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Entrevista a D. Rui Gouveia

Católicos podem "fazer a diferença" na defesa da liberdade, diz novo bispo auxiliar de Lisboa

13 fev, 2025 - 06:02 • Ana Catarina André

D. Rui Gouveia prepara-se para acompanhar de perto a pastoral das prisões e para estar próximo das paróquias e dos movimentos. “Venho de coração aberto para dar a minha vida”, diz.

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Os católicos devem ter um papel ativo na política e na defesa da liberdade, afirma D. Rui Gouveia, o novo bispo auxiliar de Lisboa que vai ser ordenado no próximo domingo, na Igreja do Mosteiro de São Vicente.

Em entrevista à Renascença, D. Rui Gouveia defende que é através da amizade que a Igreja se pode aproximar das comunidades migrantes, incluindo as que estão mais distantes do cristianismo, e diz que a Igreja tem feito "um esforço profundo" para cuidar das pessoas que se sentem vítimas de abuso.

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Aos 49 anos, o até agora vigário-geral da Diocese de Setúbal prepara-se para trabalhar na pastoral das prisões e para acompanhar de perto as paróquias do Termo Ocidental, como Cascais e Rio de Mouro, e do Termo Oriental, como Alverca e Sacavém.

Nasceu em Joanesburgo, na África do Sul, tem raízes madeirenses, estudou química e mais tarde teologia, em Lisboa, fez parte do seu percurso académico também em Madrid, Espanha. Até há pouco tempo, fazia parte do presbitério de Setúbal. Como é que estas geografias contribuíram para o padre em que se tornou, agora nomeado bispo pelo Papa Francisco?

É verdade que a minha vida é um género de manta de retalhos, mas quis Deus que assim fosse. Sou filho de emigrantes que foram para a África do Sul à procura de melhores condições de vida. Depois regressámos à Madeira, depois vim para aqui, [para Lisboa] estudar. O meu discernimento vocacional foi muito ligado à Diocese de Setúbal e, portanto, aterro aqui desta maneira e penso que trago um bocadinho de cada terra por onde passei, e creio que Lisboa também se vai apresentando com características multiculturais. Pode ser que isso ajude a situar-me.

Estudou química e a seguir teologia. São áreas que se tocam de alguma maneira?

A teologia é outra química [risos]. Quando estudei teologia, ajudou-me muito a química, especialmente para estruturar um pensamento lógico, com princípio, meio e fim. Ao estudar filosofia, as línguas e depois teologia, apercebi-me que a química, no fundo, me deu esse aparato para me situar, entender e mergulhar nestas temáticas e nestas matérias teológicas.

"A mudança pode começar dentro da Igreja, em cada uma das pessoas que a constituem"

Vai trabalhar com o patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, e com os bispos auxiliares, D. Alexandre Palma e D. Nuno Isidro. Quais são as áreas de atuação que vão ficar a seu cargo, quer geográficas, quer pastorais?

Estou a chegar. O que me foi dito é que irei suceder nesta ação ao D. Joaquim Mendes, que estava ligado às paróquias do termo oriental e ocidental do Patriarcado. Farei o acompanhamento a essas paróquias e estarei também ligado à pastoral das prisões, à vida consagrada e a mais algumas [áreas] de que ainda me estou a inteirar, entre as quais os muitos movimentos que estão presentes na diocese.

Algumas destas áreas são novas para si? Por exemplo, as prisões?

No ano em que estive como vigário paroquial [em 2008, 2009], tive ligação à prisão do Montijo. Ia lá praticamente uma vez por mês. É a experiência que tenho com prisões.

Na carta pastoral que o patriarca de Lisboa dirigiu recentemente à diocese, D. Rui Valério fala do “drama da solidão e da exclusão, da pobreza e da fome” e diz que este Jubileu da Esperança, que estamos a viver, deve ser “um convite a mudanças estruturais na sociedade”. De que mudanças poderemos estar a falar? Por onde é que se deve começar na sua perspetiva?

Creio que a mudança pode começar dentro da Igreja, em cada uma das pessoas que a constituem. Sair de si próprio e estar atento ao outro é uma coisa muito simples que podemos fazer na vida e que começa em casa: estar atento àqueles com quem partilho o mesmo teto, estar atentos àqueles que são meus vizinhos, estar atentos àqueles com quem trabalho e, de alguma maneira, oferecer uma amizade e uma presença que, mais do que um peso ou uma indiferença, pode ser uma ajuda.

Ainda que possa ser, de certa forma, um dado adquirido, concorda que esta atenção ao outro, independentemente de ser na Igreja ou fora dela, tem sido descurada e explica alguns problemas sociais relevantes?

Sim, creio também que a pandemia (não é que seja justificação para tudo) veio acelerar um processo de isolamento das pessoas, trazido provavelmente com os valores que vamos tendo hoje, mas especialmente com o mundo tecnológico que, de alguma maneira, nos empurra para uma virtualidade que não é propriamente uma presença. É outro tipo de presença, mas não deixa de ser virtual. Não é uma presença humana de contacto rosto a rosto. Acho que isso nos faz falta.

Na carta pastoral, o patriarca de Lisboa fala em mudanças na sociedade. São também sociais e políticas estas transformações a fazer?

Penso que sim. Ligamos as notícias e percebemos que há determinados fenómenos que reconhecemos no nosso país, que também existem em outros países, especialmente no mundo ocidental. A nível internacional, há guerras, divisões entre nações. Há fluxos de formas de estar que parecem comuns e que refletem uma mudança de civilização.

No sentido da desumanização?

Parece-me que sim. Claro que há sinais de esperança e tivemos há pouco tempo a Jornada Mundial da Juventude que foi uma grande lição para todos desta humanização que somos chamados a fazer acontecer.

Enquanto bispo como é que pensa contribuir para esta aproximação da Igreja aos que estão mais distantes, aos não crentes, aos indiferentes?

A Igreja está estruturada, a frente de combate são as paróquias e, portanto, creio que as paróquias são sempre berços para as pessoas nascerem na caridade e viverem a caridade ou viverem este amor ao próximo. Estar próximo das paróquias poderá eventualmente estimular e desafiar aqueles com quem poderei cruzar-me a fazerem este caminho.

Em relação às comunidades migrantes, muitas das quais sem qualquer referência cristã, como é que a Igreja pode encetar esse diálogo, essa aproximação, em que o fosso cultural é muitas vezes grande?

Lembro muito de um santo do qual sou devoto, Charles de Foucauld que chegou à Argélia numa determinada etapa da sua vida, já pós-conversão, em que queria anunciar Jesus e se confrontou justamente com isto que está a dizer: um mundo completamente diferente do seu – o que via era justamente uma parede entre um lado e o outro. Aquilo que Charles de Foucauld intuiu, e de uma forma extraordinária, foi oferecer, antes de mais, uma amizade. E a partir daí, então, construir tudo o resto, e o resto vem por acréscimo, certamente. E o resto que digo é o essencial da nossa fé: o anúncio do Evangelho.

Esteve durante mais de uma década ligado à catequese em Setúbal. Considera que se está a fazer o trabalho necessário, nomeadamente na aproximação à linguagem e à realidade contemporâneas?

Parece-me que sim. Existe um novo itinerário de iniciação cristã para as crianças e para os jovens. Tem havido um grande esforço da parte do Secretariado Nacional, juntamente com os diversos secretariados diocesanos, no sentido de atualizar os materiais catequéticos, mas também de fornecer a todos os catequistas a devida formação para que possam desempenhar esta vocação tão bonita, que é a de anunciar a Palavra do Senhor.

Chega a uma diocese ainda marcada pela experiência da JMJ. É possível dizer que os jovens estão hoje mais próximos da Igreja do que em 2023? Acha que a Igreja tem sido capaz de lhes falar sobre temas como, por exemplo, o acolhimento de recasados ou a homossexualidade?

A Jornada foi um acontecimento extraordinário que nos coloca no caminho certo. No início do ser cristão, diz o Papa Bento XVI, na primeira encíclica, não está um conceito, não está uma ideia. Mais do que tudo, está um acontecimento, um encontro. Portanto, as jornadas foram uma oportunidade extraordinária para muitos jovens fazerem este encontro vivo com Jesus e a partir daí caminharem. Há um pressuposto deficitário se começarmos pela dimensão moral. Mais do que tudo é preciso caminhar no sentido kerigmático de que nos fala o Papa Francisco, fazer a experiência do kerigma de que Jesus morreu por mim, deu a vida por mim, ressuscitou e dá-me a sua vida. É um elemento essencial, para a partir daí caminharmos na descoberta daquilo que Nosso Senhor nos pede e na forma como nos pede que vivamos.

Mas não são essas questões mais polémicas que, muitas vezes, afastam os jovens num primeiro contacto?

Poderá eventualmente ser, mas creio que tanto as Jornadas como, por exemplo, a Missão País são experiências em que esta dimensão kerigmática é vivida e experimentada. A partir daí, percebo que fica uma marca que o jovem que faça essa experiência jamais vai esquecer e que o vai, certamente, ajudar a descobrir as razões daquilo que Deus Nosso Senhor lhe pede para viver.

"Os leigos poderão, iluminados pelo Evangelho, dar um contributo na defesa da liberdade"

Nos últimos anos, a vida da Igreja em Portugal tem sido marcada pelo tema dos abusos. Considera que a Igreja tem cuidado das pessoas que têm sofrido com este fenómeno, a começar pelas vítimas naturalmente, mas falando também daqueles que ficaram desiludidos e por isso se afastaram, ou daqueles que possam ter sido acusados injustamente?

É um tema difícil, delicado que nos constrange a todos, que nos entristece e que nos leva a uma dor profunda. Quem não o sente, não está obviamente a olhar bem para estas situações. Creio que a Igreja se vai posicionando no sentido de criar cada vez mais melhores estruturas para aprendermos a cuidar bem das pessoas, para que, obviamente, os abusos não aconteçam. Tanto quanto me vou inteirando, tem havido um esforço profundo da Conferência Episcopal, e nas próprias dioceses, para criar algumas estruturas que possam assistir aqueles que se sentem, de alguma maneira, vítimas de algum processo de abuso.

Mudando de tema, o País tem estado a comemorar os 50 anos do 25 de abril. Que intervenção política se deve esperar dos católicos, quer da hierarquia da Igreja, quer da parte dos leigos?

Estamos a celebrar 50 anos de liberdade. É uma conquista extraordinária. Acho que nos devemos alegrar com isso, mas responsabilizar também. A liberdade é sempre uma tarefa inacabada, e muito rapidamente podemos perdê-la. Os nossos leigos poderão, iluminados pelo Evangelho, dar um contributo na defesa desta liberdade, com tudo o que isso implica. É bom que ganhem esta consciência de que, no meio do mundo, podem fazer certamente a diferença. Por isso, é bom que os políticos católicos, descobrindo os valores do Evangelho, vivam e queiram iluminar o mundo com essa luz que também trazem na sua vida.

E a hierarquia?

Na medida do possível, é bom que ajudem estes políticos a viverem o Evangelho, para serem eles os instrumentos no meio do mundo desse Evangelho que deve brilhar e irradiar.

Mantendo um afastamento, uma neutralidade, em relação a cores partidárias?

A Igreja não está por nenhum partido, como é óbvio. Está mais do que tudo pela verdade, pelo bem comum, pela dignidade da pessoa humana. Portanto, tendo estes três elementos em consideração, tudo é possível. Todas as fações partidárias são possíveis e um político católico, obviamente, deve defender ou deve viver, antes de mais, o que é o Evangelho, para depois poder anunciar, dentro deste contexto, aquilo que deve anunciar e que é chamado a viver.

Refere que todas as fações políticas são possíveis. Não é impeditivo para um católico juntar-se a um partido que defenda ideias contrárias ao Evangelho?

Cabe à consciência da pessoa fazer essa análise. Perante aquilo que a fé lhe diz, cada um é chamado à responsabilidade de perceber se os princípios que o seu partido defende se coadunam com os princípios do Evangelho e a fazer uma opção entre uma coisa e outra.

Vai ser ordenado no próximo domingo. O que os fiéis podem esperar do novo bispo auxiliar?

Venho de coração aberto para dar a minha vida por esta diocese. Mais do que isso não posso dar, porque não tenho mais para dar.

Já começou a conhecer a diocese?

Conheço alguma coisa, porque, como também referi há pouco, vivi cá durante alguns anos. Certamente agora terei outro olhar sobre a realidade porque sou chamado a uma missão muito particular, e isso com certeza que me fará olhar para a realidade de outra forma e com outra profundidade.

Como é que encara essa dimensão de serviço de um bispo?

Em primeiro lugar, não me situo de forma isolada. Situo-me numa comunhão com o Patriarca que sou chamado a auxiliar, como o próprio nome indica. Portanto, a cabeça será certamente o Sr. Patriarca, para a partir dessa comunhão com ele e com os demais bispos auxiliares, fazermos esta transformação que está prevista num programa pastoral, [que contém] aquilo que move o caminho que devemos percorrer – e esse é o meu intuito.

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