20 dez, 2024 - 15:30 • José Pedro Frazão
Veja também:
"Já se fez alguma coisa para contrariar que a imigração signifique dificuldade de integração?". A questão foi colocada pelo patriarca de Lisboa, numa entrevista à Renascença em que D. Rui Valério fala também do combate contra a pobreza e outros desafios da sociedade portuguesa, como os baixos salários, bem como do significado do Natal como encontro com Deus e com o próximo e do legado da JMJ.
Esta é uma época em que parece que ninguém pára. Tudo está sempre em grande azáfama, onde as pessoas estão a ir de um lado para o outro, escutam-nos enquanto conduzem e leem-nos também nos telemóveis, enquanto estão a olhar para as redes sociais. Como resume o Natal para essas pessoas que, pegando num lema da Jornada Mundial da Juventude, parece que estão sempre a "partir apressadamente" para algum lugar?
O Natal tornou-se um pouco isso hoje em dia. Uma fonte de caminho, o início de um percurso, um desafio a sermos peregrinos e, quem sabe, até a sermos mendigos. E julgo que não é só fruto da circunstância, da situação tão veloz e a ritmo tão apressado em que nós vivemos, mas é parte integrante da própria espiritualidade do Natal.
É verdade que há uma paragem, pelo nascimento deslumbrante de um Menino que é o filho de Deus, que se faz um de nós. E aí, à partida, tudo para. Mas, no entanto, verificamos que há uma mobilização, desde logo de São José e de Nossa Senhora, que vêm do norte do país, de Nazaré para Belém. Depois são os pastores que estão nos campos a pastar os seus rebanhos e que correm apressadamente ao encontro do Menino que está na manjedoura. Depois são os Magos que também vêm do mundo conhecido naquela altura. Ou seja, o Natal, ao mesmo tempo que nos convida ao recolhimento, à contemplação e à celebração, desencadeia também uma caminhada que acredito que tem duas direções.
Em primeiro lugar, é uma caminhada em direção ao absoluto, a Deus. Deus é o centro, é o protagonista. E por outro lado, e na força desse caminhar para Deus, é um caminho que se faz ao encontro do próximo.
Quero aqui recordar uma tradição que há muitos anos existiu nas minhas bandas e que era particularmente vivida pelos meus avós, cuja origem era transmontana. No dia de Natal fazia-se questão de ir levar filhoses, algum conduto ou alguma peça de roupa a quem mais necessitasse.
E isso perdeu-se?
Não sei se se perdeu, mas penso que na origem daquela tradição que hoje temos de dar a prenda de Natal - e que associamos muito fácil e naturalmente aos Magos - tinha também o seu quê de pensar nos mais necessitados e fragilizados. No coração desta celebração do Natal está um Menino despojado de tudo, que nem sequer um berço tem. É uma manjedoura, que não tem qualquer apetrecho de conforto, porque realmente está onde é suposto o ser humano não viver. Ele necessita de tudo, inclusivamente de todo o carinho, de toda a proteção.
Quando digo que não sei se hoje se perdeu esta dimensão de ir ao encontro do próximo, não é um desconhecer da realidade. De facto, honestamente, vejo que continua a existir uma sensibilidade no coração das pessoas, que se traduz em gesto em obras de solidariedade. Ainda há poucos dias, no Domingo, por exemplo, participei no grande encontro da nossa Comunidade Vida e Paz, onde estiveram reunidas largas centenas de pessoas, que são nossos irmãos e irmãs, e também elas se encontram naquela posição do Menino do presépio.
"O trabalho é pouco reconhecido em Portugal. Temos numa cultura de salários muito baixos"
A solidariedade é intensificada nesta época?
Tenho visto que ela é intensificada, maximizada. Mas também não pode ser algo só para o Natal, tem que ser continuado. Aqui, na nossa cidade de Lisboa - e creio que não estou a ser exagerado se disser em Portugal - aquilo que temos verificado nos últimos anos, é que toda e qualquer campanha de solidariedade é permanente.
Basta ver que para o Banco Alimentar, por exemplo - e sem esquecer ou sem descuidar todas as outras iniciativas - elas acontecem pelo menos duas vezes marcantes no ano. Ao nível das comunidades locais, os atos de solidariedade vão acontecendo com alguma regularidade. Nas últimas semanas surgiu também este caminho que estamos a percorrer, um pouco em todo o país, de granjear forma e modo de acudirmos no imediato às populações do Médio Oriente.
Mas devia ser mais continuado? A questão é se se fica pelo tempo do Natal.
Não fica. O que eu quero dizer é que é algo que continua. E sempre que o povo é convocado para participar num projeto em que sente que verdadeiramente tem valor e, de alguma forma, alavanca a afirmação da dignidade do ser humano, posso testemunhar que todas essas iniciativas têm uma adesão global, maciça.
Muito embora a solidariedade seja maximizada em determinados momentos - que até do ponto de vista litúrgico são fortes - a verdade é que somos um povo solidário por natureza.
Apesar de tudo, há muito consumismo nesta época e há muita crítica dirigida a isso mesmo. É possível articular melhor a mensagem do Natal com essas tradições de oferecer presentes aos seus familiares, aos seus amigos, até aos seus colegas de trabalho?
Creio que é necessário começar por um princípio básico que é refletir acerca da necessidade que o ser humano tem de consumir. Essa necessidade nasce não só da necessidade em si, mas também de uma sede interior que tem um patamar muito mais profundo, uma sede de absoluto.
E por isso nós adquirimos, conquistamos, consumimos e nunca estamos satisfeitos. Precisamente porque na alma e no coração do ser humano se esconde uma sede que só será plenamente colmatada e preenchida e satisfeita com o absoluto, que é Deus.
O Natal quer dar à humanidade o absoluto. Aquilo que é, de certa forma, definitivo e decisivo para a vida, que é irremovível, indestrutível, aquilo que te sacia, porque é pão de Vida. Aquilo que te sacia, porque é Luz.
Aquilo que diria como mensagem é: "calma, vai ao lugar onde podes verdadeiramente alcançar este alimento que te sacia de forma plena e definitiva".
Para podermos oferecer, precisamos de ter algo na carteira. Ao longo dos últimos anos gastámos muitas horas a debater a questão dos salário, sabendo que há quem trabalhe e mesmo assim não consiga sair da pobreza. Isso tem levado ao debate sobre os baixos salários mas também os salários médios são baixos. As estatísticas europeias mostram-nos que, em 26 países, há 17 países que têm um salário médio anual superior ao dos portugueses. Vê sinais de melhoria deste ponto de vista?
Desde há longos anos, infelizmente, que constato que o trabalho é pouco reconhecido em Portugal. E faço-o numa perspetiva de quem conhece qualquer coisa na matéria, porque sou filho de um pai que foi toda a vida trabalhador e de uma mãe que também o foi, e eu próprio fiz essa experiência do trabalho nas antigas férias grandes onde durante esses três meses, a partir do 7.º ano de escolaridade, literalmente ia para as fábricas lá da minha terra, para as serrações de madeira no concelho de Ourém.
Aquilo que verifiquei e que sempre me escandalizou foi o pouco valor que o trabalho tem em Portugal, o pouco reconhecimento. E isso traduz-se em baixos salários. Quanto aos últimos tempos, creio que Portugal está a fazer um esforço grande - é preciso admiti-lo - em todas as forças e instituições envolvidas, indiscriminadamente, seja de quem dá trabalho, seja de quem o promove, seja de quem o recebe.
Há um esforço grande que se está a fazer e, no entanto - e isto é uma constatação - estamos muito aquém dos valores que a média europeia nos dizem que são os mínimos, ou que são os razoáveis, ou que seriam os suficientes.
"Crise na habitação? Este é um tema cuja resolução tem uma dimensão e uma urgência a nível europeu"
Quem é que pode resolver esta equação?
Esta equação tem várias razões, não sendo eu, obviamente, um especialista na matéria. Em primeiro lugar, aquele famoso lema do "antigamente", de que os portugueses eram pouco preparados e logo a própria prestação de trabalho era muito dispendiosa, já não tem hoje qualquer cabimento.
Hoje, qualquer profissional tem que ser um verdadeiro especialista, até porque a dose tecnológica envolvida em tudo aquilo que hoje se faz é de tal ordem que um trabalhador, seja ele quem for, tem que ser perito naquela matéria, e não só do ponto de vista propriamente técnico, mas até do ponto de vista ético.
A solução está mais a montante. Julgo que estaria na maneira como teríamos que pôr o país num patamar diferente de desenvolvimento e de produção, porque somos um país pobre, pelo menos deste ponto de vista, com poucos recursos. Somos um país que terá que apostar muito na formação, isso é indispensável.
Mas tem havido essa aposta?
É por isso que termino com uma palavra de esperança. Nos últimos anos, tenho verificado que há um incremento de adesão dos nossos jovens e adolescentes a uma autopromoção em termos profissionais e tecnológicos. Mas também, por outro lado, não estou satisfeito por ver que pessoas que saem da Universidade e que têm um reconhecimento do seu esforço e da sua dedicação naquele diploma que transportam, que depois têm que se acontentar.
Estamos aqui numa cultura de salários muito baixos e acho que temos que contornar essa situação.
Pensa, por exemplo, em quem paga esse salário, nos empresários? Essa dimensão ética também está a faltar?
Não vou por aí. Para já, não tenho conhecimento, mas, por outro lado, também creio que os próprios empresários e doadores de trabalho, coitados, também se veem "à nora" para fazer face a todo o esforço e a todas as despesas que têm. É por isso que digo que o problema está muito mais a montante.
O problema é mesmo definir aqui uma estratégia nacional para o país, em que definitivamente nos vamos empenhar em combater a pobreza e vamos promover o desenvolvimento. Vamos promover aquela sede, aquela constatação de que é necessário dar condições a todos os trabalhadores, porque isto é sistemático.
E tem várias dimensões. Por exemplo, publicámos esta semana na Renascença uma reportagem onde, através das instituições da Igreja, encontramos uma realidade que tem também sintomas nas instituições que estão no terreno, que se relaciona com o preço da habitação, que está a atirar cada vez mais pessoas, por exemplo, para a rua. As respostas na habitação têm que ser aceleradas, sobretudo nos grandes centros urbanos?
Há três ou quatro âmbitos da nossa vida coletiva cujo nível de problematicidade, chegou a um ponto tal que já não é possível ser sanado e curado apenas com medidas locais ou nacionais. A habitação é um deles.
Nós fazemos parte de uma realidade instituída que se chama União Europeia. Os problemas habitacionais de Lisboa - falo também aqui com conhecimento de causa - são os problemas de Paris, de Roma, de Madrid. Vejo a União Europeia completamente distante desta situação. A solução só passa por aí, ou seja, por uma estratégia política e ao mesmo tempo habitacional que tenha este cunho, que não seja só de Portugal ou de Lisboa, que não seja só de Espanha ou de Madrid.
As pessoas que necessitam de uma habitação em Lisboa são as mesmas pessoas que vão ter o mesmo problema no mês seguinte em Londres ou em Paris. Então aconselho, peço, solicito à União Europeia que esta problemática da habitação seja desenvolvida a partir de uma perspetiva que venha dessas instâncias, com apoio, com auxílio, com estratégias. Hoje sabe-se que a habitação vai servir pessoas oriundas de diversas etnias, porque há esta facilidade.
Mas há verbas europeias disponíveis para a questão da habitação.
Mas se calhar isso ainda não chega, pelos vistos. Então é preciso incrementar, é preciso incentivar.
Disse logo que não há soluções só locais nem nacionais. Isso quer dizer também que os políticos locais também não podem prometer soluções de "varinhas mágicas" para que as coisas se resolvam rapidamente?
Com o passar do tempo e com o agravamento das dificuldades a nível internacional, os problemas habitacionais chegaram a um nível tal que já não é possível serem enfrentados apenas [dessa forma] para serem resolvidos efetiva e globalmente. Podemos continuar a usar remendos aqui e depois acolá, é uma opção, mas falo para resolver os problemas numa dimensão integral.
Isto para que um cidadão - que pode até nem ser português - que vive em Portugal, em Lisboa ou no Porto, em Coimbra ou no Algarve, não sinta problemas que um cidadão de um outro país europeu conseguiu resolver, só porque houve o melhor uso dos fundos.
Este é um daqueles temas cuja resolução tem uma dimensão e uma urgência a nível europeu.
Entrando agora num novo ciclo político onde vamos ter uma renovação das lideranças autárquicas, nos grandes centros urbanos e em Lisboa em particular, a habitação é para si o tema que deve estar na mente prioritária de quem tem o poder autárquico?
Pão e casa, roupa, médico e educação, são os alicerces de base que regem e que estão no substrato da vida de qualquer família e de qualquer cidadão. É uma prioridade, uma das várias prioridades.
Referiu a imigração. Um estudo publicado esta semana pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, segundo o qual mais de 60% defendem que o número de imigrantes do subcontinente indiano deve diminuir. Encara estes números com preocupação?
Como dizia um grande filósofo há poucos anos, a pergunta deixou de ser o porquê das coisas e passou a ser o como e, sobretudo, o quanto. Portanto, logo à partida, quando se fala em números, sou logo muito renitente em abalançar-me nessa dimensão.
No entanto, sou realista e o meu realismo diz-me que se chegamos a um afunilamento de um discurso relativamente a uma decisão que é preciso tomar, o meu bom senso diz-me se há condições de nunca comprometer a dignidade de qualquer ser humano.
Falamos da habitação, falamos da escola, da educação, falamos da saúde, falamos do vestir, falamos da comida. Mas há um valor que existe na medida em que existem estes, que é a dignidade de cada ser humano.
Mas este estudo, por exemplo, indica que os portugueses inquiridos valorizam os imigrantes do ponto de vista económico e o seu papel na nossa sociedade. Simplesmente, no caso deste grupo mais recente do subcontinente indiano que está muito presente na cidade de Lisboa, sublinham uma grande diferença até cultural em relação aos portugueses. Faz sentido este discurso?
Não vou dizer que não faça sentido. A minha melhor orientação talvez seja outra, que não quer ser em oposição a esta, mas quer ser uma complementaridade. Quando temos uma postura positiva face à existência, face à realidade e face à vida, devemos olhar a tudo aquilo que acontece e que chega como uma oportunidade, uma nova possibilidade para nós.
A pergunta que eu então faço é: e já se fez alguma coisa para que fosse diferente? E já se fez alguma coisa para que a imigração, antes de ser sinónimo de problemática e dificuldade de integração, já se fez alguma coisa para contrariar e para que se diga que grande oportunidade é para Portugal a chegada destes irmãos, a chegada destas pessoas?
Barómetro Fundação Francisco Manuel dos Santos
A maioria dos inquiridos no Barómetro sobre Imigra(...)
Acha que não tem sido feito?
Não me vou pronunciar sobre isto. É a pergunta que eu faço, se me permite ser um pouco filosófico nesta dinâmica. Reconheço que talvez não tenha todos os dados em minha posse para formular uma resposta contundente acerca desta questão. Aquilo que digo é que a imigração - também ela é um fenómeno global - tem que ser encarada pela nossa sociedade como uma oportunidade e não como uma ameaça.
Para mim isso é básico e o discurso, em primeiro lugar, tem que se colocar nesse patamar. Só depois, então, devem vir considerações em que vamos avaliar as dificuldades que existem, não obstante tudo aquilo que foi feito ao nível da primeira dificuldade.
Mas não faz sentido uma oposição cultural, só porque professam outra fé ou têm outros hábitos.
Por amor de Deus, isso já passou, absolutamente.
Ouvimos muitas vezes alguns destes discursos hoje em dia, sobre o diferente e o medo do diferente.
Mas isso, se me permite - e agora deixe-me desvincular um pouco da realidade concreta daqui - ter medo do desconhecido e ter medo do diferente é próprio do ser humano. Aliás, a própria Bíblia dá-nos testemunho abundante acerca dessa reação que o ser humano tem para com o diferente, para com o desconhecido. Isso é humano.
Agora, a sociedade portuguesa, profundamente iluminada e inspirada pelo Cristianismo, pelo Menino que nasceu em Belém há dois mil anos, cresceu e amadureceu e permanece hoje na convicção de que cada ser humano é um valor por si. Cada ser humano é a afirmação suprema da dignidade do próprio ser humano no reconhecimento e na aceitação dele.
Independentemente se é assim ou de outra maneira, se professa ou deixa de professar. Jesus veio exatamente para instituir e instaurar pontos, não para erguer muros. Se o Natal tem uma mensagem que nos transmite de forma contagiante é esta, a de ser meta, momento, pretexto e ocasião para aquele caminho de encontro e de ir ao encontro de todos.
Já afirmou que queria ser um "Patriarca da estrada" e quer ir ao encontro das populações. Esteve no barro do Zambujal no Dia Mundial dos Pobres, onde levantou essa questão da importância da União Europeia para responder alguns desafios, mas também pediu uma atuação concreta no combate à pobreza. Temos ouvido falar em muitos planos. O que é que quer dizer com "atuação concreta"?
Uma vez mais, não me estou a referir a situações no concreto. Aquilo que eu estou a dizer é que as situações de pobreza, de carência e de sofrimento, são muito propícias a grandes discursos, a grandes narrativas, a grandes propósitos que depois não passam do papel. Ficam meras intenções, ficam projetos adiados.
Contextualizando no presente e no Natal que nós estamos a celebrar, o Evangelho deste dia de Natal começa logo : "No princípio era o Verbo e o Verbo fez-se carne". A palavra tornou-se realidade, fez-se história. Aquilo que é parte integrante, não apenas de respostas que dou a jornalistas quando sou solicitado, mas que é parte integrante da minha pregação, é que é específico e típico do Cristianismo e da Igreja fazer com que a palavra se torne história, se torne acontecimento, se faça gesto, se faça ação. Enfim, que seja resposta a solicitações, que seja solução para problemas.
Vivem no bairro do Zambujal há mais de 30 anos. Co(...)
E o que é que as pessoas lá lhe disseram, o que é que aquelas pessoas querem?
Para além de ter visitado o bairro do Zambujal, ainda tento todos os meses, pelo menos uma vez, dedicar uma noite - por norma ao domingo - ir ao encontro dos sem-abrigo na cidade de Lisboa. Junto-me a um grupo e a uma instituição, pode ser a Comunidade Vida e Paz, pode ser o grupo Madre Teresa de Calcutá ou outro.
Vou para participar na distribuição de alimentos, de roupas, de calçado, mas o meu intuito principal não é esse. Vou para escutar e me encontrar com as pessoas e ouvi-las.
E o que é que ouve?
Aquilo é muito interessante. Ouço histórias, às vezes trágicas, outras vezes deslumbrantes, mas ouço histórias vividas por pessoas, por seres humanos. Comecei nesta experiência quando, em 2016, o Papa Francisco me deu o privilégio de ser nomeado missionário da Misericórdia. E desde essas primeiras vezes que ficava deslumbrado em descobrir que dentro daquele rosto, às vezes sofrido e tão torturado, seja pelos anos ou por outras causas, existe um ser humano com uma história de vida. Onde há sentimentos, onde há frustrações, onde há esperanças que foram defraudadas, onde há enganos. Isso é a primeira coisa que me deslumbra.
Há uma segunda nota positiva. Levo o cabeção, e também ali não existe discriminação, mas toda a gente me solicita uma bênção, independentemente se é cristão ou de outra confissão religiosa. Acho isso uma ternura, toda a gente pede uma bênção ao senhor padre.
Quando começamos a entrar mais no vivo da situação, são pessoas que não estão lá de vontade própria. Todas elas desejam e querem uma solução para o seu problema. Às vezes, eles mesmos são os primeiros a reconhecerem que por vezes essas soluções não existem de todo e, para manterem o ritmo, os níveis e os padrões de vida que têm ali, têm que estar lá, não era possível de outra forma. Mas sobretudo é belo constatar que todos eles, mulheres e homens, pensam e desejam ir mais além. E nós, como sociedade, nem sempre somos capazes de dar a resposta para este legítimo e humano anseio. Mas acredito também que todas as instâncias e instituições envolvidas estão a fazer o seu melhor.
O que é que a Igreja pode fazer para essas pessoas?
Aquilo que está a fazer. Convidar as pessoas exatamente a sair da rua, convidar as pessoas para se encaminharem para um momento em que farão esta passagem, para passarem a terem uma casa. E nem sempre isso é assim automático.
Entrevista de Natal
Em entrevista à Renascença, em tempo de Natal, D. (...)
Tem aumentado o número de sem-abrigo em Portugal. Em Lisboa os números apontam para mais de três mil pessoas.
Confirmo. Tem aumentado e há várias instituições em Lisboa, que conheço e que têm no seu horizonte e como princípio conquistar sem-abrigos à rua.
Aqui também há uma estratégia nacional e há também quem possa propor estratégias locais. É essa a caixa de ferramentas ou é outra diferente?
Existem muitas e variadas propostas que são feitas às pessoas que estão na rua. Por exemplo, quando dialogo com eles, muitos referem que já falaram com instituições, ou então estão à espera ainda de uma resposta.
E tem formas de acompanhar os casos? Ou seja, pessoalmente também se interessa pelo destino daquela pessoa em particular?
Também, também. E por vezes, inclusivamente, peço à pessoa para se encontrar comigo, em pessoa. Às vezes, reparamos que o problema fundamental é mental nessa pessoa ou, às vezes, é até espiritual.
Um exemplo foi um sem-abrigo que teve uma experiência que o marcou de forma indelével, por causa de um luto mal feito, por causa da não aceitação da partida de uma pessoa muito querida. Eu próprio encaminho essas pessoas.
No seu estilo de atuação, nessa sua presença próxima das comunidades, de vez em quando sabemos publicamente dela. Esse caso é uma atividade privada, mas soubemos da sua ida ao bairro do Zambujal, tal como soubemos quando se encontrou com jovens num bar. A repetição um pouco mais mediatizada de alguns dos seus passos não poderia trazer focos mais positivos, também para ajudar a resolução do problema?
Vou-lhe dar a resposta que dei há pouco. São dimensões da sociedade muito permeáveis a grandes narrativas, a grandes gestos, e nós ali, sinceramente, gostaríamos que a atuação fosse na mais radical e profunda autenticidade.
"A pobreza é muito propícia a grandes discursos que depois não passam do papel"
Nesse contexto, mas noutros da vida comum, quando um cidadão normal se aproxima de si e diz algo sobre o que se passa na sua vida ou no seu país, também encaminha essas preocupações para quem tem poderes de decisão? Nos diálogos que tem com quem tem poder civil, que assuntos é que transporta para essas conversas?
Normalmente, são sempre na senda da afirmação da dignidade do ser humano, porque isso é a grande causa que nos deve mobilizar. É a afirmação, a defesa, a salvaguarda dessa dignidade do ser humano, no que diz respeito aos seus direitos e aos seus deveres, no que diz respeito à sua estatura e à sua estrutura humana.
Eles podem ser de vária ordem. Por exemplo, podemos estar a falar de problemas que têm a ver com a habitação, que têm a ver com o transporte para uma escola, com uma diferenciação que se tem que ter, por exemplo, na hora em que o próprio metro abra ou fecha. Por exemplo, quando estamos a aproximarmo-nos deste tempo que é tão exigente e rigoroso por causa do frio, fazer presente nessas instituições como seria bom que houvesse uma campanha junto das grandes superfícies comerciais para disponibilizarem pelo menos alguma roupa ou algum utensílio que possa, de certa forma, trazer um conforto às pessoas.
Fez esses pedidos?
Esses pedidos estão feitos, isso faz parte do nosso dia-a-dia. O nosso propósito para este ano pastoral, ou seja, para o próximo ano também - que é um ano de esperança - é conseguirmos organizar de forma sistemática e mais dedicada, um lugar ou um espaço onde, para além de garantirmos um acolhimento que permita e que conceda alguma coisa na dimensão espiritual, consiga também acrescentar algum bem-estar à própria pessoa.
É a tal paróquia dos sem-abrigo a que se tem referido?
Nós chamamos-lhe assim. Não sei se é com esse nome que irá ser ou outro, mas isto é um grande propósito que nós estamos a ter.
E em que ponto está?
Isto aqui está em bom ponto porque estamos, para já, numa dinâmica de apostar muito nos centros de escuta. Aquilo que para nós é essencial é exatamente isso, que as pessoas possam aproximar-se para receber aquilo que uma pessoa, quando vai a uma igreja ou a uma Eucaristia, vai em busca e que recebe.
Muitas vezes, nos nossos irmãos e irmãs que estão na rua, também existe muito a convicção de que uma Eucaristia numa igreja "é para outros, não é para nós". Ou seja, sentem-se excluídas até daquilo que é a dimensão espiritual.
Vai funcionar com os centros de escuta, é essa a metodologia?
Estamos no processo de elaboração, estamos no terreno. Estamos disponíveis neste momento para sermos inspirados acerca daquilo que vamos tomar como decisão final.
Terá um pároco para essa missão?
Certamente que será nomeado alguém que terá a responsabilidade deste projeto.
Dia Mundial dos Pobres
No bairro do Zambujal, onde celebrou missa este do(...)
Mas para si é urgente, falou em 2025.
É urgente, porque é urgente.
Outra questão que se coloca muito em relação à Lisboa é a herança da Jornada Mundial da Juventude. Sabemos o valor em causa, cerca de 35 milhões de euros e D. Alexandre Palma, bispo auxiliar de Lisboa, lidera a Fundação JMJ. 2025 poderá ser o ano em que começamos a ver efetivamente alguns dos apoios? Qual é o plano de trabalhos para 2025?
A Fundação JMJ tem uma autonomia e tem um presidente. D. Alexandre Palma tem uma autonomia de atuação e de escolha e de opção. E existem os Estatutos da Fundação, que dizem que a Fundação predispõe-se a apoiar todos os projetos que visem jovens e crianças. Mediante a apresentação destes projetos, a direção vai analisar e depois vai decidir os moldes, os termos e também a quantidade com que apoia o projeto em si.
A Fundação não é ela própria autora ou protagonista na elaboração do projeto. A instância fundamental que norteia a Fundação é o apoio.
Um patrocinador de atividades?
Pode ser dito assim. O desafio principal que se coloca ao Patriarca de Lisboa é de um outro nível. É o de permitir, consentir ou favorecer o desenvolvimento de todas aquelas sementes que de uma forma ou de outra foram lançadas na Jornada Mundial da Juventude.
Para além do dinheiro.
Eu diria até "e acima do dinheiro", não fosse Natal e para mim não cair o risco de ser acusado de ser materialista. O rosto mais evidente da Jornada foi todo aquele entusiasmo, aquela alegria, o encanto pelo encontro, o sentido da festa. E uma juventude que se revela altamente sensível à dimensão espiritual, que permanece em silêncio perante o Santíssimo Sacramento, que responde ao apelo de participar numa celebração litúrgica, que participa num concerto musical que leva e recebe uma mensagem.
E esse espírito está pleno de vida desde a Jornada Mundial da Juventude até agora?
Estamos a constatar que há de facto "um antes e um depois" da Jornada Mundial da Juventude. Hoje os jovens são assim. Procuram na dimensão espiritual algo que pensávamos que pudesse ser dado só pela materialidade ou pelo empírico dos acontecimentos ou da existência. O jovem vem e participa, porque quer uma serenidade e uma sintonia com os outros. Isto é maravilhoso.
É perceber como os jovens que vamos encontrando vivem estes momentos de encontro como verdadeiro enriquecimento recíproco. São capazes de interagir com todos os outros. Tem surgido aqui também uma profunda mobilização para responder aos apelos que a própria sociedade vai lançando.
Acredito que aquele défice de sentido de cidadania que era tão próprio das sociedades há alguns anos - mas não estou a recuar muito - vai-se transformar. Acredito também que os jovens de hoje irão fazer com que, daqui para o futuro, se sintam chamados mais intensamente para participarem na vida comum, na responsabilidade de servir o interesse de todos nós.
"A imigração tem que ser encarada pela nossa sociedade como uma oportunidade e não como uma ameaça"
Mas também pode chamá-los para si, mais próximos de si para determinados momentos, até organismos de aconselhamento.
É por isso mesmo que lhe estou a dizer que são jovens que da maneira como estão a responder aos apelos e aos desafios da Igreja, eles estão-se a revelar capacitados para responder a desafios até superiores e meter-se, por exemplo, no empenhamento da vida comum, em causas nacionais e até internacionais. Estou muito otimista, muito positivo.
Se me permitem esta magnífica imagem, ali, na Jornada Mundial da Juventude, sucedeu um Pentecostes em que uma chama de Espírito foi acesa. O grande desafio agora é não só mantê-la acesa, mas intensificá-la ainda mais.
Lisboa vai mesmo avançar com uma candidatura para receber o Encontro Mundial das Famílias em 2030?
Isso é um desejo e é um sonho que tenho e devo-lhe dizer porquê. Primeiro, uma razão muito prática, porque de facto nós somos já especialistas. Formulámos uma competência, um "savoir-faire" em acolher, organizar e gerir estes grandes acontecimentos. E em segundo lugar, porque acho que o positivo exemplo que temos, concretamente aqui em Lisboa, ao nível do sentido da importância da família, é razão bastante para que nós acolhamos aqui um acontecimento dessa índole.
Quando vou, por exemplo, sobretudo ao final da tarde, até ao Tejo, emociono-me sempre com a quantidade de famílias que vejo que andam ali a passear. É fascinante, isto não é uma coisa só da aldeia, só da província. Não, isto é uma coisa real, o que significa que nós, Lisboa e o Patriarcado, temos sentido de família, um respeito pela família, que justifica que em Lisboa se pense e se sonhe.
Mas para esse sonho é preciso concretizar uma candidatura.
Posso responder-lhe aqui com a frase do Papa Francisco: "Não sejam administradores de medos, mas sejam incrementadores de sonhos".
Mas porquê 2030?
Porque era um número redondo. Mas quero dizer que nós vamos ter aqui no Patriarcado de Lisboa um dia dedicado ao Jubileu das famílias em 2025.
Tem uma expectativa particular em relação ao Jubileu de 2025?
A minha expectativa vai relativamente à própria palavra de Jubileu, que é "júbilo". A minha expectativa é que nos tornemos uma sociedade mais feliz, em sintonia com o espírito do Natal, que tem a palavra boa ou alegre notícia no seu título.
Uma sociedade mais feliz, mais alegre, genuinamente alegre, espiritual e existencialmente alegre. As dificuldades são tantas. O peso, por exemplo, das notícias devastam-nos logo de manhã ao pequeno almoço, porque há a guerra, há mais um conflito, há mais uma crise. Verdadeiramente é uma sociedade um pouco triste, quase que perturbada.
Podemos pensar longe de alguns desses lugares, que não fazemos parte nessa guerra que persiste.
Por um lado, dizemos que aquilo é da televisão e na consciência pode ser. Mas ao nível que não é controlado pela consciência, ao nível sentimental e afetivo, o cidadão absorve muito daquilo que vê. Não fica indiferente, emocionalmente não fica indiferente.
Nesse sentido, digo que podemos estar a falar de um conflito que acontece a milhares de quilómetros, mas emocionalmente o cidadão ressente-se daquilo que vê, porque é um ser humano. E o ser humano é de uma beleza e uma complexidade tal, e por isso, tem impacto na maneira como agimos, como abordamos a própria vida.
O desejo que aqui emitiria era que fôssemos uma sociedade que desse mais liberdade, mais espaço, mais abrangência, mais mundo à felicidade e à alegria.