Entrevista Renascença

Escritora Isabel Allende "furiosa" com Trump, denuncia "fanatismo, ignorância e medo"

23 mai, 2025 - 07:00 • Maria João Costa

De passagem por Lisboa para lançar o novo livro “O Meu Nome é Emilia del Valle”, a autora de origem chilena, que vive há mais de 20 anos nos Estados Unidos, considera que “Trump representa o pior”. Lamenta que estejam a “deportar pessoas que não têm culpa” e a “exploração do medo”.

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Escritora Isabel Allende "furiosa" com Trump, denuncia "fanatismo, ignorância e medo"
Escritora Isabel Allende "furiosa" com Trump, denuncia "fanatismo, ignorância e medo"

Aos 82 anos, a viver há mais de 20 nos Estados Unidos, a escritora Isabel Allende mostra-se “furiosa” com a administração Trump. A autora traduzida em mais de 40 línguas diz, em entrevista à Renascença, que se vive “um momento péssimo para os Estados Unidos”.

Há um regresso do autoritarismo e da extrema-direita. Há uma exacerbação do pior, do medo, do ódio, da divisão, da polarização”, explica a autora na passagem por Lisboa para o lançamento do seu novo romance “O Meu Nome é Emilia del Valle” (Ed. Porto Editora).

Contudo, a autora de língua espanhola mais lida no mundo considera que há esperança. “Não estou desesperada”, sublinha. “Vivemos por ondas. Isto passa, nada é eterno, tudo muda”, refere, recordando o que aconteceu no seu país de origem, o Chile.

“Quando tivemos a ditadura no Chile, estivemos 17 anos em que tudo estava controlado, menos o dinheiro! Estava controlada a imprensa, os partidos políticos, o congresso, o sistema de justiça, tudo! Não havia qualquer hipótese de oposição ou resistência e, no entanto, a ditadura caiu e caiu pelo seu próprio peso. Então tudo é possível”, aponta.

Ainda assim, Isabel Allende classifica o trabalho da administração Trump com palavras como “fanatismo, ignorância, que funciona com o medo e a divisão”. A autora, que sente na pele também a condição de estrangeira, lamenta que “agora os culpados de tudo são os imigrantes”.

“Há milhões de imigrantes nos Estados Unidos que trabalham e que contribuem com os seus impostos para o país. É um país formado por imigrantes, mas agora apresentam o imigrante como um criminoso, um violador, um assassino, um gangster. Estão a deportar pessoas que não têm culpa de nada e é muito duro ver o que se passa. Acho que há uma exploração do medo”, diz de forma crítica.

Um novo romance que tem como pano de fundo o Chile

O novo romance que veio lançar a Portugal, “O Meu Nome é Emilia del Valle”, conta a história de uma jovem mulher que se torna primeiro escritora e depois jornalista. De caráter forte e independente, Emilia, diz Isabel Allende tem algumas semelhanças consigo, mas não é um autorretrato

“É uma personagem de ficção, embora algumas pessoas que leram o livro digam que é o meu alter-ego. Não é. Até porque é muito mais alta do que eu!” diz a rir. Emilia “é uma jovem com um espírito de aventura, curiosa, arriscada, valente que começa a vida como jornalista”, talvez por isso, diz Allende, a confundam com ela que também começou como jornalista.

Mas este é um livro onde há outra semelhança entre a autora e a personagem principal. Ambas foram criadas por um padrasto. “Emilia não conhece o seu pai e tem um padrasto maravilhoso. Essa também foi a minha vida. Não conheci o meu pai, mas tive um padrasto. Neste livro, o padrasto da Emilia é uma homenagem ao meu padrasto. O meu também era assim, um grande amigo”, explica.

Diferente era também a condição da mulher na época retratada no livro, o início do século XVIII. Emilia começa a vida profissional aos 17 anos a escrever romances de cordel, mas tem de adoptar um pseudónimo masculino.

Os “romances de cordel eram um género muito popular em 1800. Depois da Guerra Civil nos Estados Unidos, surgiu este novo género que eram histórias de soldados, bandidos e cowboys. Eram lidas pelos homens. Eram livros de 90 páginas, muito simples, mal escritos na sua maioria, mas era preciso perceber que o público era semianalfabeto. Só os homens liam, porque as mulheres não tinham tempo para isso e muitas não sabiam ler”.

Como pano de fundo neste novo livro, Isabel Allende mergulha na história do Chile, o seu país de origem e onde o seu tio, Salvador Allende, foi presidente até ao golpe militar que levou Pinochet ao poder

Mas, em “O Meu Nome é Emilia del Valle”, a autora descreve outra época, outra guerra civil que antecedeu esse período, mas onde encontra semelhanças. “A ideia original foi a de contar a guerra civil de 1891, porque tem paralelos, e semelhanças, com o que aconteceu 80 anos mais tarde com o golpe militar no Chile”, explica a autora.

“Nos dois casos havia um presidente progressista que queria fazer mudanças e que encontrou uma tremenda oposição, intervieram os militares e eventualmente o presidente suicidou-se. São duas figuras muito heroicas da História do Chile. Interessava-me por isso, pelo paralelo. Mas tal como conta Emilia, ela não pode saber o que vai acontecer 80 anos depois. Isso fica nas mãos dos leitores”, conclui.

O feminismo “não é sexy”

Embora esclareça que não faz ativismo enquanto escreve literatura, Isabel Allende detém-se muitas vezes nos seus romances na temática da defesa da condição da mulher.

Questionada sobre que dificuldades persistem, a autora alerta para a necessidade de hoje não baixar a guarda da defesa de valores que antes não existiam para as mulheres.

Antes, refere, “as mulheres estavam muito limitadas”. A sua personagem, a Emilia, “tenta romper barreiras, mas enfrenta grandes limitações”.

“Para as mulheres é muito mais difícil provar o que valem, têm de fazer o dobro do esforço para conseguir metade do respeito e do reconhecimento, como diz a Emilia no livro. Mas a condição da mulher é hoje muito melhor, do que quando comecei”, indica.

No entanto, Isabel Allende considera que “há já duas ou três gerações de mulheres que puderam aproveitar os direitos e as opções que as suas mães e avós conquistaram. O problema é que não sabem, ou não dão conta com que facilidade os podem perder”.

É por isso que a autora que tem uma fundação diz ser necessário às mulheres estarem “vigilantes”. Allende lamenta que muitas “não estão ligadas ou informadas e não querem dizer que são feministas, porque isso não é sexy! Mas aproveitam tudo o que o movimento feminista conquistou para elas”.

Idade para se reformar?

Sobre a escrita a personagem Emilia del Valle diz que é uma arte que a faz “transportar” para qualquer lugar e fazer o que lhe apetece. Estas palavras da personagem poderiam bem ser também as de Isabel Allende sobre o seu ofício.

A autora explica: “Quando escrevo transporto-me para outro universo e durante um ano, ou talvez mais, estou enfiada nesse universo convivendo com as personagens de uma forma tão íntima que às vezes custa-me voltar à realidade doméstica da minha vida diária. Fico desligada porque estou mesmo dentro da história”.

Isabel Allende compara a arte da escrita de um livro com a construção de um puzzle ou mesmo da confeção de um prato de comida. “Uma pessoa pega em todos os ingredientes e inventa um prato na cozinha que é um livro. Também vejo como peças de um puzzle que estão todas espalhadas e que tenho de as juntar sem saber no que vai resultar porque não conheço o desenho”

Neste puzzle literário, Isabel Allende explica que “há um momento em que ganha sentido, tem harmonia”, esse é o ponto em que “o livro está pronto”. Questionada sobre até quando irá escrever, a autora diz que vai depender da memória, essencial à sua escrita.

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