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Jubileu dos Artistas

Eduardo Duque. "A Igreja muitas vezes não é capaz de transmitir como concebe a cultura"

15 fev, 2025 - 09:00 • Henrique Cunha

No fim de semana do Jubileu dos Artistas e do Mundo da Cultura, o diretor do Departamento Arquidiocesano de Braga para a Cultura diz que, por vezes, a Igreja tem dificuldade em se relacionar com o Mundo da Cultura. Em entrevista à Renascença, o padre Eduardo Duque fala de Braga, Capital Portuguesa da Cultura e refere que o cardeal português D. Tolentino "é uma grandíssima referência" da cultura.

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No fim de semana do Jubileu dos Artistas e do Mundo da Cultura, o padre Eduardo Duque do Departamento Arquidiocesano de Braga para a Cultura - cidade que este ano é Capital Portuguesa da Cultura -, destaca a importância do evento que "coloca a cultura na agenda".

O responsável reflete também sobre a relação da Igreja com a cultura e diz que se deveria "investir mais na cultura", no nosso país. Para o sacerdote, o cardeal português D. Tolentino de Mendonça "é uma grandissima referência" da cultura que "é capaz de ser mais reconhecido como expoente da cultura fora da Igreja do que propriamente na Igreja".

O Jubileu dos Artistas e do Mundo da Cultura, que se realiza de até ao dia 18 de fevereiro, reúne mais de 10 mil participantes inscritos de mais de 100 países dos cinco continentes, incluindo, naturalmente, Portugal e vários países lusófonos. Que importância tem este evento no contexto do Ano Santo?

Antes de mais, eu creio que tem toda a importância, porque está a colocar a cultura na agenda. E, ao colocar a cultura na agenda, naturalmente, a Igreja, como guardiã de um património que se prende, acima de tudo, com a dignidade do ser humano, ao colocar esta dimensão cultural na agenda, está, no fundo, a dar importância, a dar relevo à dimensão da cultura da pessoa.

Portugal valoriza pouco o facto de D. José Tolentino de Mendonça ter sido nomeado o Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação?

Eu acho que não, acho que pelo contrário. Acho que o D. Tolentino é uma grandíssima referência, talvez até a referência expoente de Portugal no que toca à cultura, dentro e fora da Igreja. Eu até creio que é capaz de ser mais reconhecido como expoente da cultura fora da Igreja do que propriamente na Igreja, o que revela a dimensão, o tamanho do D. Tolentino.

Era precisamente isso que eu queria sublinhar, o facto de ser mais reconhecido extra do que intramuros.

Acho que sim, acho que sim, não só pela forma como escreve, de onde ele veio, já daquele passado de poesia, de uma literatura bem trabalhada, bem escrita, mas depois também toda uma forma simples que ele tem e próxima de chegar às pessoas. Ele tem muita facilidade em transmitir o seu pensamento, em que acredita, a forma como viu o mundo. A literatura do D. Tolentino é uma forma, ele aquilo que nos transmite é a forma como ele pensa a realidade. Ele vê a realidade com a mente e com o coração e creio que isso está muito explícito na literatura dele. Quem é sensível ao mundo da cultura é profundamente sensível ao mundo do D. Tolentino, sem dúvida, ao mundo cultural dele.

Padre Eduardo, muitas vezes temos uma ideia de que o chamado mundo da cultura é algo avesso às questões da fé. Até que ponto a percepção corresponde à realidade?

Se corresponde à realidade, e nós sabemos que em muitos casos corresponde, deve-se muito à nossa culpa. Isto é, eu creio que a igreja muitas vezes não é capaz de transmitir convenientemente a forma como ela concebe a cultura e a igreja tem uma forma muito própria de entender a cultura e não é de agora. De um modo muito particular, esta dimensão da cultura advém-lhe através da Gaudium et Spes, porque a Gaudium et Spes coloca a cultura na agenda do dia, como nós dizíamos há bocadinho, mas de uma forma inovadora. Tradicionalmente, a cultura é vista como algo que se preserva, quase como um museu que guarda memórias. De facto, a igreja é uma guardiã do espólio e do polo histórico, dos costumes, das tradições, das comunidades, mas não é propriamente essa a dimensão que a Gaudium et Spes valoriza na cultura. A Gaudium et Spes, aquilo que nos vem, no fundo, dizer é que a cultura não é exclusivamente um património material ou imaterial. A cultura é, não é algo que se tem. A Gaudium et Spes vê a cultura como algo que se é. Neste sentido, creio que a Gaudium et Spes é precursor, é um texto profundamente precursor. E como é que então a igreja vê a cultura? Isto é complexo de explicar. O Cristianismo, muitas vezes as pessoas criticam a religião, o cristianismo, o catolicismo, de não se preocupar com a pessoa e de se preocupar somente com aquilo que é sobrenatural, transcendente, a alma, etc. A Gaudium et Spes aquilo que nos vem dizer é exatamente ao contrário. Porquê? Porque o Cristianismo, diz-nos a Gaudium et Spes, é especialista em humanidade e o homem é o caminho da igreja, o homem e a mulher, o ser humano é o caminho da igreja. Então, vá lá, é na descoberta do ser humano, do seu ser, da sua vocação, que nós descobrimos o próprio Deus, porque o verbo é a chave do próprio homem. Então, nós só descobrimos Deus através do ser humano. E há uma definição que a Gaudium et Spes apresenta de cultura que eu creio que é extraordinária. Porque aquilo que diz é que a cultura é tão natural ao ser humano que a sua natureza não tem nenhum aspecto que não se manifeste na cultura. O que é que isto quer dizer? Que tudo o que é humano tem expressão na cultura. Eu acho que é exatamente isto que nós, muitas vezes, não conseguimos passar à sociedade.

Ou seja, a igreja ainda não descobriu o caminho certo para lidar com esta franja da sociedade, com este mundo da cultura?

Possivelmente, estamos a descobrir. A igreja já descobriu. O que eu acho é que não está a comunicar convenientemente com a sociedade, são coisas diferentes. Porque ao termos um documento tão extraordinário como é este de que estou a falar, resultante do Vaticano II, a Gaudium et Spes, que é um documento, uma constituição pastoral excelente, brilhante, a forma como fala sobre a cultura, que é, acima de tudo, não como um museu, mas como uma dimensão que se manifesta no ser humano. E quanto mais entrarmos no íntimo, na vocação do ser humano, mais aí encontramos e descobrimos o próprio Deus. É nesta dimensão que nós encontramos a cultura, a cultura como a identidade da pessoa. A cultura é natural ao ser humano e, então, como disse a própria definição, é tão natural ao ser humano esta dimensão cultural que o ser humano não tem nada em si que não se manifeste na cultura. Então não é um museu, não é alguma coisa que nós temos, não. É a nossa vida, nós somos expressão cultural. E é nesta expressão cultural que nós vamos descobrindo Deus, é através do ser humano que nós vamos descobrindo Deus.

Na Arquidiocese, neste ano de Braga, capital portuguesa da cultura, que eventos gostaria de destacar?

Bem, mais do que propriamente aqueles eventos grandes como nós sabemos que são, de facto, que são agregadores de muitas pessoas, de muitas comunidades, de gente do estrangeiro, etc., como é a Semana Santa, como é a própria vivência da Páscoa, que congrega muitas famílias vindas de Norte a Sul e do estrangeiro, imigrantes que se reúnem etc; mais do que propriamente isto, eu creio que nós devemos estar atentos a outras realidades, devemos estar atentos aos pequeninos encontros de cultura que a Capital Portuguesa da Cultura nos vai proporcionando, através de exposições, através de concertos, manifestações culturais, através de várias dinâmicas, no fundo, ligadas à cultura, e que nos vai proporcionando formas de nós acedermos e de nos revermos nesta oferta cultural que nos é dada, de um modo muito particular, este ano de 25, de 2025.

Em Portugal, a cultura continua a ser o parente pobre do orçamento?

Creio que vamos estando cada vez mais sensíveis para essa mudança. Nós estamos a viver tempos difíceis. Sabemos que não é fácil termos dinheiro para todas as rubricas, para a educação, para a dimensão social, para retirar as pessoas da pobreza, para esta questão agora da defesa, para a proteção das famílias, etc., etc., etc. Quer dizer, nós temos que ser sensíveis e não podemos pensar que... Nós somos um país que não somos ricos. Então temos que, no fundo, ir partilhando o pouco que temos pelas várias dinâmicas, várias dimensões, mas sim, estou de acordo consigo. Dever-se-ia investir mais na cultura, porque, como dizíamos há bocadinho, porque é aí na cultura que nós encontramos a maior expressão do ser humano, por isso, à medida que nós formos penetrando e entrando nesta dimensão cultural, também estamos a entrar na profundidade do ser humano. Por isso, o dinheiro que possamos, que o governo, que o Estado, possa investir na cultura, eu creio que é investir no ser humano. Neste sentido, au acho que a Igreja nos últimos tempos tem estado sensível e a Igreja em Braga tem estado sensível, porque temos procurado exatamente esta interligação entre a Igreja e a Câmara Municipal, nas suas várias dinâmicas, nas suas várias expressões, para darmos valor, no fundo, às várias expressões culturais.

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