Entrevista Renascença/Ecclesia

Presidente da Cruz Vermelha vê internamentos sociais como "vergonha nacional que temos de combater"

20 abr, 2025 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Neste Domingo de Páscoa, fixamo-nos na pergunta "Quantos vizinhos conhece pelo seu nome?" A iniciativa é da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), que, através das suas delegações, está a distribuir um milhão de mensagens nas caixas de correio com essa pergunta, apelando à consciência social e à proximidade comunitária. O presidente da CVP, António Saraiva, é o convidado da entrevista Renascença/Ecclesia.

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O presidente da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), António Saraiva, critica o aumento do número de internamentos hospitalares inapropriados os habitualmente chamados "internamentos sociais".

"É uma vergonha nacional que temos de combater", diz António Saraiva em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia,

De acordo com o barómetro da Associação de Administradores Hospitalares, foi batido o recorde de internamentos sociais com 2.342 casos. Saraiva diz que é preciso "encontrar respostas" para um fenómeno “inquietante”, depois de se ter

António Saraiva admite que o problema decorre das dificuldades económicas das famílias, mas também é resultado do abandono a que as pessoas são sujeitas, dando o exemplo de casos em que, aquando do internamento, os familiares “entregam moradas falsas”.

Para António Saraiva, é preciso “despertar os partidos para estas realidades” e pô-los a discutir em campanha eleitoral este tipo de problemas.

A Cruz Vermelha, através das suas delegações, está a distribuir um milhão de mensagens nas caixas do correio com a pergunta "Quantos vizinhos conhece pelo nome?" A ideia da iniciativa é sensibilizar para a importância da proximidade comunitária, que ganha cada vez mais importância num país com “cerca de 500 mil idosos que vivem sozinhos, um número que, lamentavelmente, vemos crescer 2% ao ano”.

"Temos em Portugal a maior percentagem da população idosa da União Europeia e a quarta maior do mundo. Isto deve inquietar-nos e, para além de nos inquietarmos, devemos encontrar respostas adequadas”, assinala o residente da CVP.

António Saraiva diz que faltam políticas públicas que promovam a coesão social e, em particular, ajudem a diminuir o flagelo do isolamento. O responsável garante que se não fosse o sector social, o cenário seria ainda mais dramático, porque nem sempre o Estado não consegue proporcionar a "correta resposta".

Por outro lado, António Saraiva recorda que o Estado, quando recorre ao sector social, não para o suficiente nem a horas.

O presidente da CVP adianta que esta realidade não pode deixar ninguém descansado porque “cada vez mais a pobreza não é uma condição periférica, está no centro da vida das famílias”.

Apesar das dificuldades sociais, económicas, António Saraiva entende que “podemos olhar o futuro com esperança”, argumentando que o humanismo o faz acreditar que “o bem se continuará a sobrepor ao mal”.

"Cada vez mais a pobreza não é uma condição periférica, está no centro da vida das famílias"

Num país com a população mais idosa da União Europeia, sem retaguarda familiar em muitos casos, ganha mais importância a proximidade dos vizinhos?

Tem, diria eu, cada vez mais importância, porque nós temos cerca de 500 mil idosos que vivem sozinhos em Portugal, um número que, lamentavelmente, vemos crescer 2% ao ano. Temos em Portugal a maior percentagem da população idosa da União Europeia e a quarta maior do mundo. Isto deve inquietar-nos e, para além de nos inquietar, devemos encontrar respostas adequadas.

São esses dados que levam a avançar com a iniciativa "Quantos vizinhos conhece pelo seu nome"?

São estes dados e a realidade que vamos constatando diariamente, através das nossas delegações e do acompanhamento que fazemos destas situações, que nos levam a este movimento da "Porta ao Lado". Serve, precisamente, para sensibilizarmos, porque cada vez mais a pobreza não é uma condição periférica, está no centro da vida de milhares de famílias. E o que pedimos hoje à sociedade é que não finja que não vê, é que não olhe para o lado, porque "o lado", muitas vezes, é já a porta ao lado, efetivamente. E daí, o nome do movimento - "Porta ao Lado" - porque, muitas vezes, nem o nome do vizinho conhecemos.

"O que pedimos à sociedade é que não finja que não vê, é que não olhe para o lado, porque "o lado", muitas vezes, é já a porta ao lado, efetivamente"

Para além desta ideia, que outras iniciativas tem a Cruz Vermelha para mitigar o isolamento social?

Temos uma grande proximidade porque a Cruz Vermelha é composta por 147 delegações, de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Através destas 147 delegações, temos um conhecimento de proximidade, trabalhamos junto das câmaras municipais, que sinalizam também estas situações. Posso destacar outros programas que temos: o "Cartão Dá", da Cruz Vermelha, que substitui cabazes por cartões pré-pagos, promovendo a autonomia das famílias e que, desde 2021, já beneficiou cerca de 10 mil pessoas; o programa "Mais Feliz", que combate a pobreza com uma metodologia estruturada e que, em 2024, apoiou 950 famílias, sendo que destas 67% eram mulheres. E também esta, agora - "Quantos vizinhos conhece pelo nome?" - de um milhão de mensagens distribuídas em caixas de correio, como referiu, precisamente para apelar à consciência social e à proximidade comunitária.

Que recetividade está a ter a iniciativa?

Está a ter uma recetividade por dois ângulos de abordagem. Desde logo, uma enorme colaboração dos nossos voluntários, daqueles que fazem acontecer a Cruz Vermelha, diariamente. São cerca de cinco mil voluntários, 4.700 em rigor, juntamente com os nossos 2.800 colaboradores. Esta rede, a adesão que houve à entreajuda, à entrega das mensagens, à distribuição pelas caixas de correio e, depois, a própria população que, sendo desperta, ganhando consciência para esta problemática, tem vindo a dar uma resposta porque, ao fim e ao cabo, aquilo que pretendemos é captar receita para podermos acudir a um crescente número de pedidos. Daí apelarmos à consignação do IRS, para que possamos mais eficazmente cumprir a nossa missão de ajuda.

"Temos em Portugal a maior percentagem da população idosa da União Europeia e a quarta maior do mundo. Isto deve inquietar-nos"

No Domingo Páscoa, como vemos, há grandes manifestações comunitárias, particularmente no Norte do país. Muitas pessoas até vão de casa em casa, no chamado Compasso, e, depois, temos o contraste de pessoas a viver este dia sozinhas. Ou quase. Esta data é também uma oportunidade para sublinhar a importância das relações de proximidade e até de portas abertas, da porta ao lado, num mundo que está cada vez mais individualizado?

Nós sentimos que sim, porque, como diz, o mundo está cada vez mais individualizado, cada vez mais o ser humano está virado para si próprio, porque está fechado nas redes sociais, na internet, muitas vezes não vê as realidades que lhe estão próximas. Isto é um fenómeno que acontece cada vez mais, pelo menos, nos grandes centros urbanos, os guetos em que se entra, lamentavelmente. É uma coisa que no Interior não se perceciona tanto porque as pessoas têm mais partilha, têm mais proximidade, têm mais entreajuda, há humanismo, esta partilha, este conhecer o vizinho…

A Páscoa, como também o Natal, são alturas em que despertamos. O ser humano fica mais desperto, mais disponível para estas realidades. E, sim, é aproveitando estes tempos e estes momentos, como agora a Páscoa, que fazemos este apelo, precisamente para ir ao encontro da sensibilização, porque ganhar a perceção para os problemas é meio caminho andado para os resolver.

"A natalidade é um dos problemas que o país tem (…) Temos de encontrar políticas corretas, porque este envelhecimento da população, esta perda de cidadãos (…) traz problemas"

Refletimos aqui sobre o isolamento, uma realidade com grande dimensão nos centros urbanos. Contudo, o problema também já se verifica em meio rural, embora aí, na maior parte das vezes, ainda se possa contar com a chamada solidariedade do vizinho. Ou será que isso também se vai perdendo?...

Uma população mais velha, diria mais sénior, ainda pratica essa solidariedade, essa partilha. Aquilo que se sente nas camadas mais jovens, com as honrosas exceções que sempre existem, é que se vai perdendo essa solidariedade, esse espírito de entreajuda. Mas ele ainda está muito presente, principalmente nas camadas mais seniores, como lhe digo. Mas há uma realidade que se vem alterando e, daí, estas campanhas, estes movimentos que a Cruz Vermelha vai desenvolvendo, para que as pessoas ganhem a perceção. Porque, muitas vezes, gerar perceções, como eu costumo dizer, gerar e gerir perceções é aquilo que se deve atingir, seja na política, no dia a dia, na família. Importa criar esta perceção das necessidades que, muitas vezes, estão ao nosso lado. É fundamental.

As boas perceções?

As boas perceções…

"Temos desafios completamente diferentes dos que tínhamos há 10 ou 15 anos"

Além das iniciativas da sociedade que visam promover a coesão social, faltam políticas do Estado para combater o flagelo do isolamento, da pobreza?

Na nossa perspetiva, sim, faltam políticas públicas, porque, independentemente daquelas que existem, falha, muitas vezes, a sua aplicação no terreno. E sendo a função social uma das funções do Estado, o Estado recorrendo como recorre, invariavelmente à sociedade, protocolando com a sociedade, neste caso com o setor social, acaba o setor social por desenvolver esta função do Estado. E, muitas vezes, de uma forma que o Estado, delegando essa responsabilidade, nem sempre vai ao encontro da correta resposta porque nessa proximidade que temos com as populações, através dos nossos meios, das nossas delegações e da proximidade da partilha com as câmaras, temos essa realidade mais percecionada.

O Estado, se fosse ele o único a desenvolver esta função social, teria um custo orçamental muito maior do que aquele que tem e, por isso, socorre-se do setor social. Mas o Estado não paga o suficiente, não paga o justo valor. A inflação vai-se encargando de aumentar anualmente estes valores e o Estado nem sempre acompanha, para não dizer, não acompanha invariavelmente. Depois, o pagamento tardio destas metodologias leva a que elas tardam em ser cumpridas.

Ou seja, o Estado não pode delegar e lavar as mãos, digamos assim...

Não o deveria fazer… Não o deveria fazer....

"Portugal hoje não viveria sem imigração"

Da sua experiência, o que é que é necessário fazer, para além dessa delegação de competências com a necessária "mochila" financeira atempada?

Uma maior ligação ao setor social e aos municípios, também, que não podem ser retirados da equação. O Estado, recentemente, delegou nas autarquias um conjunto de competências a este nível. É uma maior proximidade, uma maior participação, uma maior colaboração com o setor social, mas há que proceder a uma revisão das metodologias e dos programas, porque alguns deles estão desadequados da realidade. O mund, hoje, muda muito velozmente, como sabemos. Temos desafios completamente diferentes dos que tínhamos há 10 ou 15 anos. Há valências - como é o caso da violência doméstica, como é o caso do sem-abrigo - com um crescimento exponencial e é necessário adequar as políticas públicas às novas realidades e participar, colaborar com o setor social de uma forma mais correta do que aquela que muitas vezes existe.

"Faltam políticas públicas, porque, independentemente daquelas que existem, falha, muitas vezes, a sua aplicação no terreno"

Voltamos agora a uma questão de que falamos no início, porque está aí a campanha eleitoral à porta e até, ao momento, não se tem ouvido falar muito em envelhecimento da população. Somos o país da União Europeia com maior percentagem de idosos, com meio milhão de idosos a viver sós. É preciso convocar os partidos para a perceção, como dizia, deste problema?

É, é preciso convocar os partidos porque, aproveitando, como diz, este momento eleitoral, mais do que debater aquilo que é pueril, aquilo que não tem conteúdo, muitas vezes guerras político-partidárias que à população pouco interessam, importa debater assuntos como definir um objetivo de crescimento económico para o país para, com esse crescimento económico, darmos melhores condições de vida às populações, termos mais capacidade para programas que são necessários. Sim, há que chamar a atenção dos partidos políticos para esta realidade porque sendo importante discutir o crescimento económico, a defesa, a educação, há também que olhar para a saúde e, dentro da saúde, para as situações daqueles que estão isolados, sozinhos.

É necessário, como nós fazemos na Cruz Vermelha, chegar-lhes de alguma maneira. E há que despertar consciências para que os partidos políticos, atingindo o poder, como obviamente é aquilo que os partidos tentam, sejam sensibilizados para esta realidade. O governo ou mesmo o parlamento, num conjunto de iniciativas parlamentares, porque é o parlamento que faz a legislação, devem encontrar respostas adequadas a estas realidades, porque esta população idosa tem necessidades específicas, há que monitorizá-los, há que ver em que condições se encontram. Nós, Cruz Vermelha, temos essa preocupação e temos medidas de chegar a eles através da nossa teleassistência, que estamos a desenvolver com novas metodologias, atendendo ao nível de equipamentos que hoje há para essa monitorização. Sim, há que despertar os partidos políticos para esta realidade e exigir que o parlamento produza a legislação adequada a estas novas necessidades.

É também necessário rejuvenescer o país. Não há uma verdadeira aposta em políticas de incentivo à natalidade?

É um tema a que também não se quer olhar devidamente, mas a natalidade é um dos problemas que o país tem. Ainda na altura em que era presidente da CIP [Confederação Empresarial de Portugal], em concertação social, entregamos um estudo - salvo erro ao primeiro governo de António Costa - no qual sinalizávamos um conjunto de medidas para promover a natalidade. Porque a natalidade é um dos problemas, como disse e repito, que a sociedade portuguesa tem e para o qual temos de encontrar políticas corretas, porque este envelhecimento da população, esta perda de cidadãos que vamos sentindo pelos poucos nascimentos trazem problemas de dimensões de várias naturezas. Não é só a nível da população ativa, do crescimento económico - isso é um problema que não é apenas português, é um problema da Europa. A União Europeia tem de olhar também para isto porque, comparativamente com outros povos, com outras geografias, nós caminhamos para um número de população que compara mal com outras regiões…

"Felizmente, podemos olhar o futuro porque o bem ainda se sobrepõe ao mal (…) Não deixemos que o mal se sobreponha ao bem"

No atual contexto, se não fosse a imigração, provavelmente, o país já teria muita dificuldade em conseguir mão-de-obra…

É um tema que está na agenda, como sabemos, a questão da imigração e as notícias que vão saindo, nem sempre adequadas à realidade, nem sempre interpretando corretamente a realidade. Como é comum dizer-se, e penso que todos percebemos, Portugal hoje não viveria sem imigração. Temos um conjunto de atividades económicas que necessitam de imigração, porque os portugueses deixaram, abandonaram, estão pouco recetivos a determinados postos de trabalho, a determinadas profissões. Setores como os da construção, da restauração, da agricultura não viveriam hoje sem a imigração, sem o acolhimento correto de imigrantes. Isso é que tem de ser tratado. Temos de encarar a necessidade que temos para realizar determinadas tarefas, temos de ter uma política de imigração adequada, correta, não acolher sem método, saber acolher. Saber acolher exige um trabalho adequado, trabalho digno, habitação, enfim, há um conjunto de questões a que uma correta política de imigração deve atender.

Um dos indicadores mais reveladores da falta de retaguarda é o do número dos chamados internamentos sociais. Esta semana, ficamos a saber, através do barómetro da Associação dos Administradores Hospitalares, que se bateu o recorde desse tipo de internamentos inapropriados com mais de 2.300 casos. Como responder a esta questão?

O Hospital da Cruz Vermelha, felizmente, não tem essa situação. Mas, infelizmente, é uma situação que vem aumentando, como disse bem, e que deve envergonhar. Deve envergonhar a nossa sociedade, devemo-nos inquietar com esse fenómeno. Hoje, as famílias numa situação cada vez mais débil em termos de receita, com vencimentos que não dão para fazer face aos seus compromissos, têm dificuldades acrescidas num vasto conjunto de matérias. Por isso, temos o aumento dos sem-abrigo, temos o abandono de pessoas em hospitais. Há pessoas que entregam moradas falsas e, depois, não vão buscar os seus familiares. É uma questão que nos deve envergonhar, mas para a qual temos de saber encontrar respostas. Não há balas de prata, não há varinhas mágicas. Há toda uma preocupação social, toda uma interação entre o Governo e a sociedade civil e muito com o setor social, para encontrarmos as melhores soluções, porque, isto é, de facto, uma vergonha nacional que temos de combater.

Esta conversa identificou várias dificuldades sociais, económicas, humanas. Estamos a celebrar a Páscoa, que traz sempre consigo uma mensagem de esperança. O que é que nos faz ainda acreditar no futuro?

O humanismo de que o ser humano é dotado, a nossa condição humana e, de um modo geral, o facto de ainda estarmos num tempo, apesar dos enormes desafios que todos vamos sentindo, com estas tensões geopolíticas, com estas questões de conflitos internacionais, em que o humanismo ainda desperta, em determinadas ocasiões. E esta é uma delas. Felizmente, podemos olhar o futuro porque o bem ainda se sobrepõe ao mal. E esse é o apelo que deveremos fazer à nossa consciência humana: que não deixemos que o mal se sobreponha ao bem. Isso leva-nos a uma inquietude cívica, a uma participação, a uma ação coletiva que não nos pode abandonar, porque é da participação de todos nós, daquilo que cada um de nós pode dar ao outro, ao seu vizinho, ao seu amigo. É esta partilha, este humanismo que a mim, pessoalmente, me faz acreditar que o bem se continuará a sobrepor ao mal.

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