Créditos por um fio. Aos 43 anos, Catarina arrendou a própria casa e regressou à dos pais

Nunca os bancos executaram tão poucas casas em Portugal, como no segundo trimestre de 2023 – o que contrasta com o galopar dos juros e das prestações do crédito à habitação. Famílias estão a fazer de tudo para não perder os seus tetos. Mas a que custo? E até quando vão aguentar? Catarina tem uma filha de 17 anos e voltou a morar com os pais. Filipe vai emigrar, mal tenha oportunidade. Pedro tem dois empregos e espera pelo recuo dos juros. Ana quase esvaziou as poupanças.

06 set, 2023 - 07:00 • Fábio Monteiro



Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Ilustração: Rodrigo Machado/RR

Catarina (nome fictício) viu o tsunami da subida das prestações dos créditos à habitação a formar-se, como que à distância, ainda no ano passado. E ficou assustada.

A auxiliar educativa de 43 anos, natural de Lamego, com uma filha de 17 anos à sua responsabilidade e apenas um salário mínimo nacional para se sustentar, facilmente podia perder o pé. Por isso, precaveu-se.

Em outubro de 2022, Catarina mudou-se para casa dos pais, juntamente com a filha. E, de forma a ter dinheiro para continuar a pagar o seu crédito à habitação, arrendou a própria casa, que comprara no final de 2015. “Não foi bem uma opção, foi uma solução.”

Há meses que as notícias diziam que as prestações estavam a aumentar. Após anos em terreno negativo, um período de crescimento e “dinheiro barato”, a Euribor (a 3, 6 e 13 meses) começara a subir a 4 de fevereiro de 2022 – tendência que, salvo pequenos solavancos recentes, até hoje não se alterou.

A prestação mensal de Catarina rondava os 170 euros – um valor comportável, quando assinou os papéis do empréstimo. Mas assim que os aumentos dos juros se fizeram a sentir, “começou a sair da conta muito mais valor”. Primeiro, foram “mais 50 euros”. Depois, “mais alguns”.

Era uma questão de “tempo” até Catarina deixar de conseguir pagar.

A auxiliar tinha poupanças. “Foi assim que fui educada.” Podia até aguentar o embate das primeiras ondas por alguns meses. A longo prazo, porém, tal estratégia era insustentável. “É como os mais velhos dizem: se cada vez que a gente precisa vai lá, o pote acaba por chegar ao fundo”, explica.

Por causa da filha, Catarina descartou logo à partida a possibilidade de alugar um quarto da própria casa. Mas não deixou de equacionar nenhum cenário. Até o mais drástico de todos.

“Pensei em vender, entregar a casa ao banco ou alugar e vir para casa dos meus pais, o que acabei por fazer”, admite.


Lisboa é uma das cidades em que o preço das casas mais subiu nos últimos anos. Foto: Reuters
Lisboa é uma das cidades em que o preço das casas mais subiu nos últimos anos. Foto: Reuters

Indicadores visíveis

A situação de Catarina representa uma realidade que – pelo menos, de momento - os indicadores do Banco de Portugal (BdP) não abarcam: muitos portugueses estão a fazer de tudo para continuarem a pagar os seus créditos à habitação.

Num esforço para não perder o teto, há quem alugue quartos, esvazie poupanças ou pondere emigrar, de acordo com testemunhos ouvidos pela Renascença.

Mas até quando vão aguentar? “No final de 2023, cerca de 70 mil famílias poderão vir a ter despesas com o serviço do crédito à habitação permanente superiores a 50% do seu rendimento líquido”, alertou Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, ainda esta semana.

Apesar do galgar dos juros desde o início de 2022, nunca os bancos executaram tão poucas casas, indicam dados do Banco de Portugal. No segundo trimestre de 2023, a banca recebeu apenas 101 imóveis devido a incumprimentos dos créditos para habitação, número que contrasta com os 1083 que recebeu em igual período de 2013 – ou seja, em plena crise da troika.

Desde setembro do ano passado, o rácio de incumprimento dos créditos habitação está nos 0.3% - o valor mais baixo que há registo. Acontece que há outro indicador do BdP a fazer levantar sobrolhos.

Divulgado em março, o Relatório de Supervisão Comportamental do Banco de Portugal relativo a 2022, sinalizou um aumento dos processos iniciados no âmbito do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) no ano passado: 56 378, mais quase 18 mil que em 2021. (Números relativos a 2023 não são ainda conhecidos.)

O reduzido número de casas executadas e o aumento de processos de PERSI contrastam – mas não são indicadores contraditórios, diz Nuno Rico, economista da associação de defesa do consumidor DECO PROTESTE, à Renascença. Há um “diferencial de tempo entre algo acontecer no mercado e depois os impactos serem sentidos na totalidade.”

Por outras palavras: o PERSI é o primeiro degrau que as famílias portuguesas pisam, quando entram em situação de incumprimento. A execução em favor da banca é o último. No intermédio, há muitos degraus: é possível renegociar e chegar a diferentes tipos de compromissos, antes do cenário mais drástico.

No entender de Nuno Rico, o número crescente de processos PERSI indica que as famílias portuguesas “começam a ter dificuldades em continuar a pagar os seus empréstimos”.

Até agora, as famílias têm encontrado “estratégias para acomodar as subidas - quer através da procura de novas fontes de rendimento, quer renegociando os contratos com a banca”. “Estamos ainda numa fase em que não temos um elevado nível de incumprimento e execução dos imóveis. As famílias estão a tentar utilizar as poupanças que têm disponíveis”, aponta o economista.


Portugueses estão a fazer de tudo para continuar a pagar créditos à habitação. Foto: Reuters
Portugueses estão a fazer de tudo para continuar a pagar créditos à habitação. Foto: Reuters

E depois das poupanças?

No primeiro trimestre de 2023, as amortizações de créditos à habitação aumentaram 70% face ao período homólogo no ano passado, segundo dados do Banco de Portugal. De dezembro de 2022 para janeiro de 2023, a percentagem de amortizações antecipadas de créditos à habitação passou de 0.08 para 0.16%. Em junho, foi de 0.15 - valor que contrasta com o período homólogo (0.04%).

A vida de Ana Isabel encaixa nestas estatísticas. No início de 2023, a profissional de cuidados de saúde de 32 anos quase esvaziou as suas poupanças para amparar o choque do aumento do crédito à habitação. Pelos seus cálculos, a prestação ia aumentar perto de 75%.

“Tendo em conta o que elas [poupanças] rendem num depósito a prazo, que é muito pouco, e a diferença mensal que iria trazer na prestação da casa, optei por amortizar”, explica. “Acabou por ser um aumento muito pequeno, um valor de 40 ou 50 euros. Amortizar pareceu-me a melhor opção.”

Ana comprou casa em Odivelas, em janeiro de 2018 – momento em que a taxa Euribor estava negativa. A profissional de cuidados de saúde, natural do Barreiro, queria estar mais próxima do seu local de trabalho; arrendar nunca foi uma possibilidade, devido os valores “inflacionados” do mercado.

Há dois anos, tendo noção que o Spread do seu contrato era “alto, comparativamente com o de outras pessoas”, Ana renegociou com o banco. Já este ano, amortizou o crédito. Uma decisão de que não se arrepende, mas que a deixou a pensar: “O meu carro não pode avariar. Se o meu carro avariar e tiver de trocar, vai ser um problema. Andei dois, três meses, a pensar.”

No próximo ano que se avizinha, Ana não poderá recorrer à mesma solução. “Vou tentar renegociar, mas amortizar não é uma opção. Desta vez, não consigo ir por essa via.” Mesmo que Euribor a 12 meses chegue aos 5%, a profissional de cuidados de saúde pensa que conseguirá aguentar. “O que fiz, desde janeiro, foi ser um bocado mais orientada na minha gestão financeira, de forma a conseguir aguentar o aumento.”


Manifestação "Uma Casa para Viver" em Lisboa. Foto: Marta Pedreira Mixão/RR
Manifestação "Uma Casa para Viver" em Lisboa. Foto: Marta Pedreira Mixão/RR

Mercado vivo

De momento, “o mercado imobiliário ainda está dinâmico” – o que é uma boa e má notícia para os portugueses. Por um lado, o valor das casas, em particular nos grandes centros urbanos, continua inflacionado. Por outro, ainda há procura e é possível vender – em muitos casos - sem prejuízo.

Para as “famílias que se se veem incapacitadas de pagar o seu imóvel, uma das medidas [mais comuns] é colocar à venda e procurar outro mais barato, noutra zona, mais pequeno”, diz o economista Nuno Rico. Segundo um inquérito recente da consultora imobiliária Imovendo, 20% dos proprietários que colocaram um imóvel à venda, durante o primeiro trimestre do ano, fizeram-no devido a dificuldades financeiras no pagamento de empréstimos.

Ao contrário do que aconteceu em 2013, no período da crise da troika, o número de casas executadas pela banca ainda “não disparou”. Porquê? “Temos uma economia favorável. Ainda. E friso aqui o ainda. A taxa de desemprego continua baixa, o crescimento económico ainda continua a fazer-se sentir.”

Em todo o caso, o segundo semestre de 2023 poderá ser um ponto de viragem. “Será certamente um semestre complicado para as famílias. Muitas vão começar a sentir toda a amplitude da subida das taxas de juro.”

No segundo trimestre do ano, o crescimento económico estagnou – algo que não acontecia desde o arranque de 2021 (período da pandemia).

Os “trunfos” para fazer face à inflação e aumento de juros começam a esgotar-se. No ano passado, foram realizadas mais de 41 mil renegociações de crédito à habitação, um aumento de 17,4% em relação ao ano anterior. Em 16% dos casos, famílias já estavam em incumprimento. “Isto indica que há toda uma dinâmica de tentar evitar a situação última: que é a execução do imóvel”, sublinha o economista.


Mário Centeno está preocupado com o aumento das taxas de juro. Foto: André Kosters/Lusa
Mário Centeno está preocupado com o aumento das taxas de juro. Foto: André Kosters/Lusa

Emigrar e aguentar

Nos últimos dois anos, a vida pregou algumas rasteiras a Pedro Marvão - e deixou-o com uma casa nas mãos para pagar.

Em janeiro de 2021, o jovem enfermeiro, natural de Odivelas, estava numa relação estável; meses antes, comprara um terreno “por um valor aceitável” na freguesia de Santo Antão do Tojal, Loures, com o intuito de ali construir uma vivenda.

Pedro e namorada pediram um crédito para construção de habitação. E conseguiram-no. O esforço financeiro ia ser “repartido”. “Era uma coisa a dois.” Porém, poucos meses depois, a relação terminou. E, quase em simultâneo, os juros do empréstimo começaram a subir.

Uma coisa é estar num projeto a dois, acaba-se por se dividir um bocado as despesas. Outra coisa é ter de assumir um encargo sozinho”, confessa.

A quente, Pedro ainda ponderou vender o terreno e o esqueleto da casa, mas optou por seguir com a construção. “Se fosse um valor insustentável, aí sim provavelmente teria que vender a casa, mas já terminada.”

Como ainda mora com os pais e trabalha em dois hospitais, o jovem consegue canalizar quase tudo o que ganha para pagar o empréstimo. Todavia, o caminho que Pedro escolheu não é isento de custos. “Aquilo que tive de começar a fazer foi aumentar o número de turnos para colmatar os valores.” O jovem está dependente da vitalidade dos seus 28 anos para continuar à tona, até que a maré de subida de juros abrande e, eventualmente, recue.

“Como sou jovem, saudável, por enquanto aguento relativamente bem. Não quer dizer que isto seja uma coisa a longo prazo. É impensável continuar neste ritmo mais do que um, dois anos, no máximo. É um ritmo que não é saudável”, diz.

Filipe, colega de trabalho de Pedro, está numa situação semelhante. E tem uma visão mais negativa quanto ao futuro.

À Renascença, garante: “Tenho um cenário mais que definido na cabeça”: emigrar, assim que surja uma oportunidade. “Tenho sítios que me oferecem quatro ou cinco vezes mais do que ganho aqui. Já estou aprovado em duas empresas [de recrutamento].”

O que há de pouco usual no caso deste enfermeiro de 29 anos, que também trabalha em dois hospitais da área metropolitana de Lisboa, é o motivo: “Vou emigrar para manter a minha casa, o peso financeiro que ela me trouxe.”

Em fevereiro de 2021, após anos a dividir teto e renda com amigos, Filipe comprou casa em Odivelas; desde sempre, ambicionara ter um “porto seguro” próprio. A prestação mensal contratualizada com o banco foi de 400 euros. “Compensava, ficava mais barato que alugar.”

No entretanto, a prestação de Filipe – devido à subida dos juros e taxas Euribor - escalou quase até aos 800 euros. “Não é uma questão de ser viável ou não. Sempre trabalhei em dois lados. Tenho o meu principal e o meu duplo. Acontece que antes conseguia juntar algum dinheiro. Neste momento, não. Há meses em que tenho de ir buscar àquele que tinha guardado”, conta.

Há muito que Filipe, natural de Viseu, vinha a ponderar a possibilidade emigrar. Passar uma temporada fora, poupar dinheiro, amortizar empréstimos, fazia parte dos seus planos. A crise inflacionária, no entanto, “acelerou a decisão de uma maneira brutal”.

“Uma pessoa deixou de conseguir viver. Neste momento, sobrevivemos, não vivemos, com aquilo que ganhamos”, queixa-se.


Foto: Reuters
Foto: Reuters

Agora e sempre

Um efeito da crise do setor da habitação, do aumento das prestações do crédito, é compelir todos os proprietários a pensarem as suas casas como ativos. Em certa medida, transforma-os em gestores imobiliários – o que não deixa de ser irónico – presos na dinâmica do mercado.

“Utilizar a habitação como um ativo financeiro é precisamente o motivo da crise da habitação. Claro que não são estas pessoas que estão a passar por dificuldades de pagar o crédito que estão a criar o problema. São outras situações, obviamente. Mas isso reflete o poder económico que o mercado imobiliário tem”, nota Bernardo Alves, do movimento Habitação Hoje!, à Renascença.

Dentro de um mês, a construção da vivenda de Pedro Marvão ficará concluída. O valor da prestação que ficará a pagar “é consideravelmente superior àquele que estava previsto no início” de 2021. E vender não é uma ideia que esteja fora da sua cabeça. “Espero que até ao final do ano não seja uma necessidade”, diz.

O colega Filipe tem em cima da mesa a possibilidade de partir para águas internacionais: trabalhar em cruzeiros. O enfermeiro não espera uma vida fácil. “Passo a expressão: farto de levar aqui na boca estou eu por um mísero ordenado. Se for por 4 ou 5 mil, que seja.”

O plano é “quatro meses fora, dois cá [em Portugal]” – por isso, vender a casa não é uma possibilidade. Pelo menos, para já. “Um dia até regresso, tenho uma casa aqui, dá sempre para alugar, vender. É sempre um investimento”, explica.

Já a situação de Catarina, a auxiliar educativa de Lamego, é mais complicada.

Todos os meses, Catarina visita a sua própria casa – mas fica à porta ou pelo hall de entrada. A pedido do inquilino, vai lá buscar a renda - um ritual que lhe “custa imenso”. “Sinto um aperto no peito. Custa ver alguém que não conhecemos ou não conhecemos muito bem a usufruir daquilo que é nosso, daquilo que continuamos a pagar. Acabei por tirar muita coisa de lá e deixar o mínimo indispensável”, confessa.

Anos de trabalho, de sobrevivência, de compras estão agora “encaixotados e guardados” para um dia futuro que tardará a chegar. “Não me estou a ver a ir para minha casa nos próximos dois ou três anos. Ou até mesmo quatro. E vou ser muito franca porquê: tenho um próximo passo à frente. Tenho uma filha que mais um ano está a entrar na faculdade”, confessa.

Para mandar a filha para a universidade, Catarina precisará da ajuda dos pais e da renda da sua própria casa. Ou seja, está entalada entre as suas circunstâncias pessoais e a economia nacional.

Catarina suspira. E diz: “Não me estou a ver a suportar tanta coisa.”


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