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Reportagem

Um dia com D. Manuel Clemente. "Tornei-me caixeiro-viajante”

22 jan, 2025 - 19:22 • Ana Catarina André (texto), Fábio Oliveira (fotos)

Desde que deixou de ser Patriarca de Lisboa, tem percorrido o País para dar conferências e pregar retiros. Na semana em que faz 25 anos que foi nomeado bispo, defende que é preciso que a sociedade portuguesa se torne intercultural

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A missa de domingo, na Igreja de São Pedro, em Torres Vedras, acabou há poucos minutos. D. Manuel Clemente despede-se dos fiéis que, naquela manhã chuvosa e fria, não deixaram lugares vazios na celebração das 9h. Dirigindo-se à pia batismal, situada ao fundo do templo, o Patriarca Emérito, que esta quarta-feira, 22 de janeiro, celebra 25 anos de bispo, diz: “Foi aqui que nasci como cristão, a 15 de agosto de 1948. Venho cá todos os anos nessa data. Mesmo que tenha trabalho fora [da cidade], rezo na rua, assim de manhazinha cedo, mesmo com a igreja fechada”. Ainda antes de sair, pára aqui e ali para conversar – conhece algumas daquelas pessoas há décadas (foi naquela paróquia que deu os primeiros passos na fé). Detém-se junto do grupo de jovens que estão a angariar fundos para irem ao Jubileu dos Jovens, no verão, em Roma, e compra-lhes uns bolos.

A veia de historiador é-lhe intrínseca. No caminho até casa, pelas ruas estreitas do centro da cidade onde nasceu, vai contando pormenores sobre o património local. “A câmara era aqui, neste edifício do século XVIII”, diz, na Praça do Município. “As prisões dantes funcionavam nas câmaras, porque o juiz era presidente da câmara. No tempo do D. José, para os prisioneiros terem água, foi feita esta fonte, em 1775”, conta, acrescentando, de imediato, uma explicação sobre o brasão de Torres Vedras, à qual se segue uma chamada de atenção para umas fotografias antigas, expostas numa montra, que mostram como era o centro histórico. Ainda antes de deixar aquele largo, diz: “Aquela pedra que ali está é o que resta do antigo pelourinho e ali mais à frente, vamos passar pela antiga rua da judiaria, onde os judeus viveram até ao final do século XV”.

D. Manuel Clemente com os jovens na Igreja de São Pedro, em Torres Vedras. Foto: Fábio Oliveira/RR
D. Manuel Clemente com os jovens na Igreja de São Pedro, em Torres Vedras. Foto: Fábio Oliveira/RR
Ao domingo, sempre que está em Torres Vedras, celebra missa às 9h. Foto: Fábio Oliveira/RR
Ao domingo, sempre que está em Torres Vedras, celebra missa às 9h. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente, em Torres Vedras. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente, em Torres Vedras. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente. Foto: Fábio Oliveira/RR
D. Manuel Clemente preserva uma réplica de uma cadeira usada pelo Papa Bento XVI, na visita ao Porto em 2010. Foto: Fábio Oliveira/RR
D. Manuel Clemente preserva uma réplica de uma cadeira usada pelo Papa Bento XVI, na visita ao Porto em 2010. Foto: Fábio Oliveira/RR

Em 2023, quando deixou de estar à frente do Patriarcado de Lisboa e se tornou Patriarca Emérito, D. Manuel Clemente pensou que teria mais tempo para se dedicar aos estudos – os longos anos de professor na Universidade Católica e a investigação na área da História da Igreja sempre o apaixonaram. Não tem, porém, conseguido cumprir este objetivo, assume. “Até ao verão de 2023, tinha um estabelecimento que era a diocese de Lisboa. Daí para cá, tornei-me caixeiro-viajante”, conta, entre risos. “Respondo a pedidos que me fazem de todo o lado, para encontros, retiros, recoleções, conferências. Onde me pedem e eu possa ir, vou respondendo, e quando não estou lá, estou a preparar o que lá vou fazer.”

Entusiasmado com o que vai fazendo – na semana anterior, tinha estado no Porto a pregar um retiro ao clero –, revela, ainda assim, os seus projetos, alguns dos quais sobre a emergência do laicado na vida da Igreja, no século XIX. “Até aí, o leigo era o que não sabia”, explica, dizendo que “há um certo cliché de que a Igreja está muito resumido aos clérigos, aos bispos, aos papas e depois o resto dos cristãos são um bocadinho passivos”. E esclarece: “Não é assim. Não é verdade. Grande parte daquilo que mexeu e mexe na Igreja é mais a partir da periferia ou da base do que propriamente do centro, no sentido em que começa no povo de Deus em geral e isso é muito interessante de estudar”.

Outras das suas ideias para esta fase da sua vida nasceram ainda quando dava aulas. “Dizia que gostava de ver a História da Igreja [contada] a partir das periferias, não de onde o Evangelho partiu, mas onde chegou, como foi aceite, como é que a partir daí se fizeram comunidades cristãs, etc. Várias vezes pensei nisso. Os anos foram passando – os 77 estão aí à porta. Não sei se terei tempo, mas é bom imaginarmos.”


"Grande parte daquilo que mexeu e mexe na Igreja é mais a partir da periferia ou da base do que propriamente do centro, no sentido em que começa no povo de Deus em geral e isso é muito interessante de estudar”.

Entre os planos está também a escrita sobre a sua vida. “Não é de maneira nenhuma uma autobiografia, mas gostava de arrumar, sistematizar e a partir daí a fazer uma interligação de assuntos, de coisas onde, de uma maneira ou outra, estive desde os anos 60, desde a minha juventude. Tenho dossiês e dossiês de correspondência recebida”, diz. “A ideia seria perceber como é que essas coisas passaram por mim e eu passei por elas quer [em temas] da História local, quer da História do País, quer da História da Igreja.”

Ofertas de norte a sul

À entrada do escritório, onde habitualmente trabalha, junto à casa da família, no centro de Torres Vedras, uma pintura exibe o seu retrato ao lado de outros prelados portugueses que nasceram na Diocese do Porto ou ali foram bispos titulares: D. Manuel Martins e D. Américo Aguiar (respetivamente antigo e atual bispo de Setúbal, ambos naturais de Leça do Baldio), D. António Francisco dos Santos (bispo do Porto entre 2014 e 2017) e D. Armindo Lopes Coelho (que esteve à frente da diocese entre 1997 e 2007). Além dos livros de História, que forram grande parte das paredes disponíveis, há prateleiras com dezenas de ofertas que foi recebendo ao longo dos anos: medalhas, canecas, placas de homenagem, galhardetes. Muitas destas lembranças foram-lhe dadas quando era Bispo do Porto, função que exerceu entre 2007 e 2013, antes de ser nomeado Patriarca de Lisboa e depois Cardeal. “Ofereciam-me nas visitas pastorais”, recorda, dando conta, também, da existência de uma placa que lhe deram num centro republicano. “Também ia lá”, conta, divertido, revelando que faz questão se ser ele próprio a organizar tudo.

Outros presentes provêm de locais tão diferentes como Portimão, Pinhel, Portalegre, Sobral de Monte Agraço ou Porto Santo. Também há crucifixos e imagens de alguns santos, como João Paulo II e São Paulo, bem como algumas pinturas e esculturas. Na sala maior (são duas), o Patriarca Emérito preserva uma réplica de uma cadeira usada pelo Papa Bento XVI, na visita ao Porto em 2010. “Quando vim para Lisboa, deram-ma. No Vaticano, deve estar a original”, refere. É também ali naquele espaço que guarda a maioria dos livros. “Em princípio, irá depois para o Seminário dos Olivais. É uma biblioteca, sobretudo, de História da Igreja.”

O Patriarca Emérito no Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte. Foto: Fábio Oliveira/RR
O Patriarca Emérito no Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente. Foto: Fábio Oliveira/RR
Pormenores do escritório de D. Manuel Clemente. Foto: Fábio Oliveira/RR
O escritório de D. Manuel Clemente reúne muitos presentes que lhe deram ao longo dos anos, entre os quais galhardetes. Foto: Fábio Oliveira/RR
O escritório de D. Manuel Clemente reúne muitos presentes que lhe deram ao longo dos anos, entre os quais galhardetes. Foto: Fábio Oliveira/RR

Apesar de ter deixado de morar em Lisboa, quando, depois de atingir a idade limite, deixou de ser Patriarca de Lisboa, manteve “um cantinho na Casa Patriarcal”, na Portela. “Ainda ontem estive lá o dia inteiro a receber gente. Não vou fazer as pessoas virem até cá. Vou lá eu”, diz. Aos 76 anos, o homem que, entre outras distinções, recebeu o Prémio Pessoa (em 2009), continua atento à atualidade.


“Dizia que gostava de ver a História da Igreja [contada] a partir das periferias, não de onde o Evangelho partiu, mas onde chegou, como foi aceite, como é que a partir daí se fizeram comunidades cristãs, etc. Várias vezes pensei nisso. Os anos foram passando – os 77 estão aí à porta. Não sei se terei tempo, mas é bom imaginarmos.”

Cita o Papa Francisco, quando fala de uma “terceira Guerra Mundial aos pedaços” para descrever o atual contexto internacional, marcado por conflitos e guerras, e diz que a recente operação policial no Martim Moniz, que envolveu migrantes, mostra que não basta criar uma sociedade multicultural, “com muitas culturas, umas ao lado das outras, sem interligação”. É preciso uma “sociedade intercultural”, como quando “acolhemos alguém em nossa casa, com simpatia e com disponibilidade”, sabendo que a pessoa “tem de ver a casa onde está”. “Portanto, na ligação destes dois motivos (acolhimento de quem vem e atenção e respeito da parte de quem vem) que se vai fazendo um intercâmbio e uma partilha daquilo que cada um traz e necessita”.

Uma tarde dedicada às irmandades e confrarias

Como em tantos dias, naquele domingo em que a Renascença o acompanhou, D. Manuel Clemente tinha na agenda uma conferência, desta vez dirigida aos membros da Irmandade do Senhor Jesus da Boa Morte, em Povos, Vila Franca de Xira. “Pediram-me para falar sobre irmandades e confrarias e depois para celebrar missa”, revela o bispo, que aproveita, ainda, o fim da manhã para trabalhar um pouco. Tal como fez ao longo da vida, faz questão de continuar a conduzir (na semana anterior, tinha ido sozinho ao Porto). “Sinto-me bem, graças a Deus.”

Naquela tarde, chuvosa e fria, o relógio passava pouco depois das 15h30, quando chegou ao Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte, onde em dias limpos é possível avistar o Tejo e a Lezíria. À sua espera, estavam mais de 50 pessoas, incluindo uma das vereadoras da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira que o recebeu com um presente, um livro sobre o Convento de Santo António, situado nas redondezas.

Aos 76 anos, o Patriarca Emérito continua a fazer questão de conduzir. Foto: Fábio Oliveira/RR
Aos 76 anos, o Patriarca Emérito continua a fazer questão de conduzir. Foto: Fábio Oliveira/RR
O Patriarca Emérito visita o Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte, concelho de Vila Franca de Xira. Foto: Fábio Oliveira/RR
O Patriarca Emérito visita o Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte, concelho de Vila Franca de Xira. Foto: Fábio Oliveira/RR
D. Manuel Clemente foi ordenado bispo há 25 anos. Foto: Fábio Oliveira/RR
D. Manuel Clemente foi ordenado bispo há 25 anos. Foto: Fábio Oliveira/RR
O Patriarca Emérito no Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte, concelho de Vila Franca de Xira. Foto: Fábio Oliveira
O Patriarca Emérito no Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte, concelho de Vila Franca de Xira. Foto: Fábio Oliveira
À entrada do escritório, uma pintura exibe o seu retrato ao lado de outros bispos ligados à Diocese do Porto. Foto: Fábio Oliveira/RR
À entrada do escritório, uma pintura exibe o seu retrato ao lado de outros bispos ligados à Diocese do Porto. Foto: Fábio Oliveira/RR

Ainda antes de tomar a palavra, e depois de lhe apresentarem a Igreja, David Silva, o presidente da assembleia geral da Irmandade, lembrou que D. Manuel Clemente estava no concelho, quando se soube, há 25 anos, que tinha sido nomeado bispo pelo Papa Bento XVI. “Foi numa missa de sábado às sete da tarde em que estava a substituir o pároco, na altura o Padre Vitor Gonçalves. O Evangelho era: “Aí vem o Esposo”, recordou o responsável, contando que foi graças ao impulso de D. Manuel Clemente, que a Irmandade, depois de uns anos “adormecida”, voltou a ter atividade regular.

Durante a sua intervenção, de pé e sem recurso a quaisquer notas, o Patriarca Emérito falou sobre a origem e o papel das irmandades na sociedade portuguesa. Tal como fizera durante a manhã, na missa em Torres Vedras, voltou a lembrar a Faixa de Gaza – naquele domingo, dia 19, o Hamas libertara as primeiras três reféns do grupo de pessoas detidas desde 7 de outubro de 2023. “Esperemos que esta trégua vá para a frente e floresça a esperança”, desejou naquele território que acabou por marcar, também, a sua ascensão ao episcopado.

Dos últimos 25 anos, D. Manuel Clemente recorda momentos marcantes como o Encontro Ibérico de Taizé, em 2010, no Porto, e a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, em 2023. “A minha vida episcopal passou-se entre aquilo que é habitual, que é acompanharmos as comunidades, ter este esforço de união, de aproximação, etc. – porque um bispo anda por todo o lado aproxima, põe o centro na periferia e a periferia no centro - e momentos mais fortes em que toda a gente é mobilizada”, diz. E sublinha: “Isto revitaliza e é uma experiência forte da Igreja”.

Olhando para trás, o Patriarca Emérito diz que a sua intenção foi partilhar o legado que recebeu da família e da comunidade. “Pelos sítios onde andei, quis a transmitir a verdade, a beleza e a bondade da proposta cristã”, assume, reconhecendo que houve também momentos difíceis, como a crise dos abusos sexuais. “Era uma realidade que se tinha de enfrentar”, afirma, reconhecendo que “nem sempre tudo foi como poderia ter sido”. “Creio que a Igreja em Portugal tem feito um bom trabalho, que é estimulante para a sociedade em geral.”

No Santuário do Senhor Jesus da Boa Morte, aproxima-se o fim da tarde. A conferência dá lugar à missa, a segunda do dia para D. Manuel Clemente, e depois a um pequeno lanche entre todos. Os afazeres do Patriarca Emérito para aquele dia ficam concluídos. Não é bem assim, refere. “Ainda tenho de voltar para casa e rezar Completas.”

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