25 fev, 2025 - 17:06 • Maria João Costa
Venceu dois prémios literários, o Saramago e o Agustina Bessa-Luís, num abrir e fechar de olhos. Francisco Mota Saraiva apresenta-se como “um rapaz que tinha vontade de escrever livros”.
Em março, lançará “Morramos ao menos no porto” (ed. Quetzal), o livro com que venceu o Prémio Literário José Saramago, mas continua a dividir os seus dias entre a vontade de escrever e o trabalho como jurista e consultor.
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Na sua estreia no Festival Correntes d’Escritas, o autor conversou com a Renascença. Diz acreditar que “a arte, a literatura” apontam “caminhos de esperança”, em tempos onde a atualidade é mais de sombras do que de luz
Quem é Francisco Mota Saraiva?
Pergunta difícil de responder. O Francisco Mota Saraiva é um rapaz que tinha muita vontade de escrever livros e que lutou para que isso acontecesse e, aparentemente, agora está a acontecer.
Já não escreve nas horas vagas?
Ainda escrevo nas horas vagas, mas as horas vagas transformam-se cada vez mais em horas preenchidas, porque cada vez ocupo mais o meu tempo com a escrita de forma permanente e constante.
Venceu o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís com “Aqui Onde Canto e Arde”. Que história é esta que surpreendeu o júri?
Esse livro partiu de uma ideia que tinha em criar um conjunto de contos sobre a morte e sobre aquilo que é a nossa circunstância e a nossa inevitabilidade perante a morte.
Às tantas, comecei a encontrar pequenos detalhes que de alguma forma se poderiam ligar entre estes contos, e transformaram-se num romance com a criação de oito personagens. Cada uma fala sobre aquela que é a sua circunstância de estar perante a fatalidade e sobre aquelas que são as suas violências mais profundas.
O livro é passado entre diferentes localidades, em Portugal e Moçambique. É, sobretudo, uma ideia de nos confrontarmos com aquilo que são as nossas violências e como é que essas violências também podem de alguma forma ser aumentadas, em função daquilo que são as nossas relações familiares, daquilo que pode ser a nossa condição de pobreza ou de não termos construído os nossos sonhos.
Continua a trabalhar como jurista e como consultor?
Sim, infelizmente ainda não é possível viver única e exclusivamente de escrita. Isso, obviamente, que é um sonho. Acho que isso é um sonho para qualquer escritor, até porque a possibilidade de estar dedicado a momentos completos à escrita, os resultados surgem de forma mais convincente, pelo menos para aquilo que eu quero fazer.
Tive essa possibilidade, quando tive a bolsa de criação literária, a Direção Geral do Livro e depois também na residência da Fundação Eça de Queiroz. Em todos os períodos que tenho de maior dedicação à escrita, efetivamente noto que não só a fluidez, mas o resultado que ambiciono é diferente.
Espero um dia poder chegar a essa possibilidade de me dedicar por inteiro à escrita.
Prémio José Saramago
O autor que venceu esta terça-feira o Prémio José (...)
Candidatou-se ao Prémio José Saramago e venceu com o livro “Morramos ao menos no porto”, um livro que vai chegar ao mercado em março. Que livro é este?
Este é um livro com uma história mais linear, no sentido em que talvez o leitor consiga perceber melhor qual é o assunto base da história. É uma história que pega muito na ideia de que o nosso amor se pode prolongar, para além da nossa própria vida e como é que isso nos afeta na relação com os demais.
É um livro que, de alguma maneira, é uma certa distopia. São abordados alguns temas como o aborto clandestino, a ideia de jovens que partem para uma guerra, mas tudo isto criado num ambiente, diria, surreal, meio distópico.
Se calhar as pessoas conseguem identificar-se e encontrar-se nessas histórias e nessas vivências. Não tive propriamente a ideia de retratar aquilo que é a nossa realidade, e efetivamente a nossa realidade, às vezes, tem muito de distópica.
Mas as pessoas vão conseguir encontrar-se, se calhar, naquelas que são as suas dores mais intensas do dia-a-dia. Sobretudo é esta ideia de que um grande amor pode-se prolongar para lá da própria vida.
Quando ganhou o Prémio Saramago dizia que vivíamos momentos com pouca luz. É assim que olha para o mundo de hoje, onde temos Donald Trump de volta, onde temos várias guerras a acontecerem. É um mundo com muitas sombras?
Sim, eu tenho de ser otimista e acho que a arte, a literatura, que me é mais próxima, apontam-nos caminhos de esperança. No entanto, é muito difícil olharmos para aquela que é a realidade que está a transmutar-se de uma maneira tão intensa e tão próxima de nós, e a verdade é esta: nós assistimos e ligamos a televisão, abrimos os jornais e há muitas feridas que se começam a abrir e isso está longe, mas está cada vez mais próximo de nós.
Eu não sei qual é a capacidade do ser humano para dar a volta a isso, porque a verdade é que a história é relativamente cíclica e um ciclo mau muito possivelmente estará de volta.
Isso assusta-me. Tento ser otimista, mas se calhar também não faz muito parte da minha natureza, mas quero acreditar que ao fundo ainda há sempre uma luz.
Acender essa luz, às vezes, pode ser o caminho através da arte, da literatura, da pintura, porque isso obriga-nos a ver o outro e a olhar o outro.
O escritor tem algum superpoder?
Tem, eu não lhe chamaria um “superpoder”, mas é o superpoder de se refugiar dentro de si, daquelas que são as suas ideias, daquelas que são as suas lutas, e transformar isso numa obra e em algo de maior que os outros possam ler.
Podem não identificar-se, mas podem encontrar nas entrelinhas, nas palavras que foram ditas ou que ficaram nos silêncios da frase, algo de maior.
Ou seja, a arte não salva, mas pode confortar?
Sim, conforta. Não acredito necessariamente que a arte nos salve por inteiro, mas traz-nos esse conforto e traz uma forma diferente de olharmos para as coisas.
Nós temos as nossas necessidades mais básicas que têm de ser supridas, primeiramente, mas depois delas estarem supridas, fica necessariamente esta questão da alma, uma questão muito mais metafísica, que pode ser comportada efetivamente através daquilo que é a criação humana, que é aquilo que o ser humano efetivamente tem de melhor, que é poder criar natureza para lá de si próprio.
Há em si alguma dimensão de fé?
Sim, eu tento compreender quando alguém me diz que não tem essa dimensão de fé, mas acho que todo o ser humano é dotado de alguma fé.
Isso pode assumir diferentes formas. Podemos estar a falar de um Deus com o qual nos identificamos, numa determinada religião, ou então pode ser simplesmente o nosso encontro com a natureza, a própria ideia de esperança.
Todos nós temos esperança. Está muito associada a esta ideia de fé, portanto, e se nós continuamos a existir e a lutar pelas nossas coisas, é porque temos alguma fé.
Eu mais do que numa dimensão religiosa, tendo a acreditar, apesar como eu dizia, não ser propriamente um grande otimista, que vale a pena, que podemos às vezes com pequenas coisas tentar criar caminhos. Essa para mim, é a minha ideia de fé.
É criar um caminho que vale a pena, com os nossos amigos, com os nossos filhos ou com um perfeito anónimo.
Antes de sonhar-se escritor, era certamente leitor. Isso foi um caminho importante para chegar onde o Francisco Mota Sarava está hoje?
Sim, sem dúvida. Mais do que ser escritor ou gostar de escrever, é a leitura. Todos os momentos que posso, ou não estou a trabalhar, ou não estou a fazer outra coisa qualquer, tento ocupá-los com a leitura.
Felizmente tive a possibilidade de nascer numa casa com livros, dos meus pais me incentivarem à leitura, e é, se calhar, uma das formas que encontrei para me salvar e para não ficar demasiado absorvido em pensamentos que eu não consigo explicar e que muitas vezes a literatura me ajuda a entender.
E os seus colegas de trabalho já olham para si como escritor?
Não sei, porque a bem da verdade, quando ganho os prémios, obviamente que as pessoas me felicitaram por isso, mas o dia-a-dia, em bom rigor, mantém-se igual, não há nada que tenha alterado.
Os escritores não são propriamente estrelas de futebol ou da música, eu sinto que as coisas mantiveram-se iguais.
Já está a escrever mais alguma coisa para além deste livro que vai sair agora em março?
Este livro do Prémio Saramago ainda não está publicado e eu quero que ele tenha tempo para respirar e que os leitores o possam conhecer, mas efetivamente há sempre coisas que estão em processo.
Há coisas que já estão meio terminadas, outras que virão, certamente, mas agora a minha ideia é deixar este respirar para que os leitores o possam conhecer, não conhecer apenas o Prémio, mas conhecer aquilo que é a minha literatura.