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VIDAS INVISÍVEIS

Pediatra Mário Cordeiro: "Ser abandonado é o principal medo das crianças"

02 abr, 2025 - 06:05 • Ângela Roque

É possível retirar um filho aos pais sem ser traumático? Qual é o impacto na saúde e até no desenvolvimento cognitivo? Mário Cordeiro, pediatra e presidente da Associação para a Promoção da Segurança Infantil, fala das marcas que estes processos deixam. Considera que na adoção a rejeição, às vezes múltipla, “devia ser crime”, porque “é devastadora” para as crianças. E que o abuso sexual é a agressão ”mais brutal”, de que dificilmente se recupera.

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Pediatra Mário Cordeiro: "Ser abandonado é o principal medo das crianças"
Ouça o podcast "Vidas Invisíveis", com o pediatra Mário Cordeiro

O abandono por parte dos adultos é o maior medo das crianças até aos dois anos de idade. Apesar de até aos três anos as memórias serem guardadas numa espécie de “caixa forte”, há sempre marcas que ficam de se ser retirado aos pais e colocado numa casa ou família de acolhimento, diz o pediatra Mário Cordeiro em entrevista ao podcast da Renascença "Vidas Invisíveis".

“O medo do abandono, por parte dos pais e dos adultos, em geral, é o maior e principal medo das crianças, a partir sobretudo do ano e meio, dois anos”. Até essa idade, explica, a criança “está totalmente dependente” e começa a perceber que não sobrevive se não for protegida.

“Não nos lembramos disso, factualmente, mas a partir do ano e meio nós temos a consciência da finitude da vida, e ficamos assustados, percebemos que este mundo é fantástico, é infinito, é maravilhoso, é a altura em que o bebé ‘quer ir a todas’, mexer em tudo, ver tudo, mas de repente começa a sentir que ‘isto é muito grande, se calhar tem perigos’, e sente-se frágil. Aos 18 meses. As crianças sabem que se forem abandonadas pelos pais morrem”, conta Mário Cordeiro.

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Os primeiros anos de vida são, neste sentido, sempre “trágicos”, por isso uma separação forçada “é sempre traumática”. Para o médico, “estar a substituir constantemente” as figuras de pai e mãe “não é bom”. Defende, por isso, que as famílias de acolhimento possam adotar (a lei foi aprovada por unanimidade no Parlamento, a 14 de março, já depois da gravação desta entrevista), e que se aposte mais “na família alargada, nos avós, tios, que podem ser um bom suporte, fazer parte da vida da criança”.

No geral, diz Mário Cordeiro, a sociedade tem sabido encontrar respostas, e Portugal “pode gabar-se de uma evolução, desde os anos 90 do século XX”. O pediatra considera positivo que hoje se privilegiem instituições de acolhimento mais pequenas e familiares, para que sejam “casa”, permitindo às crianças rotinas muito próximas das de uma família. Mas lembra que, nestes processos, as crianças sentem-se sempre culpadas, e que em adultos tenderão a repetir os maus tratos que possam ter recebido na infância. A não ser que lhes ensinem que não há só um modelo de ser pai ou mãe.

“Quando eu for pai, eu não vou buscar a minuta de ser pai à gaveta dos filhos, vou buscar à gaveta dos pais, e se lá só tiver uma minuta, ‘ser pai é fazer isto e aquilo, uma série de malfeitorias’, vou fazer isso aos meus filhos. Isto explica porque é que os maus tratos, muitas vezes, se sucedem em cadeia. São uma réplica. Daí a necessidade de as casas de acolhimento - e as famílias de acolhimento, a sociedade em geral, os programas, os filmes, tudo - mostrarem que há muitas minutas, ou formas, de ser pai”, afirma.

As marcas e traumas que ficam destes processos de retirada das famílias comprometem não só a estabilidade emocional das crianças e jovens, mas também o seu desenvolvimento cognitivo. “A violência psicológica origina não apenas sofrimento psicológico, mas lesões cerebrais, ou pelo menos um não desenvolvimento cerebral tão interconectado, que permita depois funcionar, raciocinar e até reagir em situações de stress, muito menos nas crianças que são maltratadas psicologicamente”.

Entre os maus tratos mais traumatizantes, o médico e presidente da Associação para a Segurança Infantil destaca o abuso sexual. “É uma violência física, psicológica, é um terror! É talvez a violência mais brutal que existe, porque se é muito mau dar uma bofetada (bater), a violência sexual vai ao âmago da pessoa, é violentar até não haver mais nada para violentar, é despedaçar a pessoa! Daí a recuperação ser muito, muito, muito difícil”, sublinha.

Mário Cordeiro lamenta que os processos de adoção sejam demasiado lentos, e defende que a rejeição - às vezes múltipla – de crianças adotadas devia ser crime, porque é uma atitude devastadora. “A rejeição múltipla é, no fundo, estar a dizer constantemente: ‘tu não prestas, tu és mau, tu não serves para nada’’. E, no momento em que uma criança é rejeitada dessa forma cruel, má, vil, sente-se completamente zero”.

“Eu digo-lhe uma coisa: o abandono de uma criança, adotada ou não adotada, deve ser crime! Isto é aviltante, não apenas para a criança em causa, que fica completamente despedaçada, como para a humanidade”.

A sua experiência tem-lhe mostrado que se exige muito aos pais que ficam sem os filhos, mas que há inúmeros “motivos circunstanciais” que podem alterar a vida das famílias, que devem ser ajudadas. Mesmo quem erra tem direito a reconstruir a vida, e errar não impede de se ser bom pai e mãe. “Fui médico na prisão de Tires, todas as semanas ia ver os bebés até aos três anos de idade, e aquelas mulheres eram mães exemplares, fantásticas, preocupadas e com um carinho enorme para os seus filhos”, conta.

“Às vezes, temos de ser mais humildes a julgar os outros, e mais exigentes em relação àqueles que podem fazer alguma coisa por isso”, sublinha Mário Cordeiro.

Vidas Invisíveis é um podcast Renascença em parceria com a associação CANDEIA, com novos episódios todas as quartas-feiras.

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