11 out, 2025 - 08:00 • Ângela Roque
Fernando Soares é padre vicentino, da Congregação da Missão. Está há um ano como capelão da Unidade Local de Saúde (ULS) de Santa Maria, em Lisboa. Mas este trabalho nos hospitais começou muito antes: foi capelão durante oito anos no Hospital de São João, no Porto.
Em entrevista à Renascença, fala da importância da assistência espiritual e religiosa e da experiência nos dois maiores hospitais do país, onde tem acompanhando sempre doentes em paliativos. Em Santa Maria é um dos elementos da Equipa Intra-Hospitalar de Medicina Paliativa.
Já segue a Informação da Renascença no WhatsApp? É só clicar aqui
Que papel é que tem um assistente religioso, nomeadamente na realidade destes hospitais tão grandes como o São João e Santa Maria?
Há todo um historial. Temos a felicidade de ter uma lei que enquadra, desde 2009, a nossa presença nos hospitais, a presença da Igreja Católica, com a função de capelão. Quando falamos de unidade de serviço religioso falamos como assistente espiritual, porque a lei atribui à Igreja Católica a missão de coordenar este serviço espiritual e religioso. Quando é religioso é também espiritual, quando é espiritual não é sempre religioso.
Essa assistência espiritual não tem de ser dada necessariamente por um sacerdote, é isso?
Exatamente. E os sacerdotes devem estar preparados para este acompanhamento, esta presença, dando resposta às necessidades espirituais que os doentes vão manifestando, sinalizando. E também nos compete a nós coordenar, fazendo chegar as necessidades espirituais de outras confissões religiosas que estão também enquadradas na própria lei.
A assistência espiritual não é um direito da Igreja, é um direito do doente
Portanto, a Igreja Católica coordena, tem essa missão, e se houver doentes de outras confissões religiosas que tenham necessidade de ser assistidos, faz essa ponte?
Sim, temos de ser a ponte de ligação. Em muitos casos o próprio doente sinaliza, diz que é de determinada igreja, protestante, evangélica ou outra, e fala connosco para facilitarmos a ida e a entrada, porque deve ser sempre coordenada com o capelão coordenador, que tem a missão de fazer chegar a ajuda. Chamam-se 'assistentes espirituais não vinculados', mas que vão completar esse direito. Porque a assistência espiritual não é um direito da Igreja, é um direito do doente, portanto, a nossa presença como Igreja é para cumprir, para responder a uma necessidade e a um direito do doente.
Já lhe aconteceu, certamente, dar assistência a quem não é católico?
Muitas vezes. Ao longo deste ano tenho comparado com o tempo em que fui capelão no Hospital São João, e aqui (Santa Maria) temos uma sociedade mais diversa, com outras confissões religiosas, e têm surgido mais solicitações. Os colegas que são capelães há mais tempo já falavam disso, que há mais solicitações.
O hospital é e será sempre um espelho da sociedade, estão ali as pessoas que constituem a nossa realidade social
Há mais diversidade na população do hospital.
Mais diversidade, desde irmãos da fé cristã, mas também muçulmanos e até hindus, que agora vão surgindo, porque eles estão aqui e vão estando também no hospital. No fundo, o hospital é e será sempre um espelho da sociedade, estão ali as pessoas que constituem a nossa realidade social.
E essa ponte é feita com os líderes religiosos das outras confissões não cristãs?
Sim, sim. Outras vezes o próprio doente simplifica, quando é o contexto de uma fé cristã. Ainda recentemente uma irmã de outra confissão cristã disse: "não, padre, eu não preciso que venha cá o pastor da minha igreja. Reze comigo". Conversámos e acabámos por rezar em conjunto. Pedem a bênção, porque essa presença espiritual é uma necessidade e vem realizada também em nós, quando estamos presentes.
E o que é que pedem mais? Para conversar, para uma confissão?
Não temos contabilizado, mas a maioria das abordagens é orientada para a dimensão, digamos assim, sacramental, quando é no contexto católico. Muitas vezes para o sacramento da Santa Unção. Muitas vezes, as famílias deixam isso para uma parte já muito final das vidas dos doentes...
Quando é uma circunstância de urgência é muito orientada para o sacramento. Mas diria que o acompanhamento espiritual será a maioria dos casos, e esse acompanhamento faz-se também com dimensão sacramental, seja com a confissão, seja com o sacramento da Santa Unção, seja com o sacramento da Eucaristia, que levamos aos doentes, ao domingo especialmente, mas em todos os outros dias da semana, conforme vai sendo definido. Vamos vendo, ponderando com o próprio doente, que vai manifestando a sua resposta e necessidade de fé.
Em Santa Maria integra também a Equipa Intra-hospitalar de Medicina Paliativa. Como é fazer parte desta equipa, e que significado tem esta assistência que ali dá?
Pessoalmente, tem sido muito belo. Em primeiro lugar, a forma muito hospitaleira com que a equipa, que já está instituída e tem uma história, me recebeu. Já a presença do anterior capelão, o padre Fernando Sampaio, era muito estimada e ele foi-me encaminhando também para a equipa e a equipa recebeu-me muito bem. Por isso, o primeiro significado é esse da beleza e da abertura a esta concessão, a esta cultura que esta equipa cultiva, da diversidade, de olhar para a pessoa de forma integral e atenta à dimensão espiritual.
A medicina paliativa pode trazer, e está a trazer à própria medicina em geral o verdadeiro olhar que devemos ter do doente, ver a pessoa toda no seu todo
E de reconhecer que isto tem importância para o doente?
A dimensão espiritual é uma realidade muito importante nesta abordagem dos cuidados paliativos. E esta equipa olha e reconhece a importância desta dimensão na pessoa.
A medicina paliativa é mais exigente em termos de assistência espiritual?
Não digo que seja mais exigente. Eu acho que a medicina paliativa pode trazer, e está a trazer à própria medicina em geral o verdadeiro olhar que devemos ter do doente, ver a pessoa toda no seu todo. Os outros âmbitos da medicina olham muito para a técnica, na perspetiva da cura e focam-se muito no doente ou no órgão que está afetado e não na pessoa que está doente. E a medicina paliativa traz-nos esse outro olhar: é a pessoa que está doente. E aí, diria que não é mais exigente, é muito mais fácil para nós todos estarmos presentes, e com esta cultura de olhar a pessoa toda, perceber a pessoa que está doente, olhar e responder às suas necessidades, sejam físicas, morais e espirituais.
REPORTAGEM
Equipa Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos de (...)
Como sublinhámos na reportagem que fizemos com a Equipa, em Santa Maria, é dada também assistência aos próprios cuidadores, às famílias.
Sim. Porque não é só a pessoa que está doente, é a família, são aqueles que estão a cuidar, se a pessoa estiver internada ou em casa. Muitos destes doentes são acompanhados no próprio domicílio. Por isso, todos aqueles que constituem o núcleo de cuidadores precisam de muito apoio dos médicos, das enfermeiras, mas também da dimensão espiritual. Manifestam essa necessidade e quando vão ao hospital com os familiares ou as pessoas de quem cuidam, fazemos uma abordagem, falamos. Às vezes desabafam as suas angústias.
A preparação da realidade da morte que está ali em perspetiva, em muitos casos, mais próxima, mais iminente ou mais remota, fazemos a preparação para isso. A preparação do próprio luto e o acompanhamento que fazemos no pós-luto. É uma relação que se vai estabelecendo e a nossa presença é muito importante.
A Equipa tem mesmo uma consulta de apoio ao luto, mas o assistente religioso também está presente nessa ajuda, não é?
Sim, não só na preparação, mas depois a seguir à morte do próprio doente, às vezes com telefonemas ou momentos... Como sacerdotes, como padres, faz parte deste rito do luto, saber que faz hoje sete dias, faz hoje 30 dias que o doente morreu, poder dizer: "olhe, hoje na missa vamos lembrar o seu familiar ou aquele a quem cuidou". São momentos de vivência do luto e são muito importantes para o enquadramento daquela relação que se estabeleceu, muito forte. E os cuidadores precisam de muito cuidado.
E os profissionais de saúde também precisam?
Também. Eles próprios, como a reportagem da Renascença também mostrou, têm momentos em que se questionam, porque há uma identificação com aquele doente, ou uma identificação com a família do doente, e aquilo cria angústia. Na reunião de equipa desabafam, há partilha do que sentem, colocam dúvidas. "padre, o que é que isto significa?". E nós aí podemos ajudar e há uma reação positiva da nossa presença junto deles.
Quando ajudamos a unir pontas soltas da vida, o doente fica muito mais tranquilo, mais sossegado e aceita mais facilmente as propostas de tratamento
Mesmo aqueles que podem não ter uma fé mais aprofundada valorizam a sua presença?
Sim, tenho sentido isso. Respondendo a dúvidas simples, às vezes, outras mais complexas, umas menos mais pessoais, outras menos, mas há necessidade de, dentro da nossa área, ajudar a perceber até a reação dos doentes.
Com exemplos, as coisas talvez se tornem mais percetíveis: ainda recentemente nos paliativos um doente em fase muito avançada da doença recebeu muito mal a equipa.
Às vezes há momentos de revolta, não é?
O doente estava nesse momento de revolta, a equipa tentou saber como podia ajudar e ele disse: "podem ajudar se saírem". Depois passámos nós, e daí a pouco alguém da equipa perguntava: "chegou a passar por fulano tal?". "Sim, passei", "então já fez efeito, porque agora já nos recebeu". O nosso trabalho, a nossa missão, passa por isso, ajudar o doente a integrar, a dar sentido, a unir pontas da sua vida. Claro que isso vai-se manifestar na relação que estabelece com os técnicos, com os médicos e enfermeiros.
Quando ajudamos a unir pontas soltas da vida, o doente fica muito mais tranquilo, mais sossegado e aceita mais facilmente as propostas de tratamento, de cuidado técnico que é necessário fazer. Se a pessoa não está bem no sentido da sua vida, também não é fácil integrar os cuidados que lhe querem prestar.
O capelão tem mais ferramentas que os outros para lidar ele próprio com as dificuldades de uma assistência destas?
Eu acho que não tem mais ferramentas que os outros, mas não pode descuidar as ferramentas que tem ao seu dispor, porque senão também não vai conseguir desempenhar bem a sua missão. Porque é uma pastoral, é uma missão altamente desgastante, por isso também tem de cuidar muito bem da sua vida espiritual, da sua postura, tem de ter com quem desabafar, com quem falar das suas angústias.
E isso acontece naturalmente?
Sim, Felizmente nesta ULS, que engloba os dois hospitais, Santa Maria e Pulido Valente, temos uma equipa de capelães, somos três, e fazemos a partilha não só daquilo que tecnicamente vamos fazendo, mas também dos problemas que vão surgindo, como responder. Esse auxílio é fundamental. Mas a pessoa tem de trabalhar também a sua concepção espiritual, de oração, de relação com Deus, de sentido de vida, porque se não temos um sentido para a nossa vida, é difícil ajudar alguém a encontrar um sentido para a sua. Quem está perdido não guia ninguém.
Este sábado, assinala-se o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos. A sua experiência tem mostrado que ainda há tabus relativamente a esta área da medicina, mesmo entre os profissionais de saúde?
Ah, sim. Penso que a formação clínica está muito orientada para a cura, e quando a cura não é possível, parece que há um fracasso. A medicina paliativa, quando não há perspetiva de cura, é importante para dizer que há sempre muito a fazer na dimensão do cuidado e da atenção à pessoa e às suas necessidades. Penso que algum preconceito ou tabu que existe em relação aos cuidados paliativos pode advir daí.
E de algum desconhecimento? Devia haver mais atenção ao nível da formação dos médicos?
Sim. Embora aqui não conheça em profundidade o currículo, sei que o tema já começa cada vez mais a ser abordado. Mas há ainda muito uma perspetiva pessoal, se algum estudante tem mais sensibilidade, ele próprio vai procurar uma pós-graduação ou uma conferência nesta área. Mas, dentro do núcleo do currículo ainda é pouco abordada esta perspetiva.
Este ano o lema internacional deste Dia Mundial é "Cumprir a Promessa do Acesso Universal aos Cuidados Paliativos", com o objetivo temporal de em cinco anos (até 2030) haver a integração plena destes cuidados nos sistemas de saúde. Em Portugal é urgente alargar a oferta e permitir o acesso aos paliativos?
Sim, não só o acesso direto, mas quanto mais cedo melhor, estas duas dimensões. Não só o acesso real, digamos assim, com um serviço que os possa acolher, mas orientados cedo...
O tabu ou preconceito em relação aos cuidados paliativos existe porque nós, como sociedade em geral, lidamos muito mal com a morte
Quanto mais cedo for a intervenção, mais se ajuda o doente?
Mais facilmente podemos ajudar e orientar o doente para aquilo que são as suas necessidades, dando-lhe maior dignidade para este tempo tão importante, que é o tempo de morrer.
Também há um tempo de morrer, e penso que o tabu ou preconceito em relação aos cuidados paliativos existe porque nós, como sociedade em geral, lidamos muito mal com a morte. Há quem diga que não vive bem quem não olha para a morte na perspetiva de que faz parte da sua vida.
Tem a ver também com a forma como a sociedade de hoje encara o próprio sofrimento?
Sim. Os cuidados paliativos são exatamente para ajudar, amenizar, paliar o sofrimento, não só retirando as dores. O sofrimento é mais do que a dor.
Numa sociedade cada vez mais envelhecida, em que as pessoas vivem cada vez mais tempo, era necessário olhar para os paliativos com mais atenção, e haver mais investimento?
Isso para mim parece-me fundamental. Porque aumenta a longevidade e os problemas também se vão alongar. Quando nos envolvemos tão apaixonadamente, em polos às vezes opostos, numa discussão sobre eutanásia ou antecipação de vontade de pôr fim à vida, não se discute o investimento necessário em equipas de cuidados paliativos, bem preparadas, que possam responder às necessidades. Quando percebemos, depois de falar com os doentes, que quando dizem muitas vezes que querem morrer, na verdade o que querem dizer é que querem ser acompanhados para essa boa morte.
Às vezes, as comparações podem ajudar-nos: imaginemos quanto empenho e quanto envolvimento tem a preparação do nascimento? Quanto empenho é que nós pomos na preparação da morte de um dos nossos? Não é similar, de maneira nenhuma.
Como sociedade, todos nós temos de nos empenhar mais para dar a este tempo de morrer as condições de dignidade, de humanização
Porque é uma etapa que não se encara com a naturalidade.
Pois, mas a morte é tão natural quanto a vida. Como sociedade, todos nós temos de nos empenhar mais para dar a este tempo de morrer as condições de dignidade, de humanização, para que ele possa acontecer conforme foi a vida.
Que mensagem final deixa neste Dia Mundial dos Cuidados Paliativos?
A palavra paliativo inspira aquilo que devem ser os cuidados: devem ser como um manto. A palavra paliativo vem de palium, um manto. E nós sabemos o que é que faz um manto. Não é propriamente uma peça fixa, que já está determinada com as suas formas. O manto envolve sempre, e dá para estas ou aquelas condições, para um corpo mais alto ou mais baixo, mas envolve e aconchega. E essa é, na verdade, a mensagem que eu gostaria de deixar; é que saibamos abraçar, aconchegar aqueles que estão nesta fase, a preparar o seu tempo, a sua etapa de partida deste mundo. Que se sintam aconchegados, amados, acompanhados. Então aí, sim, estamos a cumprir, como sociedade, como Igreja também, na religião católica ou noutra, estamos a cumprir a nossa missão de sermos companheiros. E o próprio hospital também cumpre a sua missão de ser hospitaleiro, acolhedor de todo aquele que ele recorre com esperança de ter resposta para as suas necessidades.