Entrevista Renascença

Gil do Carmo: "O que se está a fazer com Lisboa é criminoso. Estamos a vender uma alma que já não existe"

21 jun, 2025 - 08:44 • Maria João Costa

O músico tem novo disco. Precisou de fugir de Lisboa para encontrar o silêncio para escrever “Mediterrâneo”. Com o pai, Carlos do Carmo, e a avó, Lucília do Carmo, Gil do Carmo aprendeu a importância da palavra cantada e da boa dicção do português que leva para um disco que fala das influências do norte de África.

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Gil do Carmo viveu mais de 30 anos na Madragoa, no coração de Lisboa, mas precisou de “fugir” da cidade para que o seu novo disco nascesse. “Mediterrâneo” acaba de ser lançado. É um disco onde “despiu” a sua música, deixou a guitarra portuguesa de fora e incorporou novas sonoridades.

Foi no Oeste que surgiu a inspiração diz ao Ensaio Geral, da Renascença. À beira do Atlântico quis falar do vento, mas também das influências do Sul. Sobre o mar que dá nome ao álbum, e que o Papa Francisco considerou um “cemitério”, Gil do Carmo alerta que a Europa está a ser negligente na forma como lida com a vaga de migrantes.

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Empenhado em perpetuar o legado dos fadistas da família, o pai Carlos do Carmo e a avó Lucília do Carmo, na arte de “importância da palavra dita e cantada” e “na dicção do português”, diz-se hoje cansado do ruído da cidade.

“Acho que é assustador e criminoso o que se está a fazer com Lisboa”, aponta criticando a falta de “planeamento” e estar-se a “querer vender uma alma de uma Lisboa que já não existe”.


Este disco, Mediterrâneo levou algum tempo de maturação. Como foi esse laboratório de criação musical?

O meu álbum anterior, o “Sê”, foi um processo longo, moroso, com uma pandemia pelo meio, a morte do meu pai, entretanto, foi um disco altamente complexo. Eu não sou uma pessoa nada tecnológica.

E esse desafio da abordagem tecnológica, pegando em toda a discografia da minha avó e homenageando a genial carreira da minha avó, com uma pandemia pelo meio, a morte do meu pai pelo meio, depois deste processo todo, eu perguntei-me realmente o que é que eu tinha de novo para dizer às pessoas.

De que forma é que eu me poderia surpreender? Porque sim, para mim, a música, a arte, faz parte da surpresa. Nunca gravei por gravar, ou seja, quis gravar sempre que tive alguma coisa para dizer às pessoas. E foi um processo.

Como é que foi esse processo?

Eu precisei de sair de Lisboa, procurar o silêncio, procurar o meu espaço fora de Lisboa, para que me pudesse perguntar, em silêncio, que é algo que com a idade cada vez achamos mais importante.

É cada vez mais difícil estar em silêncio, porque há ruído em todo o lado. E falo da minha queridíssima e amada cidade de Lisboa, onde vivi praticamente 51 anos. E foi preciso sair de Lisboa para isso acontecer. Mas nada foi muito planeado, nem muito pensado.

Quando é que deixou Lisboa?

No verão de 2023, que foi um verão muito quente, fui parar ao Oeste, a 10 quilómetros da terra da minha mãe, que se chama Sobral de Monte Agraço, onde a minha companheira tem uma casa.

Depois do que se passou com o Sobral de Monte Agraço que era uma terra com muita graça e tornou-se um dormitório, perdendo um certo encanto e uma certa imagem que tinha de infância, eu fui-me desligando um pouco do Oeste

Vim parar a Carreiras, que é a 10 quilómetros de Torres Vedras. E foi literalmente entre vinhas e no silêncio da saída da cidade que percebi: “Andas quase há 30 anos a falar do Atlântico, de onde aportámos e fomos aportados, da importância do Atlântico no Brasil, em África na tua música e essa miscigenação toda e o Mediterrâneo?”

O Mediterrâneo, a influência árabe em Portugal, vai para além de 600 anos. Tem uma influência enorme na nossa cultura. O sermos do Sul. A forma de estar. E essa foi a primeira imagem que me veio à cabeça.

Este “Mediterrâneo” é, precisamente, um Mediterrâneo com cheiro a Oeste. Porque precisei de quase zangar-me com Lisboa, com a minha cidade.

Acho que é assustador e criminoso — eu sei o que estou a dizer — o que se está a fazer com Lisboa.

Eu não cuspo no prato em que como, ou seja, eu tenho plena noção de que foi fundamental percebermos que era pelo turismo que poderíamos dar uma voz diferente a Lisboa.

Mas não há planeamento e o que se está a fazer com Lisboa é criminoso, porque a alma que Lisboa tinha, do minhoto que tinha vindo viver para Lisboa, que tinha o tasco na Madragoa, onde eu vivia, foi-se embora.

As pessoas estão todas a ir-se embora de Lisboa e estamos a querer vender uma alma de uma Lisboa que já não existe. Não se consegue ter silêncio.

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Eu vivi praticamente 30 anos na Madragoa e quis fugir! De repente a minha companheira e eu olhámos um para o outro e perguntamo-nos ‘o que é que estamos aqui a fazer? Vamos fugir’. E literalmente fugimos e foi a melhor coisa que fizemos.

Foi nesse silêncio que desenvolveu este disco. O que quer dizer com este álbum?

Depois da complexidade do anterior disco, que tinha milhares de instrumentos em que toquei percussão, cantei, produzi tudo e convidei muitos instrumentistas, sentia que precisava de despir a minha música. Precisava de a secar.

Procurei esse silêncio, o tempo, o espaço e os elementos fundamentais da vida como o cheiro do Oeste, da terra, de olhar livremente para as estrelas, ouvir a água, ouvir os passarinhos, os animais, andar entre vinhas.

Sentir esse contacto direto com a terra, fez com que naturalmente eu fosse encontrando uma matriz e uma forma de querer transmitir o que é este “Mediterrâneo”.

Como é que foi esse “despir” da música?

Foi uma decisão dura, porque nos meus últimos discos houve sempre a influência da guitarra portuguesa. Senti que neste disco não faria sentido ter a guitarra portuguesa e que a guitarra acústica do Tiago Santos, que toca comigo há 20 anos, e é o meu braço direito, faria todo o sentido em tomar esse papel.

Depois o Vicky Marques toca bateria e percussões. São dois músicos que tocam comigo há 20 anos e eu senti que também tinha de mudar. Queria ir buscar dois novos músicos que nunca tivessem tocado comigo. Era um risco que iria correr, mas sabia que era por aí que tinha que ser.

Fui buscar o Daniel Bernardes, que é um brilhante pianista, que toca piano e Fender Rhodes no disco. E o Rodrigo Correia, que é um multi-instrumentista, que toca com imensa gente e é um brilhante contrabaixista.

E o que quis dizer?

Fui percebendo que era por aí. Secando, com as palavras e os poemas e tudo o que eu queria dizer sobre ser do Sul, do Mediterrâneo.

Estamos a ser negligentes com a forma que estamos a ser europeus, a chegada dos barcos e dos refugiados.

O que é isso de ser refugiado? Não há refugiados! Somos de lugares diferentes. A forma como os europeus descartam a importância da chegada dessas pessoas que vêm do Norte de África e que vêm do Mediterrâneo, e a importância que tem essa cultura, e a forma como essas pessoas estão a chegar é reflexo de um passado. Temos grande responsabilidade nisso.

A música tem uma obrigação de passar essa mensagem?

É aquela questão, a cantiga é uma arma ou não é uma arma? Eu acho que é muito mais que isso. Claro que é, porque nós somos seres políticos, direta ou indiretamente, nas nossas mensagens.

Se eu tenho uma opinião e escrevo um poema e faço uma música, estou a transmitir aquilo que quero dizer. Nas palavras, obrigatoriamente tenho uma mensagem política. Claro que sim.

Falou do seu pai, Carlos do Carmo e da sua avó Lucília do Carmo. Foram dois fadistas de renome e de referência. Como é que perpetua esse legado vivo na sua voz?

Na importância da palavra dita e cantada, na dicção do português. De forma que se percebam todas as sílabas cantadas. Acho que é um ensinamento, porque isso já vem da minha avó.

O meu avô era um livreiro e a minha avó veio de Portalegre muito nova, e quando chega a Lisboa conhece o velho Almeida — que eu não tive o privilégio de conhecer - o meu avô, que lhe ensinou a dicção e a forma de dizer as palavras.

Naturalmente para o meu pai, esse poder da palavra era uma das grandes armas da genialidade, da forma interpretativa como cantava.
Pondo-me no meu lugar, quem sou eu para falar destes dois gigantes? Mas creio que estou quase lá, aos 51. Estou a conseguir, de uma forma sucinta, que as pessoas percebam todas as palavras e transmitir a intenção de cada palavra e a forma como musicalmente quero chegar a cada verso.

Comentários
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  • Maria
    21 jun, 2025 Palmela 09:20
    Criminoso! Concordo!

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