10 out, 2025 - 22:06 • Maria João Costa
Assume que não tem pressa para escrever o próximo livro. Está mais focado em viver a vida. João de Melo está a completar 50 anos de carreira literária. O autor do eterno “Gente Feliz com Lágrimas” (ed. D. Quixote), sobre a Guerra Colonial, é categórico: “A descolonização foi uma tragédia”.
Em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença, o autor nascido na ilha de São Miguel, nos Açores, há 76 anos, lamenta que não haja “maneira de libertar os açorianos do rastro de pobreza que parece ser o seu destino”.
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O autor, que está a lançar o livro de contos “A Nuvem no Olhar” e um diário “Novas Fases da Lua”, fala do trabalho da escrita que, por vezes, é “penoso”, os seus temas habituais e admite que lhe falta escrever um livro sobre Lisboa, a cidade que o acolheu.
Nestes 50 anos de carreira, a sua escrita navegou entre o romance, a poesia e o conto. Agora, revela-nos estes diários no livro “Novas Fases da Lua” (ed. D.Quixote). Escreve diários desde 1993, embora neste livro apenas estejam o período entre 2017 e 2024. O que estes diários dizem sobre si?
Julgo que atestam a minha condição de cidadão, que não se circunscreve à de ficcionista. O escritor não é só a ficção. É o mundo. E o diário é a voz que nós podemos usar para estar ao mesmo tempo em Lisboa e em todo o mundo. É um escrito de comoção, de crítica, de observação, de testemunho, etc.
Tem no livro entradas que têm oito anos, por exemplo, em que fala de Médio Oriente ou dos incêndios em Portugal. Poderiam ser entradas escritas em 2025?
Podiam, porque têm, infelizmente, essa repercussão e repetem-se por esse mundo fora. Mas, repare-me, eu comovo-me imenso ao ver uma avalanche, por exemplo, no Nepal, que mata mil e tal pessoas. Eu tenho que dar testemunho disso na minha intimidade.
É como diz no diário, escrever é a sua “tribuna”?
De alguma forma. Eu tenho este diário desde 1997, mas está em casa. E a ideia era mantê-lo como estava.
Secreto?
Sim, porque, de alguma forma, ele para mim ajustava-se à sua função ao ser escrito. Ficava em repouso. Por vezes até era um auxiliar das outras coisas que eu escrevia. Porque, além de estar a notícia, há o sentimento com que foi escrito aquele fragmento.
Expõe-se mais ao escrever este diário do que quando escreve, por exemplo, um romance?
Penso que me exponho sempre. Acho que não tenho prioridades, nem reservas nenhumas.
Há quem diga, não sei se concordo, que alguma da minha ficção é bastante autobiográfica, e outra não.
O diário, por natureza, opção, e sobretudo por substância, é o nosso dia-a-dia. É o nosso modo de ver as coisas que se passam ao nosso redor, para que a nossa casa também não seja, digamos, um confinamento, onde o escritor está calado à procura de inspiração para escrever contos ou romances.
Escreve no diário: “Sou lento e esforçado na escrita, depois fico à escuta das palavras”. Pergunto-lhe se a escrita é, antes de mais, esse lugar de espera e escuta?
Às vezes, tenho ideias boas para contos ou para romances e estou a trabalhá-las na minha cabeça. Ainda não sei muito bem o caminho que vão percorrer, mas há uma coisa que eu priorizo. É sempre o problema da linguagem.
A linguagem que eu vou usar no livro A ou no livro B. Se bem se vir nos 30 e tal livros que publiquei até à data, eles têm uma matriz que é a minha. Há quem diga que a minha prosa é um bocado a tender para o poético, sem se deter na poesia.
No fundo, isto não tem explicação. Sai, porque nós vamos à procura da melhor maneira de exprimir aquilo que temos para dizer. Se descrever uma cena social, ou uma cena amorosa, a linguagem é uma, mas se descrever um acidente, uma tragédia, etc., a linguagem é outra. O diário tem, penso eu, uma linguagem unificadora.
Ao falar da sua escrita descreve “o som de uma ideia ao cair sobre a página ilumina a ideia seguinte”. É assim que constrói o texto?
Muitas vezes a escrita surpreende-me, porque dá-me a chave ou a porta para a página seguinte. E isso é muito grato para quem anda à procura, porque a escrita é também uma busca interior muito grande.
É muito trabalhosa, por vezes até penosa. E, portanto, é bom que a escrita se encadeie num ritmo, numa melodia, numa velocidade também muito própria e que esteja adequada àquilo que nós estamos a narrar.
E nunca teve o drama da página em branco?
Também tive, sim, claro! Quem é que não a tem, não é? Por isso é que eu invejo aqueles escritores, sobretudo os que vieram do jornalismo.
Já vêm com treino?
Escrevem com uma facilidade invejável. Eu invejo-os! Mas eu não tenho de que me queixar de dificuldades, nem de muros. Eu tenho aquilo que eu sou capaz de fazer. Não corro para nada, não vou para o lado de nenhum, que não seja por vontade própria.
Mas quando acabo um livro, estou no melhor dos mundos, porque fui capaz e ponho um ponto final. Estou em condições de dar aos leitores.
Partilha também neste diário o momento da nascença de um livro. Escreve a certa altura, e julgo que seja a propósito do “Livro das Vozes e Sombras”, “Surgiu-me do nada a ideia para a estrutura do romance”. É assim? De repente, surge essa ideia da estrutura do romance?
Esse meu romance, o “Livro das Vozes e Sombras” esteve comigo durante mais de uma década, porque queria tratar um problema que era um bocado tabu, sobretudo nos Açores.
A minha ideia era desmontar a narrativa que foi feita por um movimento chamado FLA - Frente de Libertação dos Açores - que tendia para a independência dos Açores, e que nada mais foi, no meu entender, do que uma trave que se opunha ao processo revolucionário de Lisboa.
Havia a instabilidade açoriana que condicionava, de alguma forma, o que se passava cá. O significado dessa narrativa era de alguém de um território, neste caso, insular, que queria a independência. Queria sair de Portugal. E o oposto total era, digamos, a narrativa daqueles que vieram da África contra a vontade, porque houve a independência desses países.
E isto para encaixar e para ter alguma solidez interior é um bocado complicado, mas acabei-o. Deu-me uma surpresa imensa ter-me ocorrido a maneira como eu encerro o livro. E, em última análise, isto não se explica porque vive-se.
O leitor não tem culpa nenhuma destas coisas, não é chamado para isto. Só tem é que ler, gostar ou não gostar, e dizer.Mas esse livro tocou bastante fundo no meu itinerário.
Abrimos outro livro que está também a lançar. “A Nuvem no Olhar” (ed. D. Quixote). É um conjunto de contos, alguns dos quais foi revisitá-los e reescrevê-los para os publicar. Podemos dizer no livro estão aqueles temas que marcaram também os 50 anos de carreira literária? Está África, a Guerra Colonial, estão os Açores e Lisboa. No fundo, estes contos são também fruto dessa expressão que é a sua da carreira?
Naturalmente. Fui resgatá-los a dois livros anteriores, apesar de haver mais dois que são inéditos que quis incluir.
Foi quase sem querer que eu pus dois dos contos a falar da Guerra Colonial, um do regresso de um batalhão por barco a Lisboa. É o conto mais novo e mais longo. É quase uma novela. Depois, no outro, há uma pequena deriva lá para o meio que leva a guerra à narrativa, noutro sentido.
Este livro, de alguma forma, consubstancia os caminhos ínvios, ou não, que eu tenho percorrido ao longo de toda a minha escrita. Portanto, a ideia foi não apenas resgatá-los de dois livros que estavam mais ou menos esquecidos, como reescrevê-los e atualizá-los. Não estou nada arrependido. Agora sim, creio que estão definitivos.
O João de Melo foi um dos 800 mil portugueses que foram mobilizados para a Guerra Colonial, viu certamente o pior da condição humana, viveu também num país em ditadura. Sente que o escritor tem essa obrigação/missão de dar testemunho? De resgatar a memória para que ela não seja perdida?
Em absoluto! Eu concebo o meu papel na literatura exatamente dentro dessa dinâmica. Eu pertenço àquela geração que tem memória de tudo o que viveu. O antes do 25 de Abril e a ditadura, o Salazarismo, o país obscuro e muito pobre, de costas voltadas para a Europa.
Foi esse país que depois concebeu a ideia de manter um império africano e também asiático. Isso foi a experiência que vivemos todos.
Eu particularmente, porque estava a estudar. Era interno no seminário dos dominicanos em Aldeia Nova, no Olival, e a Guerra Colonial em Angola foi no dia 4 de fevereiro de 1961 - o dia dos meus anos. Eu disse logo: “Isto é comigo!”
E depois fui para lá. Quando chego a Angola e vou para o Norte, estou num mundo que, de alguma forma, tinha antecipado.
Serviu como enfermeiro?
Como furriel enfermeiro. Com a particularidade de estar numa povoação onde tinha a meu cargo não apenas os 150 soldados portugueses, como duas pequenas sanzalas, o mais dispares possíveis.
De um lado, uma pequena sanzala formada por gente que estava ali num pequeno campo de concentração, acusada de ter tido relações com o inimigo ou de ter familiares no inimigo. E, do outro lado, exatamente o oposto.
Uma pequena sanzala daqueles que tinham desertado dos movimentos de libertação para vir combater ao nosso lado. E isto, digamos, para um furriel-enfermeiro, não é abstrato, é concreto.
Serviu aos dois lados da barricada?
Sempre, os dois lados. E depois tinha tanta coisa para dizer sobre esse período, tanto sofrimento que vivi, tanta dor, tanto sangue, tanta ferida, tanta perdição que era impossível conter isto.
Daí ter-me dedicado bastante ao tema da guerra. Por um lado, através daquela antologia chamada “Os Anos da Guerra” - o primeiro grande trabalho sobre a guerra, visto pelo lado de cá e do lado de lá. Guerra versus lutas de libertação.
Depois, na minha ficção, o romance “Autópsia do Mar de Ruínas” - que é dos meus preferidos - foi o romance da grande catarse que foi necessário fazer.
Sente que Portugal saiu bem das antigas colónias? Ainda há contas a fazer?
Tudo é polémico, tudo é passivo de diversas análises.
As coisas não correram bem, a descolonização foi uma tragédia. Isto tem que se dizer, foi uma tragédia!
Mas os verdadeiros culpados dessa tragédia nem sequer foram os que fizeram o 25 de Abril, nem os que estavam em África a tratar da sua vida e que se viram obrigados a vir para fora.
A tragédia maior esteve sempre no regime anterior, que mandou avançar para Angola, imediatamente e em força. E que concebeu a ideia louca de um país tão pequeno e pobre manter um império não sei quantas vezes maior que o próprio país. Era insustentável!
Os movimentos de libertação propuseram diálogo a Salazar, antes de entrarem na luta. E Salazar sacudiu-os, nem os quis ouvir. Pena não os ter ouvido e não ter colaborado numa solução negociada.
Tinha sido até, digamos, exemplar para o mundo. Ver que a grande potência dava o poder condicionado e formava sociedades mistas. A história poderia ter sido outra, muito diferente.
Fala também nestes diários, por exemplo, de racismo. Hoje vivemos tempos de muita intolerância. O João de Melo já teve funções diplomáticas, nomeadamente em Madrid. A leitura ajuda a colocar-nos no lugar do outro. Pode ajudar nesse caminho contra as intolerâncias?
A leitura é, digamos, uma luz que nos pode iluminar acerca do que vai por aí. Mas às vezes, percebemos que há cada vez menos leitores. Ainda estamos muito abaixo daquilo que deveriam ser os níveis de leitura.
Vamos deixar passar esta onda de Inteligências Artificiais, dos aparelhos tentadores, de tudo isso que está a envenenar um bocado a nossa juventude. Mas não esqueçamos que nós também somos exemplo. Nós também levamos muito tempo com os aparelhos nas mãos.
Eu vou no metro e sou a única pessoa que vai ler um livro! Aquele metro todo está curvado sobre o telemóvel. Eles não têm onde se mirar, a não ser nestes exemplos.
Por outro lado, existe um oportunismo muito grande dessas organizações de fomentar a curiosidade dos jovens, levando-os para onde querem e para onde não querem.
Agora, isto daqui a 10 anos já será rotineiro. Já podemos pensar no regresso desses não leitores à literatura, à medida também que eles se tornarem mais adultos.
Mas não há o risco de a Inteligência Artificial vir a substituir, por exemplo, um escritor como o João de Melo?
Exatamente. Mas também as pessoas esperam que haja sempre por onde pegar para desmascarar essa Inteligência Artificial.
Há sempre algo que nós não dizemos, que não fazemos e que a Inteligência Artificial acha muito bem pôr. Eu lembro-me que há dias estava a ver o Ricardo Araújo Pereira e ele aparece no meu computador, a vender não sei o quê.
Imitavam a voz, mas davam erros de português inúmeros que ele não dá. Por esses motivos, nós podemos facilmente apanhar, porque a competência linguística também fica muito a dever na utilização desses meios.
Os seus Açores que o viram nascer estão sempre presentes na sua alma e na sua escrita. Vemos hoje os Açores a ganharem de novo centralismo do ponto de vista de Defesa, por causa da Base das Lajes, e do quadro internacional que vivemos. Vemos também uns Açores com mais turismo, mas com alguma pobreza na mesma. Como é que se quebra este ciclo de pobreza nos Açores?
Eu estive lá, em agosto, durante dez dias de férias com a família e jurei para nunca mais! É tal o amontoado de turistas estrangeiros que ocupam tudo, os restaurantes, os cafés, estão sempre na frente. Nós temos que ir para trás, esperar uma hora para ganhar vez.
Os itinerários turísticos estão todos tomados, o Governo [Regional] até já foi obrigado a não deixar viaturas subir às lagoas, porque o percurso era inacessível a tanta gente. Então pôs autocarros a levar as pessoas, que deixam os carros cá em baixo, para poderem visitar a Lagoa do Fogo.
Há uma espécie de deslumbramento por parte, sobretudo, do setor alimentar, que está a ganhar muito dinheiro e que não cuida das coisas como antigamente cuidava. Daí que nós tínhamos que nos defender também disso.
Portanto, aos Açores, aconselho-lhe mais a ir em Setembro, que já está menos dramatizado, para se poder fruir das belezas impar e do povo açoriano, que tem efetivamente um temperamento e uma maneira de receber muito próprias.
A sua condição social, desse povo açoriano, é, por norma, sempre inferior à do continente. Eu lembro-me, quando vim para cá com 10 anos, que vinha da aldeia mais remota do concelho do nordeste para a grande cidade que era Lisboa. Eu vi que a pobreza açoriana era infinitamente mais pobre do que a de cá.
O movimento emigratório de fuga dos açorianos para o Canadá e para a América e aqui a salto para França, Alemanha e Suíça fazia-se em catadupa. Mas eu não via gente descalça e a comida era substancialmente melhor do que nos Açores.
O que nós tínhamos nos Açores era aquilo que a terra dava, e o leite das vacas que já abundavam por toda a paisagem micaelense, por exemplo.
Não sei qual é a maneira que há de libertar os açorianos daquele rastro de pobreza que parece ser o seu destino.
Suponho que o continente tem uma grande dívida de gratidão para com os Açores e que podia, efetivamente, ter uma política muito mais próxima e mais libertadora para o povo açoriano que é, de todos, o mais pobre da Portugalidade hoje em dia.
Terminou o ano de 2024 a manifestar o desejo de regressar à ficção, ao trabalho “inventivo da narrativa”. Estas palavras são suas, estão no diário. Pergunto se já inventou o próximo livro?
Não, não. Esse, digamos, é o meu drama.
Estou à procura de sinais, à procura de mim próprio. Mas acho que devo um romance a Lisboa, a cidade que me acolheu, a cidade da minha vida.
É para aí que eu tendo. Agora, não tenho pressa. Já tenho 35 livros publicados. Não é necessário ir a correr e publicar mais.
Pela primeira vez, estou tranquilo e estou entregue à vida, porque a idade vai avançando. Isto já não é o que era. Se alguma coisa tem que ser salva, é efetivamente o ato de viver e é nesse que eu estou.
Quando surgir o ato de escrever, ele virá naturalmente e eu, obviamente, que ficarei de novo muito feliz e muito empenhado.