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1937-2025

Maria Teresa Horta, a escritora "feminista antes do tempo"

04 fev, 2025 - 20:05 • João Pedro Quesado

"Jornalista é a minha profissão, escritora é quem eu sou", dizia a autora cuja infância explica o que defendeu ao longo da vida. Desobediente desde cedo, Maria Teresa Horta, que morreu esta terça-feira, aos 87 anos, foi pagando "o preço de não se calar".

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Como começou o feminismo de Maria Teresa Horta? Patrícia Reis, autora da biografia "A Desobediente", traça a origem a um episódio em que engole uma carta para proteger a mãe depois desta se apaixonar por outra pessoa, abandonar a casa e deixar as três filhas e o marido para trás.

"A Teresa é a mais velha, tem nove anos, e é constantemente acusada de ser igual à mãe", explica a amiga numa entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, em 2024. Maria Teresa ouvia que ia ter "muitos amantes como a mãe", um "grande escândalo na sociedade lisboeta", e era descrita como "uma valdevinas", estouvada e sem vontade de trabalhar.

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"A Teresa percebe muito rapidamente que a única coisa que a mãe quer é ter a possibilidade de ser livre", acrescenta Patrícia Reis, lembrando ainda a "avó Camila" que leva Maria Teresa Horta "às reuniões das sufragistas", onde esta conhece Maria Lamas - que a defende no processo em torno do livro "Novas Cartas Portuguesas".

"Este processo de estar constantemente a advogar que as mulheres podem é porque ela começou por dizer a minha mãe pode", sublinha a biógrafa, reforçando que Maria Teresa "decidiu proteger a mãe".

Maria Teresa Horta, que morreu esta terça-feira aos 87 anos, nasceu a 20 de maio de 1937 numa família da aristocracia portuguesa, estudou no Liceu D. Filipa de Lencastre e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A vida e obra ficaram marcados pelas "Novas Cartas Portuguesas", um livro escrito com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa para denunciar o regime do Estado Novo, e cujo mote é dado por um episódio de violência.

A poesia de Maria Teresa Horta já era, antes da Revolução dos Cravos, "completamente inovadora", diz Patrícia Reis, "quase chocante". "Faz com que o regime apreenda as suas obras, faz com que leve uma sova na rua por duas homens, que é o que dá o mote para as Novas Cartas Portuguesas", explica a autora, considerando que Maria Teresa "paga o preço de não se calar, de dizer exatamente aquilo que pensa, de dizer exatamente aquilo que quer escrever". Algo de que "nunca abdicou".

O livro, publicado em 1972, foi rapidamente censurado pelo regime com uma acusação de pornografia e atentado ao pudor, mas o envio da obra para França deu ao livro, e à detenção das "Três Marias", reconhecimento internacional. Esse reconhecimento atravessou o Atlântico, e a detenção foi até o tema da primeira Conferência Internacional Feminista de Planeamento, nos Estados Unidos da América (EUA), em junho de 1973.

"Ela foi prejudicada por ser feminista antes do tempo", realça. "Agora o feminismo está na moda, já nem sequer é uma questão de género, é uma questão do ser humano, é uma questão de inteligência", enquanto "antes do 25 de Abril a vida das mulheres era verdadeiramente triste em termos de oportunidades, de reconhecimento, de validação, de liberdade e autonomia corporal, e não mudou muito do dia 25 de Abril para o dia 26".

Antes de tudo isso, Maria Teresa Horta estreou-se na poesia com o livro "Espelho Inicial", em 1960, publicando outras oito obras de poesia e uma obra de ficção antes das "Novas Cartas". Seguiram-se 21 livros de poesia, como o "Minha senhora de mim" - que coloca a mulher como centro da narrativa e da relação com o homem - e oito livros de ficção, com o último, "Meninas", publicado em 2014.

Há outro episódio fundamental na infância, que Maria Teresa Horta descreveu como "horrível": o momento em que o pai lhe queima os livros, por achar impróprio para uma rapariga.

"Para mim foi fundamental perceber a Teresinha, esta criança a quem acontecem tantas coisas", confessa Patrícia Reis, sublinhando uma "cicatriz da infância e da juventude" que "são o território a partir do qual a Teresa escreve" e onde, "simbolicamente, está lá tudo". Completando, "se percebermos a Teresinha, percebemos a Maria Teresa. E, se percebermos a Teresinha, também percebemos a obra dela de uma maneira completamente diferente".

A mulher, para quem a desobediência era uma das palavras preferidas, recusava o estereótipo de feminista militante, defendendo que "as mulheres têm as mesmas capacidades, os mesmos direitos, os mesmos deveres", e por isso contesta a necessidade de obediência aos homens.

Maria Teresa de Horta escreveu como jornalista para o "Diário de Lisboa", "A Capital", "República", "O Século", "Diário de Notícias" e "Jornal de Letras e Artes". No "A Capital", dirigiu o suplemento "Literatura e Arte", onde foram publicados nomes como Natália Correia, Ary dos Santos, José Saramago, António Gedeão, Alexandre O"Neill e Mário Cesariny.

Foi ainda militante do Partido Comunista depois do 25 de Abril, entre 1975 e 1989. Como jornalista, chefiou a redação da revista "Mulheres", papel em que entrevistou mulheres como Maria de Lourdes Pintasilgo, Simone de Beauvoir, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Maria Bethânia.

Os prémios começaram a chegar relativamente tarde. Patrícia Reis sublinha que, "se compararmos a Teresa com um poeta homem da sua geração, e formos avaliar palmarés, homenagens e prémios, se calhar ficamos com um bom retrato da invisibilidade a que ela foi obrigada".

Em 2011, Maria Teresa foi distinguida com o Prémio D. Dinis 2011 da Fundação Casa de Mateus pela sua obra "As Luzes de Leonor". Aceitou o prémio, mas recusou-se a recebê-lo das mãos do primeiro-ministro de então, Pedro Passos Coelho, acusando-o de estar "a destruir o país". A mesma obra valeu-lhe o Prémio Máxima de Literatura.

Em 2017, recusou o quarto lugar "ex-aequo" do Prémio Oceanos, por considerar que lhe tirava a dignidade. O mesmo livro, "Anunciações", recebeu o Prémio Autores de 2017 na categoria melhor livro de Poesia.

Em 2020, o Ministério da Cultura distinguiu-a com a Medalha de Mérito Cultural, e no ano seguinte foi distinguida com o Prémio Literário Casino da Póvoa, no festival literário Correntes d'Escritas, pela obra "Estranhezas".

Em 2022, foi agraciada com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade. Em 2004, já tinha sido agraciada com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio.

Maria Teresa Horta foi incluída, no ano passado, numa lista elaborada pela estação pública britânica BBC de 100 mulheres mais influentes e inspiradoras de todo o mundo, que inclui artistas, ativistas, advogadas ou cientistas.

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