26 abr, 2025 - 19:38 • João Pedro Quesado, enviado a Roma
No dia em que Francisco foi eleito Papa, a imagem inusitada de uma gaivota no topo da chaminé da Capela Sistina correu mundo. No dia em que Francisco foi sepultado, as gaivotas voltaram à Praça de São Pedro, juntando-se à despedida do Santo Padre com o nome do santo dos animais e da ecologia.
As aves sobrevoaram, grasnando, as cerca de 400 mil pessoas que se juntaram no Vaticano para homenagear Francisco uma última vez, antes de o Papa ser sepultado na Basílica de Santa Maria Maior. Para entrar no Vaticano, ninguém pôde adormecer.
Pelas 5h30 já se formavam filas nas entradas para a Praça, e apenas jornalistas, proteção civil e alguns voluntários essenciais para o funcionamento da operação de segurança podiam entrar.
Os portões abriram às 6h00, soltando um ruído de passos apressados, e até corrida, em direção aos lugares o mais à frente possível — pouco importavam os apelos italianos para levar as coisas com calma.
Pobres e marginalizados foram convidados especiais(...)
A partir do momento quase eufórico em que o lugar estava assegurado, as abordagens eram muitas. Alguns encostaram a cabeça ao ombro ou pedra mais próxima. Outros ligavam freneticamente aos companheiros para lhes dizer para onde se deviam dirigir. Ouvia-se italiano, inglês, francês, português, chinês, espanhol, polaco e muitas outras línguas, com poucas dificuldades de entendimento entre pessoas de diferentes nacionalidades. Entre algumas orações matinais, ouviam-se até conversas sobre política internacional, não fosse o momento de grande incerteza.
No meio de tudo isto, Helena e a filha são duas portuguesas entre muitos que fizeram a viagem para o Vaticano. Mas, ao contrário de grupos que já tinham uma viagem agendada devido à beatificação de Carlo Acutis — originalmente marcada para este domingo — esta família veio a Roma de propósito para o funeral.
“Chegámos às duas da manhã, num avião, e não dormimos”, conta a mulher da Charneca da Caparica. O esforço físico deve-se ao Papa Francisco: “Não sou religiosa, vim por um motivo espiritual. E também porque o Papa Francisco era um ser humano bom, e isso comove-nos”, acrescenta.
A família sente-se “bem dentro deste ambiente” do Vaticano, diz ainda Helena, para quem Francisco “teve impacto com todo o mundo, até mesmo com os ateus”.
Mary veio da Irlanda e não discorda. “Há opiniões diferentes, para alguns ele não foi progressista o suficiente, para outros foi demasiado. E depois, fora disso, o mundo parecia gostar dele”, sublinha a irlandesa, para quem “se isso inspirou as pessoas a olhar para os ensinamentos e voltar para a Igreja, espero que tenha trazido muitas pessoas”.
Com viagem planeada para a beatificação de Acutis, Mary não teve de fazer esforços para acordar tão cedo como outros, levantando-se às 5h30. O que mudou foram os planos da semana, que passaram por vir à Praça de São Pedro “tanto quanto pudesse” para rezar e velar o Papa, assim como pelos cardeais que vão escolher o novo sucessor de Pedro.
Já passavam mais de três horas desde a abertura da Praça quando começou uma recitação do terço, pondo fim ao burburinho das conversas que serviam para distrair do frio das sombras ainda presentes, do calor do sol cada vez mais quente, e do sono que parecia afetar quase todos. A partir daqui, apenas a passagem dos helicópteros da polícia inquietava os fiéis.
O burburinho voltou quando Donald Trump apareceu nos ecrãs gigantes da Praça, velando a urna do Papa Francisco ainda dentro da Basílica, mas rapidamente esmoreceu. Com o aviso de que a celebração estaria para começar, o silêncio tornou-se quase sepulcral — apenas as gaivotas se faziam ouvir.
Pouco depois, com a chegada do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para se sentar na secção dos chefes de Estado, surgiram aplausos. Essa ovação repetiu-se com mais força e emoção quando a urna do Papa chegou ao local da Praça onde, num dia nublado de 2020, Francisco carregou o peso de um mundo isolado por uma pandemia para lhe dar esperança.
Martin, que veio a Roma devido à morte de Francisco, estava a sentir uma cerimónia “extremamente poderosa, porque toda a gente à volta estava a cantar, a rezar, estávamos 11 juntos apesar de não nos conhecermos”.
“Eu sou membro da Igreja Católica, por isso o Papa Francisco também era meu pai”, constatou o eslovaco, que enfrentou as filas a partir das 5h00 da manhã porque é “saudável, forte” e “sentia que tinha de estar aqui”.
A atenção dos presentes é inquebrável, apenas ameaçada por indisposições pontuais entre a multidão — rapidamente atendidas pela segurança e pelos médicos presentes. O eco da homilia ao longo da Via della Conciliazione era perfeitamente audível, como se as histórias marcantes do pontificado de Francisco, lembradas pelo cardeal Giovanni Battista Re, estivessem a ser retransmitidas por cada pessoa para o resto do mundo. A abertura da Igreja, a atenção aos refugiados, as visitas a locais de sofrimento, a atenção à Casa Comum, a paz e o habitual pedido de oração: todas mereceram aplausos fortes.
Cardeal Giovanni Battista Re recordou a mensagem d(...)
“É demasiada emoção, eu chorei muito porque este foi um grande pastor da Igreja. Uniu, deu muito amor, misericórdia”, descreve Silvia, que viajou da Costa Rica também para ver Carlo Acutis a ser beatificado. “Ele preocupou-se muito com uma Igreja de portas abertas, com uma Igreja em saída”, sublinha a peregrina, envolta numa bandeira do seu país enquanto recorda que, numa aplicação de oração na Costa Rica, lhe calhou rezar por Jorge Mario Bergoglio durante o conclave de 2013.
Como Papa Francisco, Bergoglio tornou-se muito importante na vida de Silvia, que passou a ser leiga comprometida desde então, para “ter mais amor e mais misericórdia para com os outros”.
Os aplausos ouvidos ao longo da homilia, salpicados por lágrimas e vivas ao Papa, regressaram com o fim da cerimónia. A urna de Francisco voltou a sair da Praça, agora eternamente.
Da Praça de São Pedro vê-se o topo do palco da próxima fase da Sede Vacante no Vaticano: a Capela Sistina, ainda sem a chaminé que diz ao mundo o que se passa no secreto Conclave.
Esse futuro ainda desconhecido não inquieta todos. Martin acredita “verdadeiramente que o novo Papa também vai ser ótimo”, e que “tudo vai ficar bem”. Acredita em Deus, e “que os cardeais sabem o que fazer”.
Mary tem mais incertezas. “No grande plano, sabemos que Deus está lá, mas estou a rezar para a vontade ativa de Deus ser realizada além da vontade passiva”, aponta a católica, sentada em reflexão sobre a despedida de Francisco.
“Há muita instabilidade no mundo, e esta era mais uma pessoa de estabilidade que desapareceu”, explica, esperando assim que o novo Papa seja “estável” e que “dê confiança”.
A vida continua depois de Francisco, e muitos dos jovens que ocupavam a Praça de São Pedro esfumaram-se pouco depois do fim da missa exequial, enchendo Roma com a alegria da juventude — e não deixando esquecer o Jubileu dos Adolescentes que o Papa marcou para este fim de semana.
Axel é das poucas centenas que permanece, sentada no chão. No ecrã gigante, a jovem francesa vê a urna de Francisco a ser transportada por Roma no "Papamóvel", a última viagem antes do sepultamento em Santa Maria Maior.
“Sou católica, fui à Jornada Mundial da Juventude em 2023, vi o Papa Francisco lá e queria dizer adeus e vir ao funeral”, disse a estudante de Erasmus que, apesar do cansaço da espera ao sol numa fila de mais de duas horas, se emocionou “muito” com a celebração “muito bonita”.
Axel vai sentir falta de Francisco, e espera que o novo Papa “goste de enfrentar os desafios”. O Papa de que se despediu este sábado era “boa pessoa e um homem muito aberto”.
Ou, pelas palavras da primeira leitura da missa exequial, “andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele”.