31 out, 2025 - 09:30
Sentados no meio da praça de Medellin, na Colômbia, de olhos postos na realidade cheia de contrastes do seu país, o escritor Héctor Abad Faciolince fala à Renascença sobre um livro que lhe “custou muito a escrever”.
“A Nossa Hora” (ed. Alfaguara) é a obra que sentiu a “responsabilidade e obrigação” de escrever, depois de ter sobrevivido, com alguns ferimentos, a um ataque de um míssil russo que caiu no restaurante onde jantava com um grupo de amigos, na Ucrânia.
Nesse ataque que classifica como “crime de guerra atroz e horrível de Putin”, Faciolince perdeu uma amiga, a escritora e ativista ucraniana Victoria Amelina. Ela morreu no lugar onde o escritor colombiano se tinha primeiro sentado à mesa. Por não ouvir bem de um dos lados, decidiram trocar de lugar e Amelina ficou com a cadeira fatídica.
"A minha primeira tentação foi ficar calado. Eu sou especialista em ‘esquecimento’, e queria esquecer! Mas ao mesmo tempo, senti uma obrigação de deixar um testemunho"
O autor do famoso “Somos o Esquecimento que Seremos” (Ed Alfaguara) quis “dar voz” a Vitoria Amelina, “agora que ela já não tinha voz” e conta neste livro que chega agora às livrarias portuguesas, com tradução de Margarida Amado Costa, a sua “experiência de uma breve viagem à Ucrânia”.
“A minha primeira tentação foi ficar calado. Eu sou especialista em ‘esquecimento’, e queria esquecer! Mas ao mesmo tempo, senti uma obrigação de deixar um testemunho, sobretudo pela minha colega ucraniana, a Vitoria Amelina que morreu à minha frente num lugar próximo de uma frente de guerra, mas num espaço civil, num restaurante”.
O escritor que integrou o movimento civil “Aguanta Ucrânia” contra a guerra conta ao Ensaio Geral, da Renascença que foi à Ucrânia, porque um dos seus livros tinha ganho um prémio e foi participar na Feira do Livro de Kiev.
“Alguns anos antes, duas jovens editoras ucranianas traduziram o meu livro ‘Somos o Esquecimento que Seremos’ para ucraniano. Não houve lançamento, primeiro por causa da pandemia, depois por causa da invasão russa. Mas quando voltaram finalmente a fazer uma Feira do Livro de Kiev, elas convidaram-me”, explica o autor.
Faciolince confessa que hesitou em viajar para a Ucrânia. “Eu tive muito medo em ir à Ucrânia, mas resolvi ir porque elas não tinham medo de estar ali a viver e eu senti-me muito mal ao dizer-lhes que não era capaz. Então renunciei à minha cobardia e fui à Feira do Livro de Kiev para a apresentação do livro”.
Foi nessa ocasião, como explica em “A Nossa Hora” que conheceu Victoria Amelina. “Ela estava a apresentar um livro de um poeta ucraniano que foi sequestrado, torturado e assassinado pelos russos. Ele tinha deixado uns diários, escondidos, enterrados debaixo de uma árvore e ela própria com uma pá tinha-os resgatado”.
O escritor colombiano lamenta: “Ela já tinha dado voz a este poeta quando ele não podia aparecer em público, e eu nunca pensei que algum dia teria de ser eu a falar em nome dela quando ela já não pudesse falar”.
Esta viagem à Ucrânia alterou a forma de Faciolince ver o mundo atual. Marcou-se de tal como forma que foi com a sua arma, a da escrita que quis eternizar esse momento. Mas há outros conflitos no mundo que o incomodam e que ele compara com o que viu na Ucrânia.
“Enquanto escrevia este livro da Ucrânia, ao mesmo tempo escrevia um pequeno romance sobre um velho que tenta contrabandear comida para Gaza. Estas duas guerras que me afetam e me ofendem pessoalmente, são duas guerras que falam muito do nosso tempo, no qual os homens fortes, com um exército potente e os países mais fortes acham que podem fazer o que lhes dá na gana”, critica.
Diz que se fosse músico escreveria uma peça, se fosse jornalista faria uma reportagem, se fosse médico iria tratar dos feridos quer da Ucrânia, quer de Gaza. Mas a palavra é a sua forma de trabalho.
“Eu escrevo, sou cúmplice deste mundo e da história que me tocou viver e quando essa história me toca pessoalmente, como me aconteceu na Ucrânia, posso colocá-lo num livro. Nós os escritores escrevemos com a experiência, a memória e a imaginação. Como escritor posso escrever sobre coisas muito íntimas, um poema de amor, mas também posso escrever sobre como me fazem sofrer as guerras de hoje”, aponta.
Perante pedintes, sentado numa praça de Medellin, perguntamos-lhe pelo seu país, pela Colômbia de hoje. Héctor Abad Faciolince vê um país com discrepâncias grandes. “É um país que está num equilíbrio entre progredir e avançar ou cair no desespero, na violência e na guerra. Nunca sabemos qual das duas forças vai ganhar”, desabafa.
Contudo, o escritor manifesta alguma esperança. “Creio que muito de nós lutam com a cultura, a escrita, com o que seja, para que esse equilíbrio se incline para o futuro, para o otimismo, para uma sociedade mais justa, menos violenta, onde todos possamos desenvolver os nossos grandes ou pequenos talentos em liberdade”.