23 mar, 2025 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
“Espero que os nossos padres e os nossos bispos se pronunciem mais sobre os problemas dos jovens."
Na véspera do Dia Nacional do Estudante, Filipe Moisés Francisco, o entrevistado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia, lamenta que "não se ouve os bispos a falarem dos problemas dos jovens”.
Filipe, que está a terminar doutoramento na área da engenharia ambiental, considera que se corre o risco de a Igreja acentuar a sua "dificuldade relacional com os mais jovens".
"Não estamos a aproveitar suficientemente bem o período em que temos a graça de ter o Papa Francisco", atira o estudante, que critica as vozes que questionam o "todos, todos, todos”, porque “quando estamos a querer excluir e a questionar quais são os 'todos, todos, todos', já estamos a dizer que há alguns que já estão excluídos”.
“Se isto é assim, devo dizer que nos arriscamos, daqui a uns anos, a que a Igreja sejam as paredes, e a Igreja não são só as paredes dos edifícios, são as pessoas”, alerta.
“Acho mesmo fundamental que se fale dos problemas que as pessoas têm hoje, porque uma igreja que não fala dos problemas das pessoas, e que está voltada, única e exclusivamente para as questões da moral, não pode esperar que os jovens se aproximem”, insiste.
O jovem identifica a falta de alojamento como uma das grandes dificuldades dos estudantes se responsabiliza os governos pela situação. A este junta-se o problema dos baixos salários e a incerteza laboral.
“Num país que ainda não gosta de pagar bons salários, esta questão da habitação é impossível de se dissociar também do pagamento dos bons salários”, sentencia Filipe Moisés Francisco.
"A sucessão de crises é uma preocupação para o país”, diz, considerando que a crise política que estamos a viver “era evitável” e decorre de “uma falta de responsabilidade do Governo”.
"A sucessão de crises é uma preocupação para o país"
Comecemos pelas principais dificuldades dos estudantes. O problema do alojamento está à cabeça desta lista de dificuldades?
Sim. Eu diria que há uma série de dificuldades relativas aos estudantes. Por um lado, a questão do alojamento, sem dúvida, porque é uma despesa que acresce ao fim do mês, juntamente com o pagamento de propinas e de todas as despesas que os estudos acarretam. Isso torna-se muito difícil, se não houver a ajuda dos pais. Mas diria também que outro dos grandes problemas que existem hoje para os estudantes, principalmente aqueles que estão prestes a terminar o seu período estudante, é a falta de algumas perspetivas de futuro e de estabilidade. Num país que ainda não gosta de pagar bons salários, esta questão da habitação é impossível de se dissociar da questão do pagamento dos bons salários.
Os alojamento, além de serem caros, são escassos, o que impulsiona ainda mais os preços, imagino. Chegou, aliás, a ser notícia, do abandono de estudantes sem capacidade financeira...
Exatamente. Aliás, repare que tivemos, há dois dias, a senhora ministra do Trabalho a dizer numa entrevista que não era responsabilidade do governo a questão do alojamento, da habitação. Acho que é surreal pensarmos que um ministro pode sequer achar que a habitação não é um problema do governo.
Lembro-me que, quando estava a sair da faculdade, em 2018, estavam a surgir na zona do Polo da Asprela, alguns prédios, residências que foram surgindo, inclusivamente ainda durante este ano, ali junto Faculdade de Engenharia. Aparentemente, a oferta está a aumentar, a questão do preço é que não está a ser controlada pelo mercado. Por muito que nos digam que o mercado vai autocontrolar os preços, isso não é verdade. Acho que há soluções que têm de ser procuradas, o Governo tem fortes responsabilidades nisso. É verdade que vieram com o paliativo da descida do IMT e isso, efetivamente, ajuda a quem tiver um parceiro ou uma parceira, ou até uma ajuda dos pais para comprar a casa, ajuda a ter um diferencial no preço, mas a verdade é que, se pensarmos bem, os mais pobres dos pobres continuam a não ter acesso.
"Acho que o nosso clero (…) está muito acomodado"
Na tua perspetiva, o Estado não está a fazer tudo o que está ao seu alcance para tentar minimizar o problema?
Eu diria que não, até porque imaginamos que nesta questão de baixarmos o IMT, aliás notícias saíram logo de seguida, conseguiu-se aumentar a procura e consequentemente os preços, a seguir. Voltaram a subir também. Portanto, acaba por ser um paliativo para alguns, para uma franja dos jovens, mas não resolve o problema no seu todo.
Referiste o facto de não haver perspetiva para muitos, no final de um curso. Por vezes a solução é mesmo emigrar?
A propósito disto, gostaria de dizer, e são notícias recentes, que cerca de 60% dos jovens entre os 15 e os 24 anos têm vínculos precários e, dessa franja, cerca de 95% dos jovens ainda está a viver com os pais. Isto é algo que nos deve preocupar a todos, mas a questão da habitação também entra aqui, obviamente. Estamos a viver um período, não é só agora, já vem detrás, no qualse verifica uma desvalorização do trabalho enquanto valor em si. O Sérgio Godinho tem uma canção que diz que "é a trabalhar que a gente paga o jantar, mas é também a trabalhar que se fez a faca para o cortar". Ou seja, isto quer dizer que o trabalho tem um valor monetário, é verdade, mas também tem um valor por si só, que gera riqueza para todos nós.
Quando nós dizemos que estes grandes ídolos que nos aparecem, Elon Musk e Bezos e outros, são os nossos ídolos porque investem e supostamente geram riqueza, é bom pensarmos que quem gera riqueza é quem trabalha para eles. As pessoas todas e os jovens que vão trabalhar geram riqueza para as empresas, não são só os patrões que têm as grandes ideias de investimento que o fazem.
"Arriscámos a que, daqui a uns anos, a Igreja sejam as paredes"
A esse respeito, lembro que o próprio Papa diz que, para além da questão económica, há uma questão de dignificação e de realização humana que está indelevelmente ligada ao trabalho. Não é só efetivamente o facto de a pessoa poder ou não produzir, ou ser julgada por aquilo que produz e consome, é por se realizar. Nestas perspetivas de futuro imediato para os jovens, também falta essa ideia?
Exatamente. E tem toda a pertinência o que o Papa Francisco alerta, precisamente por isso, porque, se o nosso trabalho não for dignificado, se não for valorizado e se nós próprios não formos valorizados, continuaremos sempre a viver de forma precária e continuaremos sempre a alimentar este mercado que continuará a ser precário se não houver um forcing, digamos assim, para que os salários sejam aumentados.
Devo dizer a este propósito que o Papa Francisco tem uma frase, numa das suas encíclicas, em que diz que nós estamos num período de uma economia que mata. É verdade, isto deve ser seriamente ouvido. Estamos numa fase em que os ricos dos mais ricos conseguem convencer a classe média, que é a maioria, de que os pobres dos pobres são os culpados pelo facto da classe média não estar neste momento a conseguir viver com a qualidade de vida que mereceria ou com acesso aos serviços que gostaria de ter com qualidade, quando isso não corresponde à realidade.
Esses pobres dos mais pobres continuam a precisar de assistência e não são, de todo, os culpados das dificuldades que a classe média enfrenta. Até gostaria de dizer que estes mais ricos dos ricos que nos convencem disto são os que, geralmente, são contra o Estado em tudo e mais alguma coisa, mas usufruem do Estado para fazerem os seus investimentos. A Bárbara Reis, do Público, escreveu um texto fantástico cujo título é "Amazon recebeu 12 milhões ou como os ricos adoram o Estado". É um texto que eu gostaria de recomendar aos ouvintes porque mostra, precisamente, como o Estado ajuda muito estas pessoas que, depois, não gostam muito de redistribuir a riqueza. Isso é um problema para todos nós.
Estamos num momento de nova crise política em Portugal. Esta sucessão de crises é uma preocupação para o universo estudantil?
Diria que é uma preocupação para o país no geral e eu tenho uma opinião muito própria em relação a isto: acho que tudo isto era evitável, não precisaríamos ter chegado até aqui. Há notícias de "background" que dizem que o próprio Presidente da República foi contra a apresentação da moção de confiança.
"Não estamos a aproveitar suficientemente bem o período em que temos a graça de ter o Papa Francisco"
Estamos a falar, de facto, de uma crise política provocada pelos políticos e não pela conjuntura internacional ou por um fator gravíssimo do ponto de vista económico ou militar...
Repare que neste caso em particular é impossível dissociarmos as duas coisas, sem falarmos também do nosso caso nacional.
É uma crise que foi provocada pelos próprios políticos?
Sim, sem dúvida, sem dúvida. Podemos dizer que era escusado termos chegado até aqui, precisamente porque não havia razões para isso, por muito criticável que pudesse ter sido o último ano. Esta moção de confiança era escusada. Sabia-se muito bem o desfecho que ia ter e foi uma falta de responsabilidade do Governo termos chegado até aqui.
No plano da pastoral universitária, que outros problemas, dificuldades identificas?
Do ponto de vista da pastoral universitária, tive alguns apontamentos pessoais com a pastoral, nomeadamente na participação na JMJ e também em algumas celebrações do núcleo universitário católico. Devo dizer que a pastoral universitária é um bom meio de os jovens poderem integrar-se, até mesmo de se conhecerem entre si e desenvolverem a sua convivência, dentro dos valores que são cristãos e daqueles que se identificam com esses valores. Isso pode ser fundamental para todos nós. Neste momento, diria que a pastoral universitária atravessa os mesmos desafios que a Igreja atravessa em relação aos jovens. Esta questão da proximidade da Igreja com os jovens tem de ser cultivada, deve ser cultivada. Deveria ter-se aproveitado muito os frutos da JMJ. Não sei se estamos a chegar a esse ponto.
"Acho que a Igreja está a funcionar em várias velocidades"
Pois, queríamos perguntar-lhe, primeiro, como se pode definir o que foram os frutos da JMJ e se, passados já quase dois anos, não se instalou uma certa letargia...
Acho que nós ainda não estamos a aproveitar suficientemente bem este período em que temos a graça, porque acho que é mesmo uma graça termos o Papa Francisco. Não estamos a aproveitar devidamente do ponto de vista sinodal, não estamos a aproveitar devidamente do ponto de vista pastoral toda esta herança, todo este legado que ele vai deixar à Igreja. Acho que a Igreja está a funcionar em várias velocidades, e eu posso-lhe falar mesmo desta questão do sínodo: era suposto nós sermos inquiridos nas paróquias e fazer-se um relatório para chegar a Roma. A nossa paróquia não teve nenhum. Eu respondi a um inquérito que estava online, divulgado na Diocese. Neste segundo ano, supostamente, os trabalhos deveriam ter chegado também às populações e voltaram a não chegar. Pelo menos, eu não tive essa perceção.
O que é que eu quero dizer com isto? Acho que o nosso clero, particularmente em Portugal, que é a realidade que conheço, está muito acomodado, muito fechado nas suas crenças individuais, com muita dificuldade em perceber o lado do outro. Isto vai-nos levar a uma dificuldade relacional com os mais jovens.
Eu diria que tem de haver esta abertura. E o Papa Francisco, que veio trazer a centralidade do Evangelho para a vivência da fé, vem-nos ensinar isto, precisamente. Nós temos de estabelecer esta cultura do encontro com os mais jovens, nas suas dificuldades, nas suas dúvidas, porque a fé sem dúvidas não é uma fé que cresce. E também nos seus desafios que não são os mesmos de há 50 anos, ou há 20, ou há 30.
"A ação católica que nós tivemos no pós-25 de Abril foi fundamental, perdeu-se, está a perder espaço na igreja, é uma pena"
A JMJ pode ter sido uma oportunidade perdida?
Eu diria que, se continuarmos neste estado de comodismo, poderá ser, infelizmente. É uma pena que tenhamos de dizer isto, mas diria que sim, porque não se está a aproveitar. Quando o Papa Francisco nos diz "todos, todos, todos", reparemos que, logo de seguida, vêm umas vozes questionar o que é que é o "todos, todos, todos". Mas porquê?
Houve muitos, mas... Não é?
Exato, quer dizer, nós, quando estamos a querer excluir e a querer questionar quais são os "todos, todos, todos", já estamos a dizer que, à partida, há alguns que já estão excluídos ou que não estão bem, bem, bem dentro. E se isto é assim, devo dizer que nos arriscámos a que, daqui a uns anos, a igreja sejam as paredes, e a igreja não são só as paredes dos edifícios, são as pessoas.
Devo dizer também que o Papa Francisco fez uma coisa importante, noutro fim de semana, com o documento que assinou: vai fazer, em 2028, uma reunião para tentar perceber se os frutos do sínodo estão a ser aplicados. Acho isto fundamental, mas espero que os nossos padres e os nossos bispos façam o seu trabalho. E, sobretudo, que se pronunciem mais sobre os problemas dos jovens. Eu não ouço os bispos a falarem dos problemas da habitação, dos problemas da precariedade, os nossos padres não estão a falar disso. É importante falar-se. A ação católica que nós tivemos no pós-25 de Abril foi fundamental, perdeu-se, está a perder espaço na igreja, é uma pena.
"Uma igreja que não fala dos problemas das pessoas e que está voltada, única e exclusivamente para as questões da moral, não pode esperar que os jovens se aproximem"
Pergunto, até deste ponto de vista, se a dinâmica sinodal deveria ou poderia ter mais impacto na pastoral universitária?
Eu diria que se pode tirar todos os frutos, e mais alguns, dessa dinâmica sinodal. Aliás, há uma série de orientações que o Papa Francisco, em outubro, com o fim da segunda reunião do sínodo, nos deixou, e que a pastoral universitária pode, de facto, ir buscar, para trazer, precisamente, nesta perspetiva de integração e de aproximação da igreja aos jovens. Volto a insistir neste ponto: acho mesmo fundamental que se fale dos problemas que as pessoas têm hoje, porque uma igreja que não fala dos problemas das pessoas e que está voltada, única e exclusivamente para as questões da moral, e se esquece que o dia-a-dia das pessoas vai muito além disso, que as dificuldades das pessoas vão muito além disso, não pode esperar que os jovens se aproximem. E isto é uma pena imensa, é uma pena que não se pense de forma estrutural, que se esteja a pensar, única e exclusivamente, nos preceitos que temos.
Precisamos de uma igreja mais próxima, com mais cuidado aos problemas, para, dessa forma, se aproximar dos estudantes e dos jovens?
Eu diria que sim, sem dúvida alguma. Eu acho que é uma pena quando não se ouve os jovens.