nova sinalização. Temos ainda também algumas situações em que a vítima identifica mais do que um suspeito", explicou Rute Agulhas.

De acordo com o documento divulgado esta terça-feira, as dioceses com mais sinalizações foram a do Porto (9), Lisboa (8) e Braga (7). As denúncias dizem respeito a casos ocorridos entre 1960 e 2024, e grande parte, ou seja, 69 chegou ao grupo liderado por Rute Agulhas no último semestre de 2023. Em 33% das situações, a violência ocorreu nas décadas de 1960 e 1980.

De acordo com a psicóloga, duas pessoas agressoras reconheceram os seus comportamentos abusivos. “Uma delas está a ser acompanhada por um profissional da nossa bolsa, o outro agressor, a outra pessoa que cometeu o crime, reconheceu, pediu ajuda à comissão diocesana respetiva e a comissão diocesana encaminhou para apoio psiquiátrico e psicológico”, indicou esta segunda-feira em declarações à Renascença.

O relatório conclui, ainda, que 98,3% dos abusadores são do sexo masculino e que 91,4% são sacerdotes.

Mais de 400 chamadas: nem todas sobre casos na Igreja

No primeiro ano de atividade, o Grupo VITA recebeu 485 chamadas telefónicas através da linha disponível (915 090 000). De acordo com o relatório, estes telefonemas “não correspondem exclusivamente a situações de violência sexual no contexto da Igreja”, uma vez que foram recebidas 28 chamadas respeitantes “a outras ocorrências”. Situações essas que foram, de acordo com a mesma fonte, encaminhadas para entidades como a GNR e a PSP.

Segundo o documento, o VITA realizou até ao momento 64 atendimentos a vítimas de violência sexual. Com base numa análise detalhada de 58 destes casos, o relatório diz que 72,5% das vítimas recorreu ao VITA para sinalizar a sua situação, e indica que apenas 27,5% das pessoas tinham já reportado a sua história à Comissão Independente, o organismo criado a pedido a CEP para estudar o fenómeno dos abusos sexuais na Igreja, cujo trabalho foi concluído em 2023.

Na apresentação do relatório, Rute Agulhas adiantou que, a par dos casos ocorridos na Igreja, o grupo VITA recebeu 28 pedidos de ajuda de situações que tiveram lugar noutros contextos. “Estamos a falar de situações de violência doméstica, de abuso sexual cometidas no contexto intrafamiliar. Naturalmente, o grupo VITA escuta estas pessoas. Escutar não é fazer um atendimento. Não é esse o procedimento aqui. É encaminhar para as entidades competentes, nomeadamente para a polícia judiciária, para algumas estruturas de apoio a vítimas de violência sexual ou outra”, diz.

“Deixa-nos um bocadinho apreensivos vermos que 28 pessoas nos pediram ajuda, a nós – a nossa missão está circunscrita ao contexto da Igreja – e estas 28 pessoas, no fundo, aquilo que nos transmitiram é que não sabiam onde é que haviam de se dirigir. Isto é sintomático daquilo que efetivamente é necessário ainda fazer no nosso país, em termos de alerta, de informação”, acrescentou.

O impacto nas vítimas de abusos

Tal como revelaram os estudos anteriores sobre o tema, a maioria das pessoas (60,3%) que é alvo deste tipo de crimes é do sexo masculino. Segundo Rute Agulhas, as vítimas agora identificadas têm atualmente entre 19 e 75 anos. O documenta indica ainda que a primeira situação de violência sexual aconteceu entre os 5 e os 25 anos, sendo a idade mais prevalente a dos 11 anos. Nessa altura, a maioria das vítimas (67,2%) morava com a família nuclear.

O relatório aponta, ainda, que 34,5% das vítimas vivem atualmente na região norte; 29% em Lisboa e Vale do Tejo e 26% no Centro do país. Apesar do que viveram, mais de metade (55,2%) consideram-se católicas.

O trabalho desenvolvido pelo VITA, grupo criado por iniciativa da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), conclui ainda que 33% das vítimas reporta alterações nos padrões de sono, entre outras alterações físicas. Mais de metade (58,6%) refere irritabilidade e raiva e quase metade fala em vergonha (46,6%). Os dados recolhidos indicam também que em 43,1% dos casos se assistiu a mudanças ao nível das crenças religiosas.

De acordo com o mesmo documento, na sequência dos abusos, 29% das vítimas procuram o isolamento, 25,9% evitou situações, locais, pessoas, atividades e temas. Em 15,5% das situações os abusos levaram a tentativas de suicídio.

Ações de formação chegam a 1700 pessoas

Além do acolhimento e acompanhamento das vítimas, o VITA realizou, no último ano, ações de sensibilização e formação que abrangeram cerca de 1700 pessoas em todo o País.

O relatório destaca, ainda, que está a decorrer um roteiro pelas dioceses, que se destina a dar formação ao clero, a agentes pastorais e a elementos de IPSS católicas na área da prevenção de abusos sexuais. Até agora, o trabalho realizado na Arquidiocese de Évora englobou 460 pessoas; em Vila Real abrangeu cerca de 40 padres. Nos próximos meses, estão previstas ações semelhantes nas dioceses de Portalegre-Castelo Branco, Aveiro, Setúbal e Funchal.

Sem respostas da Comissão Independente

A conferência de imprensa ficou ainda marcada por críticas à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, o organismo liderado por Pedro Strecht que fez o estudo sobre a realidade do fenómeno em Portugal.

“Nós fizemos a nossa parte que foi pedir uma reunião. Houve uma troca de emails a pedir informação relativamente a algumas vítimas. Não obtivemos resposta”, afirmou Rute Agulhas, explicando que a informação foi solicitada com autorização dessas mesmas vítimas. A coordenadora do grupo VITA chamou a atenção para o paradeiro dos dados recolhidos para a elaboração do estudo da Comissão Independente. “Não sabemos onde estão esses dados. São dados sensíveis. Em bom rigor, são propriedade da Igreja, porque foi a Igreja que encomendou esse estudo”, frisou.

Uma estrutura nacional especializada em violência sexual

A coordenadora do grupo VITA voltou a sublinhar a importância de se realizar um estudo a nível nacional sobre o fenómeno – em abril, a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) disse estar a avaliar se iria, ou não, realizar uma nova pesquisa sobre abusos sexuais na infância, que incluísse todos os âmbitos de socialização das crianças. “É precioso ter um retrato das situações de abuso sexual”, sublinhou Rute Agulhas.

“Estamos disponíveis para insistir, mas não temos tido muito eco no que o Estado poderá continuar a fazer [sobre o tema]”, disse, defendendo também “a necessidade de haver uma estrutura nacional especializada em situações de violência sexual que atenda crianças, jovens e adultos”.

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