05 mar, 2025 - 18:01 • Alexandre Abrantes Neves, enviado especial a Roma
Lá fora, o som das ambulâncias. Cá dentro, o barulho da impressora que vai dando as senhas a quem chega para uma consulta. Os olhos perdem-se na dezena de ecrãs à direita da porta de entrada, onde, numa lista impossível de contabilizar, se leem centenas de especialidades. O único ponto calmo no piso térreo do hospital Gemelli é a eucaristia diária, que todos os dias ali se reza na capela.
No meio das batas brancas, azuis e verdes, André Fidanza mostra-se curioso com a presença de um jornalista ali. Avisa-nos que o inglês é enferrujado, mas rapidamente deixa isso de lado, quando percebe que o tema da conversa passa pelo hospital onde se formou e trabalha como médico fisiatra.
“Este é um local maravilhoso para trabalhar, com paixão, para ajudar as pessoas a lidar com a dor. Pacientes e médicos têm uma relação com Deus e, a partir daí, constroem uma relação de família, sentem-se mais confortáveis”.
Vaticano
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Mesmo ao lado da estátua de São João Paulo II, este médico vai enumerando as provas de inspiração católica que existem por aquele enorme edifício cinzento, integrado no campus da Universidade Católica do Sagrado Coração. Há leituras publicadas diariamente no site, houve auditórios a ganhar o nome de religiosos como homenagem e também se oferece acompanhamento espiritual aos doentes. E que não é exclusivo para católicos.
“Acho que só há um Deus - nos judeus, nos muçulmanos... As pessoas perto de nós conseguem compreender os nossos sentimentos. A religião é importante nos momentos em que estamos doentes, para todos”. O Papa só chegou há 20 dias, mas também aqui já se parece pensar em “todos, todos, todos”.
Em 1964, as portas deste hospital abriam pela primeira vez, num terreno doado anos antes ao padre e médico Agostino Gemelli. Mas já lá vamos, à história desse homem que fez de tudo para quebrar fronteiras entre ciência e religião.
Atualmente com mais de 1.600 camas, o policlínico Gemelli é o segundo maior hospital de Itália e o maior de Roma. Por aqui, trabalham mais de 5.000 profissionais todos os dias, divididos entre cerca de 260 unidades. As descobertas científicas e as inovações médicas já colocaram o Gemelli nas bocas do mundo, mas habitualmente as atenções neste hospital estão sempre viradas para cima.
No último piso, nos anos 1980, o Vaticano decidiu construir uma suíte papal. Dividida em oito divisões, ali há espaço para o quarto do Papa (onde Francisco está desde 14 de fevereiro), salas de estar, capela e até uma receção. João Paulo II passou ali tantas temporadas que chegou a referir-se àquele espaço de mobílias brancas e simples como o “Vaticano terceiro”, a seguir à Praça de São Pedro e a Castel Gandolfo.
A chegada do Vaticano aqui – ao “hospital dos Papas” – tornou-se no exemplo máximo de como é possível juntar a religião à medicina. Era isso mesmo que defendia Agostino Gemelli, o visionário que dá nome a este hospital.
No século XX, este sacerdote com formação em medicina arriscou e pediu à Igreja para discutir e encontrar soluções para conciliar a prática religiosa com a ciência. O primeiro desafio foi lançado aos bispos de todo o mundo, quando lhes apelou para darem mais atenção à saúde pública e para melhorarem a higiene nas igrejas.
Ao mesmo tempo, escreveu um manual de medicina pastoral, que lhe permitiu dar as primeiras pisadas como professor. Aí, dedicou-se a mostrar à prática clínica como se podem aplicar princípios católicos, como o respeito pela dignidade humana, o serviço aos outros, a verdade a justiça.
O sucesso foi muito e, em 1921, viu aprovado o projeto de construção de uma universidade e que tinha desenhado meticulosamente com Filippo Meda, um político e banqueiro italiano. Ainda inaugurou e foi reitor da Universidade Católica do Sagrado Coração de Roma, mas já não assistiu à abertura do hospital Gemelli, em 1964, cinco anos depois da sua morte. Mas, por lá, os seus ensinamentos ainda persistem.
Todos os funcionários do Gemelli estão obrigados a trabalhar sob um rigoroso código de conduta. Escrito a partir dos princípios da doutrina social da Igreja, tem cerca de trinta páginas e regula todo o contacto entre médicos, doentes e familiares.
Cada um dos capítulos chega a ter mais de vinte alíneas, e comporta muitas obrigações morais e religiosas, como o dever de cada médico de se informar e de respeitar as exigências dos pacientes e das famílias, a nível espiritual. Entre tantas normas, há também equilíbrios difíceis a cumprir: os médicos devem informar adequadamente os doentes de todas as alternativas terapêuticas e, simultaneamente, evitar partilhar informação sobre inovações médicas, que possa manipular ou restringir o poder de escolha.
“Somos mendigos do Céu”, escreveu o Papa na homili(...)
Para Vicenzo, estas questões exigem-lhe reflexão acrescida todos os dias. Está a terminar a especialização em pediatria e o contacto ético com crianças doentes e os pais colocam-no em dilemas diários. Mas foi preparado para isso desde o primeiro dia que entrou neste campus, como caloiro de medicina.
“A primeira cadeira do curso é mais geral sobre Deus, mas as outras duas são sobre bioética. Estas cadeiras fazem-no pensar sobre casos concretos, não tem de ser relacionado com Deus e o fim da vida. Temos de encarar a vida e a morte no nosso trabalho e aquilo faz-nos pensar”, esclarece à Renascença, mesmo ao lado da estátua de São João Paulo II, no átrio do hospital.
Este lugar é quase como uma cancela para a mente de Vicenzo: dali para a frente, os problemas “ficam arrumados” e só regressam no dia seguinte, quando voltar a vestir a bata azul. O cansaço acumulado, de turnos uns atrás dos outros, fá-lo abandonar rapidamente, mas uns metros à frente há quem, sem saber, esteja relacionado com este estado de espírito.
“Isto dá-nos mais sensibilidade, aos casos”, considera Ariana, médica interna em cardiologia, que diz logo sentir o peso na consciência por deixar o turno desfalcado por uns minutos. “Aqui, achamos que há vida depois da morte. Tentamos tudo para salvar vidas”, conta, como quem tenta explicar a escolha de trabalhar e estudar aqui.
Mais do que as atividades na capela, este hospital utiliza palavra de Deus “para dar esperança aos doentes, mostrar que alguém está lá para eles”. E, por isso, Ariana, não volta ao serviço, sem antes pegar nesse ensinamento e deixar uma mensagem ao mais famoso paciente, que por aqui anda já há várias semanas.
“Fique forte. Estamos à sua espera para regressar ao Vaticano”. A janela do 10.º andar está aberta. Resta saber se o Papa tem ouvido esta onda de milhares de orações.