25 jan, 2021 - 14:59 • Fábio Monteiro
Vanessa Dias teve pela primeira vez um comando nas mãos aos seis anos. Corria 1996 e o pai tinha comprado uma Nintendo 64, numa loja em Alvalade, Lisboa, para jogar Legend of Zelda, Ocarina of Time – hoje, um clássico da indústria. “Na altura, era muito pequenina, era mais espetadora do que jogadora. Acompanhava o meu pai nas sessões de jogo e muitas vezes ficava a ver”, lembra. O pai de Vanessa “era muito fã” de videojogos; era um gamer, ainda antes do termo ser de uso corrente. “Felizmente, nunca teve aquele conceito do que é que seria um brinquedo para menino ou para menina.”
Graças à aventura de Link, protagonista da saga Zelda, Vanessa ficou “apaixonada por videojogos”. Daí a tornar-se uma gamer girl foi um pequeno salto. “Fui fã de Pokemon durante muito tempo. Joguei muito Gameboy. Depois, joguei muito PC com o Sims. Estive nas consolas muito tempo. Até que construí o meu próprio PC e neste momento jogo no computador. Diria que jogo um pouco de tudo, mas sobretudo RPG [Role Playing Games]”, conta a gestora de redes sociais .
Ana Costa, 30 anos, partilha uma biografia semelhante. Foi introduzida ao mundo dos videojogos “na consola do irmão da vizinha, uma Mega Drive.” O jogo em causa foi o Castle of Illusion do Mickey Mouse. “Eu na época gostava imenso da Disney, não necessariamente dos filmes, mas das bandas desenhadas. Adorava as do Tio Patinhas, o Pato Donald. Quando vi um jogo em que eles estavam lá, eu fiquei: ‘Ó meu Deus. Quero jogar.’ Não quero saber do Mickey, quero interagir com o Tio Patinhas. Aquilo cativou-me imenso”, lembra.
A magia no ecrã da televisão deixou-a fascinada, de tal forma que recorda a experiência com uma boa dose de nostalgia. “Uma criança que está habituada a lidar com coisas mais palpáveis, com brinquedos mais palpáveis, que de repente vê-se fora da sua própria imaginação a ter que construir as coisas e a vê-las refletidas num ecrã, e a poder participar, efetivar as escolhas que são feitas e vê-las a acontecer ao mesmo tempo. É fascinante. Ainda para mais, numa altura em que isto não era muito comum. Fiquei: eu quero mais, eu quero jogar mais. Isto é giro. Eu ando com ele para a esquerda e ele vai para a esquerda. Isto é espetacular.”
Ao contrário de Vanessa, Ana, que trabalha numa agência de comunicação digital, teve que lutar pela sua primeira consola. “Tive sempre aqueles gameboys emprestados que eram do primo ou que eram da amiga. Mas demorou ainda algum tempo.” Os pais da designer associavam os videojogos “a uma coisa mais de rapazes” e tinham também receio que fosse uma “distração da escola”. “O meu primo teve consolas desde que saiu a PlayStation, mas eles, apesar de tudo, olhavam para mim e pensavam: ela quer mais brincar com bonecas”, conta.
Mas a persistência de Ana acabou por dar frutos: eventualmente, recebeu uma PlayStation 2, com o jogo Gran Turismo. “Aqui, a parte gira, é que o meu pai lá cedeu e lá me ofereceu a PlayStation só que não me ofereceu o cartão de memória, que permitia gravar o progresso. Então, o que eu fazia: os meus jogos de Gran Turismo era todos os dias eu ir tirar a carta de condução [que era obrigatório ao começar um novo jogo]. E não tinha como gravar. Era assim que passava as minhas tardes”, recorda.
Ana Costa e Vanessa Dias não são unicórnios, mas as gamer girls portuguesas ainda são uma espécie difícil de encontrar – até para quem está dentro do meio. Por isso mesmo, em outubro de 2019, Vanessa Dias criou a “Videojogo, disse ela”, uma “comunidade de networking para jogadoras e mulheres que trabalham na indústria do gaming”.
“Costumo dizer que foi uma razão muito egoísta. Dei por mim a pensar que conhecia muitos jogadores, mas conhecia muito poucas jogadoras. Há muito tempo que jogava, estava ligada ao gaming e conhecia poucas mulheres. E pensei: o problema é meu, porque elas existem e eu quero conhece-las”, conta.
A gestora de redes sociais criou um evento na internet, arranjou um local para o encontro, mas “não fazia ideia se ia aparecer alguém”. “Na pior das hipóteses, iam aparecer só as minhas amigas - elas não jogam, mas iam dar o seu apoio. Na verdade, apareceram quase 20 mulheres. Se dúvidas houvessem, ali acabaram”, diz. (Devido à pandemia, os encontros presenciais passaram para o Discord desde março do ano passado.)
Segundo dados da Marketest, existe uma clara uma assimetria de género no que toca à posse de consolas ou de um computador para jogar em Portugal. Entre 2006 e 2007, 58,6% das casas com um homem possuíam uma consola de jogos, contra 41,4% dos lares com um representante feminino. Já dados de 2017, colocavam em 33,5% das casas dos portugueses uma consola; discriminados os dados por género, os homens tinham 39,2% e as mulheres 28,4%.
Apesar de só ter 30 anos, Vanessa tem já um longo currículo profissional e académico no campo dos videojogos. Em 2012, o tema da sua tese de licenciatura foi o “consumo e comunicação de videojogos no feminino” em Portugal; depois, estagiou e foi trabalhar na já extinta revista de videojogos BGamer; colaborou com o portal Game Over, do Sapo, a fazer análises de jogos. Em 2015, criou a página Glitch Effect, portal noticioso dedicado aos videojogos.
Uma das conclusões a que Vanessa chegou na sua investigação para a sua tese foi que a maioria das gamer girls entravam no meio “graças a um elemento masculino, fosse o pai, fosse o irmão, fosse o primo”. E que as motivações para jogar são também diferentes. “Os homens são muito mais competitivos. Privilegiam este ambiente de competição e ganhar. As mulheres não vão tanto pelo desafio, mas pela experiência. Portanto, gostam muito mais de questões narrativas, de perceber o porquê.” Em todo o caso, no essencial, a paixão pelos videojogos era igual para ambos os géneros.
Houve um tempo em que os videojogos foram vistos como algo infantil, um passatempo acéfalo, uma indústria de nicho, mas sem capacidade de expansão. Em suma, um clichê passageiro de crianças e adolescentes, cuja principal expectativa era que acabasse por ficar esquecido num baú, tal como acontece à maioria dos brinquedos, ultrapassada uma certa idade. Os videojogos, contudo, parecem ser a exceção.
No ano passado, a HBO adquiriu os direitos do jogo pós-apocalíptico Last of Us para uma adaptação televisiva. O ator Tom Holland, que encarnou o Homem-Aranha nos últimos filmes da Marvel, irá, num futuro próximo, dar corpo a Nathan Drake, herói da série de jogos Uncharted, do estúdio Naugthy Dog.
Mais: em 2021, a PlayStation é a principal mina de ouro da Sony, empresa que teria ido à falência em 2015, não fosse o sucesso das várias gerações da consola; em 2014, a empresa japonesa registou mais de 1750 milhões de euros em prejuízos. Não foram os telemóveis, as televisões, os leitores de Blu-ray, mas uma consola que salvou a empresa. Em novembro do ano passado, a Sony lançou a quinta geração da consola PlayStation. Passados dois meses, a consola continua virtualmente esgotada nos principais pontos de venda nacionais, apesar de custar 400 euros, a versão mais barata.
“Há cada vez uma maior consciencialização de que os videojogos são uma coisa mainstream e que move muito dinheiro”, diz Ana Guerra, 25 anos, antes de fazer uma comparação: há eventos de gaming “mais bem organizados que os MTV Video Awards”. Exemplo disso: em 2020, na cerimónia de entrega dos Game Awards, os óscares dos videojogos, o músico e cantor Eddie Vedder interpretou uma das músicas do cancioneiro do jogo Last of Us Parte II.
Ana Guerra é gamer, streamer no Twitch e, além disso, trabalha na GoatPixel, agência de comunicação e conteúdos dedicada ao mercado de Gaming e de Esports. “Nas evoluções de Super Sayan, devo já ir na Guerra três ou quatro, no que toca a jogos. Agora, não só jogo muito, como trabalho nos videojogos e nos meus tempos livres tenho um hobby que é fazer stream no Twitch que também está relacionado com os videojogos.”
A jovem de 25 anos garante que não é um caso isolado, mas admite que existem poucas mulheres a trabalhar videojogos em Portugal. E diz que o mesmo se passa no universo dos esports: existem atletas femininas portuguesas, muitas das quais jogadoras de Counter-Strike: Global Offensive (CS GO), mas o número “não é sequer comparável” com o das equipas masculinas.
Segundo Ana Guerra, o desporto eletrónico é espelho do desporto tradicional. “Tal como no futebol, tens equipas femininas e masculinas, mas as equipas masculinas têm muito maior popularidade, têm ordenados melhores e têm melhores oportunidades.”
No espectro de raridade das gamer girls portuguesas, Marta “D7” Barreira está quase no topo. A jovem de 20 anos é atleta de esports; desde 2019, alinha pela equipa feminina espanhola da Vodafone Giants de CS GO. Envolvida como está no meio, Marta diz também conhecer “poucas” videojogadoras em Portugal. “Sei de algumas, mas penso que sim, ainda são pouquíssimas, e penso que obviamente deveriam existir mais”, diz.
A jovem “atiradora” lembra-se de ter três ou quatro anos e ver os tios a jogar Counter-Strike 1.6. “Foi o jogo que mais me marcou e até hoje, volta e meia, ainda o abro”, conta. Em 2015, um tio ofereceu-lhe uma licença de CS GO; o jogo uniu-se, então, à fome de competir.
“Quando se joga pela desportiva, divirto-me sempre, não tens aquela pressão para ganhar. É só porque te apetece, entre aspas, dar uns tirinhos. E não tem aquela pressão”, diz.
Segundo “D7”, jogar profissionalmente é algo muito complicado. “Na Ibéria, mas principalmente em Portugal. É complicado chegar a ser profissional, porque não há assim muito conhecimento. Então, se não há muito conhecimento sobre esta indústria, também suponho que não haja muito investimento”, afirma.
Apesar de representar uma equipa profissional, Marta recusa envergar essa etiqueta por completo. “É um pouco complicado profissionalizar isto. É remunerado, mas não chega para uma pessoa viver. Portanto, ainda não cheguei a ser profissional, profissional, mas eu acredito que para aí caminho”, explica.
Como qualquer atleta, “D7” fala de sacrifícios para atingir o nível que tem. Vida social? “Quase inexistente.” No universo online, todos os dias fala com pessoas diferentes, por via do seu canal de streaming. “Mas na vida real, por assim dizer, descuida-se um bocadinho a vida pessoal.”