Entrevista a D. Rui Valério

Patriarca de Lisboa pede aos partidos intervenção para subir salários mais baixos

11 abr, 2025 - 06:00 • José Pedro Frazão

D. Rui Valério faz fé nas sondagens e está convencido de que as eleições não vão alterar de forma significativa o quadro político. Aos partidos, pede ação sobre baixos salários e consensos na saúde, migrações e no tripé "ciência, tecnologia, inteligência artificial". Na segunda parte da entrevista concedida em tempo de Páscoa, o patriarca de Lisboa reconhece que os católicos estão "muito ausentes" da política e recusa a ideia de que os políticos estão longe da realidade.

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O tempo pascal cruza-se este ano com a pré-campanha para as eleições legislativas antecipadas num calendário eleitoral que depois passará por autárquicas e presidenciais. Depois de ter abordado os desafios da paz, da guerra e do diálogo interreligioso, a segunda parte da entrevista do patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, à Renascença, centra-se nas encruzilhadas sociais e políticas do país.

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Gostava que clarificasse o que disse a 14 de março, depois de uma conferência na Universidade Católica sobre o Jubileu dos migrantes, falando sobre "a pressa e a precipitação" nas eleições em Portugal: “Acho que as eleições poderiam e deveriam ter sido evitadas, devia ter prevalecido a capacidade de diálogo”. Deviam ter sido evitadas as eleições?

Faço aqui uma declaração de interesse e gostaria muito que ficasse registada: as eleições são sempre uma ocasião de exercer a democracia, de exercer um direito que custou vidas, labuta, suor e sangue a tantos cidadãos. As eleições são sempre um momento, não apenas de exercer um direito, mas de emergir uma responsabilidade civilizacional, e, portanto, de exercitar a cidadania. Eu sou a favor, aplaudo todas as eleições.

No caso em apreço, creio que estas eleições, à partida, não virão a alterar significativamente aquilo que já existia antes, a fazer fé nos dados das últimas sondagens.

Em segundo lugar, é também verdade que há pouco mais de um ano, fomos chamados às urnas para nos clarificarmos. Substancialmente nada se alterou, até em termos das propostas que os diversos partidos nos possam apresentar.

Por outro lado, creio que há aqui um perigo latente, tendo existido todo este "pressing temporal". Uma vez mais, vamos verificar que, muito provavelmente, as propostas dos chamados programas de governação que os vários partidos vão apresentar, serão propostas a curto e médio prazo, não mais do que isso. Portanto, nem sequer houve tempo para os diversos partidos pensarem num projeto político para o país, por exemplo, para daqui a 20 anos. Onde queremos estar daqui a 20 anos?

Acha que os partidos não têm esse projeto?

Não têm, mas não os condeno por isso. Não tiveram tempo para isso, simplesmente. Estou à vontade para o dizer, dado que ainda não li nenhum programa eleitoral.

Os programas estão também na fase inicial, ainda a serem lançados.

Os diversos partidos tiveram de arranjar um programa para estas eleições, para a conquista do voto imediato. Não é disso que Portugal precisa.

Mas há quem critique muito, também, a falta de entendimento mínimo entre algumas das principais forças em questões estruturais.

Isso é um outro assunto. Para já, gostaria muito de enfatizar isto. E os jornalistas têm a obrigação de colocar o dedo nesta ferida. Onde é que está aqui um projeto político para daqui a 20 anos? Porque tem de ser assim.

E quais são as áreas que esse projeto político devia tocar?

São as tradicionais. É a área que conjuga melhor ensino-formação-trabalho. Ou seja, que os estudantes portugueses soubessem que quando terminarem o seu curso não precisam de ir logo comprar o bilhete de avião para ir trabalhar para outros países, porque aqui não só há trabalho para eles, como existem condições para terem uma vida mediamente digna - não digo minimamente, mas mediamente - digna, com salários dignos, etc.

O segundo ponto, para mim essencial, é uma "pedra no sapato". Peço a todos os partidos que se dediquem verdadeiramente a isto: descolar do nível de salários que os nossos trabalhadores hoje são obrigados a ter. Aquilo é tudo "cá por baixo".

Com a experiência que tenho de vida, quantos não são aqueles que quando chegarem ao dia 20 e qualquer coisa, não têm necessidade de começar a depender de terceiros para chegar ao fim do mês com aquilo que é minimamente [essencial].

São esses os desígnios. E depois, além de todos os outros, há aqui também um outro ponto muito importante para mim: o lugar que Portugal tem na Europa e no mundo. Portugal tem todas as capacidades para que, na atualidade, já não seja um país de periferia, mas seja um país, senão de topo, pelo menos do centro, que seja determinante.

No outro assunto a que fazia alusão, com o qual estou plenamente de acordo - aliás tenho-o dito repetidamente - é exatamente a necessidade de haver consensos em várias áreas, cuja solução já não depende da cidade ou do país, mas de um todo.

Patriarca de Lisboa considera que investimento em armas é “um retrocesso”
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Em que áreas, por exemplo?

Antes de mais, gostaria de novamente recordar a área da saúde. Em segundo lugar, a área da migração, seja ela com "I", seja ela com "E". Em terceiro lugar, há um outro ponto cada vez mais saliente e que para a minha sensibilidade é muito importante, que é a questão relacionada com a inteligência artificial/tecnologia/ciência.

Friso este ponto porque, sem querermos e sem nos apercebermos, podemos estar a assistir à emergência de um novo fator de discriminação entre as diversas nações. Aquilo que verificávamos e tanto condenávamos no passado, aquela diferença económica de nível de vida em que havia países de primeira, de segunda e até de terceira - portanto países desiguais - em que os respetivos cidadãos não tinham as mesmas oportunidades, isso começa atualmente a aparecer ao nível de capacidade tecnológica e do funcionamento da inteligência artificial.

Hoje, a diferença entre os países que contam e os outros, passa um pouco por aí. Portanto, também aqui haveria a necessidade deste entendimento, este consenso alargado, para que de repente não continuássemos a verificar que havia países que têm já tanto e que cada vez terão mais, e os outros, que não têm nada e cada vez têm menos.

Sei que não leu todos os programas, ainda não é tempo para isso. Mas sabemos que, por exemplo, em questões importantes para os católicos e para a Igreja, há o tema da eutanásia. O Partido Socialista, por exemplo, não vai incluir questões como eutanásia, suicídio assistido, morte medicamente assistida no seu programa eleitoral. Isto estará excluído do programa que vai a votos, o que é relevante para os debates que são feitos durante a legislatura. Ainda se desconhece também o que vai acontecer face a uma decisão do Tribunal Constitucional sobre a eutanásia. Deste ponto de vista, acha que esta exclusão no programa do PS é um bom augúrio em relação àquilo que os partidos podem ou não propor?

Como sabe, a posição da Igreja é aquela que defende a vida, o ser humano, que defende, protege e promove a sua dignidade. São assuntos muito sérios, que tocam não só o que de mais pessoal há em cada um - a sua consciência - mas são temáticas que determinam os níveis de cidadania e de civilização de um determinado país.

Quando colocamos a vida numa arbitrariedade que é determinada por fatores completamente estranhos à própria realidade inerente à própria vida, àquilo que ela comporta para "ser vida" - quantas vezes o pedido para a sua interrupção não surge porque falta nitidamente um desses fatores?

Quando um idoso, por exemplo, se sente mais um fardo do que um ser humano, quando uma pessoa, pela sua doença ou então pela sua dependência, se torna motivo de escárnio e até de "bullying" dentro da própria família; quando começa a sentir-se a mais, porque existe falta de algo de essencial; quando a avaliação do valor da vida é feita a partir destas carências, acho que estamos a percorrer um caminho que não deveria ser percorrido.

Deve fazer parte da forma como os católicos refletem as suas opções como eleitores?

Exatamente, tem de o fazer. Não reduziria aqui ao âmbito do "católico". Quando o ser humano tem uma consciência formada em sintonia com a sacralidade dos valores essenciais que são verdadeiramente estruturantes para a nossa existência, a nível pessoal ou comunitário, onde a própria vida está nesses valores prioritários, de mãos dadas com o respeito pela dignidade, é claro que isso conta para uma opção em termos políticos. Tenho de estar em sintonia com isso.

Mas, atenção, isto não fica reduzido ao católico, mas para todo e qualquer ser humano.

Os católicos são tímidos na participação política em Portugal?

Estão tímidos, estão muito ausentes, por razões várias, que não interessa agora aqui a referir, mas que frequentemente empreendo com destinatários vários e diversos. Para que haja uma transformação e uma renovação na sociedade, é necessário assumir a responsabilidade de protagonizar essa mudança.

Porque é que são tímidos? A que conclusão chega na sua reflexão?

Creio que o mundo da política talvez se tenha tornado de tal maneira complexo – e não sei se vou dizer alguma heresia ou não, que me desculpem - e sentem um pouco que a política hoje está um bocadinho distante da realidade das pessoas. É uma avaliação que faço em relação à perceção que terceiros possam ou não ter.

Acha também que os políticos estão distantes da realidade?

Não creio. Os políticos - homem ou mulher - que abraçam essa carreira, falam genuinamente movidos pelo superior interesse da nação. Creio sinceramente e sou genuíno naquilo que estou a dizer. Creio também que quem vai para a política o faz com um sentido de missão, porque hoje como sabe, existem tantas possibilidades de realização profissional que necessariamente não passam pela política.

A política, hoje, é uma missão em que é preciso dar tudo por tudo. Tive o grato privilégio de conhecer ao longo da minha vida, nomeadamente no plano autárquico e também governativo, [pessoas] cuja missão que desempenharam levou-os realmente a servir os outros, quer fosse sábado, domingo, feriado ou dia santo. Eles estavam ali para a comunidade, muito em desfavor da própria família, projetos pessoais, férias que nunca havia possibilidade de ter. É uma entrega, uma dádiva, um serviço. A política hoje é tudo isso.

Claro, isso mexe muito com quem quer uma vida organizadinha, que quer partir às oito e regressar às seis, quer o sábado ou o domingo. Estar hoje na política - permita-me aqui a atribuição, mas estamos em clima de Páscoa, portanto também o podemos fazer - é um verdadeiro sacerdócio.

Não é que os católicos não se mobilizem. Tivemos agora a Caminhada pela Vida em 12 cidades, com milhares de pessoas nas ruas. Os católicos não deveriam transplantar esta mobilização cívica para outras áreas? Não faltam também mais temáticas na participação cívica dos católicos em Portugal?

É um bom exemplo daquilo que faz ter um grande ideal, um grande objetivo que é a mobilização. Na Caminhada pela Vida – infelizmente na qual não pude participar fisicamente, mas espiritualmente estava bem presente e apoio incondicionalmente - verificámos que quando há um desígnio, um projeto e um ideal, há uma mobilização pronta, total, absoluta.

Sobre esses outros temas, creio que há outros que interessam deveras aos católicos, como por exemplo, as questões dos migrantes, dos sem-abrigo, dos carenciados, todas as questões relacionadas com a habitação. Todos os dias a Igreja responde a necessidades concretas através das suas IPSS.

De acordo. Mas outra coisa é a manifestação dos católicos que saem à rua em nome individual. Esta mobilização não a vemos ou está mais diluída eventualmente nas manifestações sobre habitação.

Eventualmente. Mas os católicos participariam na mesma se houvesse necessidade ou se houvesse uma proposta dessa mobilização.

Há aqui algo também um pouco redutor [sobre a Caminhada pela Vida). Muito embora os católicos estejam plenamente - e eu como católico falo, não como patriarca - em perfeita sintonia e solidariedade com esta iniciativa, a verdade é que não eram só católicos que nela participavam. Não a podemos de maneira nenhuma reduzi-la a uma marcha de católicos. Eram homens, mulheres, jovens, adolescentes, crianças, pessoas mais altas e mais baixas, mais assim, que, no entanto, acreditavam no valor da vida. E isto é a sua marca, é o valor da vida. Os católicos realmente estão presentes, onde é necessário que haja ajuda, serviço e auxílio.

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