Entrevista a D. Manuel Clemente

Os cardeais devem escolher um Papa que “continue a dar atenção a todas as periferias”

22 abr, 2025 - 17:45 • José Pedro Frazão

D. Manuel Clemente é estreante em conclaves e será um dos quatro cardeais eleitores portugueses.

A+ / A-

Veja também:


Antes de partir para o Vaticano, o Patriarca Emérito de Lisboa confessa-se muito curioso com a possibilidade de conhecer a variedade cultural e geográfica do Colégio de Cardeais onde se vai integrar para a eleição do novo Papa.

Em entrevista à Renascença, D. Manuel Clemente garante que a “centralidade das periferias não sairá do coração dos que vão eleger o sucessor de Francisco”. O eurocentrismo “já foi”, avisa o cardeal português, que aponta a atenção do novo Papa para o Índico e o Pacífico e para a necessidade de captar uma “herança de Francisco” baseada numa “espiritualidade evangélica”.

E Fátima “vai estar certamente presente” no pontificado do novo sucessor de Pedro.

O que é para si participar pela primeira vez no conclave?

Sou cardeal desde 2015 e, por isso, nunca participei noutro conclave, a não ser como todos os cristãos participamos: com oração e pedindo a Deus e ao seu Espírito que ilumine todos os cardeais para a escolha que agora é preciso fazer e que corresponda às necessidades e às expectativas. Vou com a expectativa de fazer aquilo que me competir entre os cardeais eleitores. Para já, ouvindo e, com estas reuniões prévias, conhecendo também melhor - e até pela primeira vez - muitos dos outros cardeais, até porque a maior parte são de criação do Papa Francisco. Vêm de todo o mundo, dos cinco continentes e não conhecemos pessoalmente a maior parte deles.

Vou numa ‘expectativa ativa’. Estes dias serão também de conhecimento, de acolhimento daquilo que cada um traz e procura a partir das suas experiências locais, para que depois também tudo se consiga da melhor maneira.

Esse diálogo é muito importante para este momento do conclave?

Estas reuniões pré-conclave são muito importantes para o conhecimento mútuo das pessoas, das ideias que trazem e das expectativas. O mundo é vasto e complexo e este conclave tem esta ‘positividade’ que o Papa Francisco lhe deu, escolhendo cardeais de todos os continentes. [Lidam] com situações muito diversas que têm de ser apreciadas no seu conjunto, porque o Ministério de Pedro é para a Igreja Universal. Nós somos bispos das igrejas locais, ligados às nossas geografias territoriais, mas também culturais e sociais.

As reuniões são muito importantes porque todos têm a oportunidade de se pronunciar. Além das reuniões formais também os intervalos, às vezes, são tão importantes como as reuniões propriamente vividas, porque nos conhecemos e conversamos livremente. E é conjugando tudo isto que nos poderemos ir aproximando daquilo que é a nossa parte - a parte principal será do Espírito Santo - para depois escolhermos um pontífice que continue este magnífico trabalho que o Papa Francisco fez, de atenção a todas as periferias geográficas e sociais, e levarmos por diante aquilo que nos compete.


Vou com a expectativa de fazer aquilo que me competir entre os cardeais eleitores. Para já, ouvindo e, com estas reuniões prévias, conhecendo também melhor - e até pela primeira vez - muitos dos outros cardeais, até porque a maior parte são de criação do Papa Francisco.

É suposto que os cardeais presentes neste conclave sejam ‘tocados’ pelo Espírito Santo. Sendo alguém que conhece bem a História da Igreja também, que expectativa tem sobre a forma como o Espírito Santo ‘toca’ os cardeais naquelas salas em particular?

Conhecemos a história dos conclaves, tanto quanto podemos sabê-la, porque aquilo que se passa lá dentro não se sabe cá fora. Conhecemos os resultados e aquilo que os participantes também foram testemunhando. É sempre uma altura em que a novidade acontece, porque há aquela velha frase romana, de que quem entra Papa no conclave sai cardeal, ou seja, aqueles que em princípio estariam na primeira linha das expectativas podem ser ou não ser depois os escolhidos. Tudo isto tem uma grande margem de novidade. A grande maioria foi criada pelo Papa Francisco, que nos escolheu para pertencermos ao colégio cardinalício que, acredito, terá muito presente a sua herança: centralizar as periferias. Aquilo que pode estar mais periférico na atenção do mundo tem de vir para o centro com uma grande atenção aquilo que infelizmente é pouco estimado no mundo, como os que estão e continuam pobres, os que procuram vida nos sítios diferentes de uma origem onde as coisas estão muito más e impossíveis, e aquilo que é mais particular a cada um e que mais dói aqui e acolá.

A atenção que o Papa Francisco sempre teve em relação a estas ditas periferias - coincidente com a própria atenção que Jesus Cristo teve, enquanto andou neste mundo, a todos os pobres e excluídos que atendia com predileção - vai estar certamente presente e não sairá do coração de quem tem de eleger o sucessor de Francisco.

Não se espantaria que, depois, o resultado desta escolha refletisse uma certa continuidade dessas preocupações?

Vai continuar, de certeza. Essas estão aí na agenda do mundo e da Igreja, e têm de ser atendidas em primeiríssimo lugar.


A atenção que o Papa Francisco sempre teve em relação a estas ditas periferias - coincidente com a própria atenção que Jesus Cristo teve, enquanto andou neste mundo, a todos os pobres e excluídos que atendia com predileção - vai estar certamente presente e não sairá do coração de quem tem de eleger o sucessor de Francisco.

Ao longo das últimas 24 horas, ganhou volume a ideia - até entre os não-crentes - de que há um caminho desbravado por Francisco que é preciso ter continuidade. É assim que também olha para esse testemunho que Francisco deixa?

Não pode ser de outra maneira. Gostaria que o testemunho de Francisco tivesse a maior abrangência, porque, como se percebe na autobiografia que nos deixa quase como testamento, tudo em Francisco parte, não de um ponto de vista meramente sociológico, mas profundamente espiritual. Ele era um homem muito espiritual, de oração, que nos convidava sempre a estarmos atentos a Deus e ao que Deus faz na vida daqueles e daquelas em quem atua plenamente.

Foi um Papa que escreveu muito, por exemplo, sobre a santidade. Deixou-nos um texto magnífico sobre a santidade cristã, a última grande encíclica que nos deixou precisamente sobre o coração de Jesus. Se nós olhássemos apenas pelo ‘lado de fora’, mais sociológico das coisas, não captávamos a herança de Francisco. Francisco está com todos a partir de Deus, de todos para todos. Se perdêssemos isso de vista, não estávamos a captar a herança de Francisco, uma espiritualidade evangélica, em que o espírito de Cristo nos leva onde Ele nos espera. E espera-nos uns nos outros.

Contudo, não há um Papa igual ao outro, bem o sabemos. Olhando para os Papas que acompanhámos nos últimos anos, João Paulo II era muito diferente de Bento XVI e Bento XVI face a Francisco, pelo menos ao nível do estilo. É a única diferença que iremos encontrar de um Papa para o outro?

Com certeza, porque não há duas pessoas iguais também ao nível do Ministério Petrino. Essa também é uma riqueza da sucessão dos pontífices. Olhando para 2 milénios da História da Igreja, podemos e devemos dar muitas graças a Deus pela série de Papas que Ele nos tem dado nos tempos mais contemporâneos, que são Papas muito dentro do que a Igreja deve ser para o mundo.

Nesse sentido, o Papa Francisco foi uma ótima expressão e o que vier a seguir, com a particularidade que trouxer - e trará certamente - irá no mesmo sentido também.

Nos últimos anos, e com Francisco sobretudo, houve uma mudança, porque o Colégio de Cardeais é menos eurocêntrico. Tem a expectativa de uma escolha de continuidade, que eventualmente possa representar essas periferias do mundo e não uma escolha tão eurocêntrica?

Sim, de certeza, porque o eurocentrismo, passe a expressão, ‘já foi’. Hoje temos o centro do mundo mais para o Índico e sobretudo para o Pacífico do que propriamente para o Atlântico. Não tenhamos dúvidas, até porque a grande maioria da população mundial está nessas regiões, onde verificamos o maior crescimento das comunidades cristãs, algumas ainda muito pequenas, mas muito vitalizadas e com muita força apostólica. Temos de olhar para aí, porque o centro do mundo hoje já não é o Atlântico.

Será um tempo de um Papa da Ásia, da África?

Seja de onde for, mas a atenção terá de ser essa, focada onde o mundo e a humanidade crescem.

Passando de toda a História da Igreja que foi estudando ao longo da sua vida ao momento agora de entrar no conclave, algum pormenor em particular deverá despertar a sua atenção em Roma?

Nós conhecemos como é a geografia do conclave, da Capela Sistina, onde é que os cardeais se sentam e como é que se processam as votações, até porque isso também já está tudo previsto na Constituição Apostólica do Papa João Paulo II. A minha maior curiosidade é conhecer o Colégio Cardinalício, como ele é atualmente. Pela variedade das suas componentes e das geografias de onde provêm, conhecê-los é muito, muito especial.

Como Patriarca de Lisboa teve oportunidade de endereçar um convite a um Papa para vir a Portugal. É inevitável que o próximo Papa cumpra aquilo que tem sido quase uma tradição dos últimos Papas, com uma vinda ao nosso país?

E muito especialmente a Fátima. Entre todas as manifestações da presença da Mãe de Jesus na vida da Igreja, Fátima é aquela que está mais diretamente ligada ao Papado. Recordamos que logo nas aparições, e como os pastorinhos sentiram, o Papa, a sua figura e a sua missão na vida da Igreja é muito presente. Certamente Fátima estará presente. E Fátima é Portugal.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+