23 abr, 2025 - 06:30 • Ângela Roque
Cada vida é uma história, mas há marcas, urgências, necessidades comuns entre quem cresceu em situação de acolhimento, seja numa instituição, seja numa família que não era a sua. Segundo o relatório Casa, que faz a análise anual do acolhimento em Portugal, em 2023 havia 6.183 crianças e jovens institucionalizados e 263 acolhidos em famílias. No último episódio desta temporada do podcast Vidas Invisíveis olhamos para a saída do acolhimento e os desafios e oportunidades de recomeçar na vida adulta.
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João Pedro Gaspar é doutorado em Psicologia da Educação. Professor e investigador do Instituto de Psicologia Cognitiva e Desenvolvimento Humano e Social da Universidade de Coimbra, é o mentor e coordenador da PAJE, a Plataforma de Apoio a Jovens (Ex) Acolhidos, criada para promover a inclusão social e laboral de jovens adultos que viveram em acolhimento. Com a ajuda de uma equipa multidisciplinar, a PAJE assegura-lhes também apoio psicológico, jurídico e de aconselhamento/counselling. Mas, uma das prioridades é mesmo o acompanhamento psicológico - ou psiquiátrico, quando necessitem -, porque a saúde mental destes jovens não pode ser descurada.
"Por vezes, perguntam-me qual é a taxa de sucesso, e eu tenho sempre dificuldade em definir sucesso. Costumo dizer na brincadeira, mais ou menos a sério, que para alguns jovens ‘sucesso’ é eles chegarem ao final do dia vivos, tal é o risco que correm e tal é a intenção suicida que têm. Chegamos a ter situações muito sérias, muito sérias mesmo, e infelizmente algumas consumadas", revela.
Um dos problemas é que a saúde mental continua a ser um estigma, mesmo entre os próprios jovens. “Muitos deixam de ter acompanhamento psicológico, pedopsiquiátrico ou psiquiátrico, o quer que seja, e comprometem muito aquilo que é a saúde mental. Porque não é uma prioridade, e continua a ser um estigma o tomar medicação. Há muitos jovens que não aceitam isso, mas que precisam desse acompanhamento e dessas terapias".
Essa recusa condiciona, muitas vezes, a vida futura dos jovens, porque a saúde mental "é a base para o bem estar, para o alojamento, para a habitação. É a base para um emprego com dignidade. Muitas vezes conseguimos oportunidades para alguns jovens, mas porque a questão da saúde mental não está organizada, acaba por ser uma oportunidade perdida", conta.
Outro problema é que, mesmo com a ajuda assegurada pela PAJE, faltam médicos especialistas em muitos locais. "Há distritos inteiros que não têm pedopsiquiatras. Mesmo a pagar, e bastante, não há!”. Considera, por isso, urgente o Estado assegurar apoio às consultas. “É imprescindível que eles tenham um cheque para a saúde mental, como há o cheque dentista”.
O sistema de acolhimento em Portugal é amplo e variado. "Em 200 e tantas casas de acolhimento, temos muito boas, temos boas e temos sofríveis, diz João Pedro Gaspar, que considera também fundamental os jovens serem preparados para a autonomia, até porque há muitos riscos que se correm nesta fase.
"Um jovem que queira sair aos 18 anos pode fazê-lo. E, por vezes, os 18 anos são um perigo", alerta.
Muitos vivem em acolhimento até à idade adulta, mas nem todos aprendem a viver sozinhos. Essa é uma responsabilidade de quem os acolhe, sejam instituições ou famílias. “Se eu não sou treinado para o que quer que seja, seja a condução, seja o que for, eu nunca vou adquirindo essas habilidades. Então, estes jovens que estão numa fase determinante da vida, porque daqui a um, dois anos vão ter oportunidade de viver sozinhos, completamente autónomos, precisam mesmo de ser treinados para a decisão e de falhar, mas de falhar com retaguarda".
Os perigos nesta fase são vários, e não é incomum caírem na delinquência e terem problemas com a justiça. Como responsável da PAJE acompanha alguns em estabelecimentos prisionais. “Infelizmente costumo dizer, porque é verdade, que tenho mais cartões de visitante de prisões do que multibancos. Inclusive, chego a ter dois cartões da mesma prisão, um para cada recluso. Porque temos muitos jovens ex-acolhidos que acabam por ter problemas com a justiça, mais sérios ou menos sérios. Do Linhó a Paços de Ferreira, da Carregueira a Castelo Branco, de Coimbra a Leiria, vários estabelecimentos prisionais acabam por ter jovens que passaram por casos de acolhimento".
Para muitos jovens, deixar o acolhimento significa ficar sem teto para viver, e acabam a dormir na rua. “Temos algumas situações de jovens que estiveram como sem-abrigo durante muito tempo, de jovens que se dedicaram a situações menos lícitas”. Ter apoio fora das instituições seria o ideal, “alguém que lhes possa servir de retaguarda, mesmo que eles falhem. Porque a questão prende-se muito com isto, o poderem falhar, mas terem uma retaguarda, e não o falharem, e se falharem é o zero de novo. Eles estão habituados a isso, que quando falham não têm mesmo mais nada, têm de voltar ao zero. E a ideia é eles, mesmo que falhem, perceberem que já deram passos, e passos positivos”.
Ter uma rede de suporte é, assim, fundamental e pode mesmo fazer a diferença no futuro dos jovens. “Temos perfeita consciência de que os jovens que durante o tempo do acolhimento frequentaram os escuteiros, o futebol, o andebol, algum desporto, grupos como os Amigos para a Vida, a catequese, o teatro, alguma forma de arte, o que quer que seja, acabam por ficar mais bem preparados. E depois têm uma rede social - e não me refiro ao Instagram, nem ao Facebook, refiro-me a uma rede social humana, verdadeira, que depois, quando têm uma dificuldade, lhes permite pedir ajuda. Ficam mais preparados para a vida do dia-a-dia".
Para João Pedro Gaspar, há preconceitos em relação ao acolhimento que ainda não foram ultrapassados. Lembra que cada palavra tem um peso, e dizer que se está “institucionalizado” continua a ser negativo, por isso tem havido um esforço para mudar a linguagem nesta área. "Quando comecei a trabalhar nesta área havia lares, orfanatos, instituições e havia utentes. Agora felizmente há crianças e jovens acolhidos e há casas de acolhimento – que, se funcionarem para além da semântica, há realmente muitas vantagens”.
Mas, considera positivo que se esteja a apostar cada vez mais no acolhimento familiar, porque é o mais aproximado ao ambiente natural em que qualquer criança deveria crescer. "Qualquer criança ou jovem que cresce numa casa de acolhimento é privado de um direito fundamental, o direito a crescer numa família - na sua família biológica, alargada, adotiva, de acolhimento, numa família. Não cresce em nenhuma família, cresce numa casa de acolhimento. Tentamos que não sejam instituições e sejam mesmo casas de acolhimento, porque nenhum ser humano deve ser institucionalizado. No máximo será residencializado, viver numa residência, mas nós queremos mesmo que sejam (e se sintam) acolhidos”.
Este é o último episódio desta temporada do Vidas Invisíveis, um podcast Renascença em parceria com a associação Candeia, para falar sobre a realidade do acolhimento de crianças e jovens em risco em Portugal.