Hidrogénio verde. A febre que arrancou a "martelo" e onde agora "sobraram" quase 20 milhões do PRR

Dos 185 milhões do PRR para investimentos em hidrogénio verde, perto de 20 reverteram para “outras áreas”. Foi feita uma “reprogramação em que baixámos um pouco a ambição do hidrogénio”, admite a ministra Maria da Graça Carvalho, à Renascença. Luís Mira Amaral defende que era “evidente” que os projetos “megalómanos” do anterior Governo não iam dar frutos. “A tecnologia não estava madura para poder fazer isso.” Especialistas acreditam, ainda assim, que o hidrogénio verde não é uma carta fora do baralho para o futuro da descarbonização.

18 fev, 2025 - 06:10 • Fábio Monteiro , José Pedro Frazão



Montagem: Rodrigo Machado/RR
Montagem: Rodrigo Machado/RR

A febre é, por norma, um episódio passageiro. Pode prolongar-se durante algum tempo, até causar alucinações, mas, salvo exceções, acaba por desaparecer sem deixar rasto. Ora, o que aconteceu com o hidrogénio verde (H2V) em Portugal, nos últimos cinco anos, obedece à mesma lógica.

A impulsionadora foi a Estratégia Comum para o Hidrogénio Limpo da União Europeia. Mas Portugal tem responsabilidades próprias. Houve “otimismo” e foram estabelecidas “metas muito ambiciosas”, diz a ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, à Renascença.

Entre 2020 e 2024, proliferaram projetos de produção de H2V em solo nacional. João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia e então ministro do Ambiente, chegou a augurar: “Temos cerca de 70 projetos de hidrogénio verde, que, se forem todos realizados, representarão investimentos de 8 mil milhões de euros.”

No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), foram alocados 185 milhões de euros – a ser distribuídos pelo Fundo Ambiental - para investimentos em hidrogénio e gases renováveis.

Uma parte significativa desta verba, perto de 20 milhões de euros, pelas contas da Renascença, contudo, não irá ser aplicada no fim que lhe era destinado.

O primeiro concurso de apoio a projetos de H2V (lançado em 2021) tinha para distribuir 102 milhões de euros, mas, após várias alterações (desistências, anulações, reforços e reduções de apoio), 804.370 euros “sobraram”.

“Eventuais novos valores libertados com alterações às operações, ficarão à disposição da tutela e da EMRP [Estrutura de Missão “Recuperar Portugal”] para outros investimentos no âmbito do PRR”, lê-se num comunicado do Fundo Ambiental, publicado a 28 de janeiro deste ano.

O segundo concurso (lançado em 2023), por sua vez, tinha 83 milhões de euros para entregar. Acontece que, dos 22 projetos selecionados, seis (cinco por desistência e um por anulação) caíram, noticiou o “Expresso” em dezembro. Ficaram, assim, a “sobrar” mais de 19 milhões de euros.

À Renascença, a ministra Maria da Graça Carvalho refere que não sabe as razões por detrás das desistências, mas nota que é facto conhecido entre os promotores de projetos de H2V, que há “uma grande dificuldade em obter eletrolisadores [dispositivo que permite produzir hidrogénio via eletrólise da água] no mercado”.


Os projetos de PRR relativos ao H2V têm de estar prontos até “junho, julho de 2026”, caso contrário, “existirão problemas no financiamento”. “Quando foi a reprogramação do PRR, houve uma reunião com todos os promotores e foi chamado à atenção que aqueles que não podiam, que não iam estar prontos, era melhor não continuarem. Também daí houve um repensar de cada um dos projetos”, diz Maria da Graça Carvalho.

A governante assume que foi feita uma “reprogramação em que baixámos um pouco a ambição do hidrogénio”. Parte dos milhões que “sobraram” do H2V reverteram, pois, “para outras áreas”.

Da bonança ao “mea culpa”

A febre do H2V começou a borbulhar em 2020, quando, em plena pandemia, a União Europeia anunciou apoios de 30 mil milhões de euros e a ambição de gerar 40 gigawatts (GW) via eletrólise até 2030. Portugal não quis ficar atrás e traçou o objetivo de alcançar, a título individual, a meta de 2 GW.

Mas a bonança de fundos da Aliança Europeia para o Hidrogénio Limpo gerou logo céticos. Um grupo de 44 personalidades, entre os quais antigos governantes do PSD, assinou mesmo um manifesto contra a “aventura” do Governo de António Costa no H2V.

Luís Mira Amaral, ex-ministro da Indústria e Energia (1987-1995), um dos signatários, diz à Renascença que era “evidente” que a aposta no H2V “não podia arrancar daquela maneira”.


Foto: Nuno André Ferreira/Lusa
Foto: Nuno André Ferreira/Lusa

“Tinha de arrancar de uma forma muito mais lenta e através de pequenos projetos, para satisfazer consumos locais. Não um projeto megalómano, para uma grande produção de hidrogénio para transportar e exportar, o que não é realista. A tecnologia não estava madura para poder fazer isso”, sublinha.

O ex-ministro social-democrata acusa António Costa e João Galamba de serem “ignorantes na matéria”. “Isto da energia é perigoso. Os PowerPoints são fabulosos, mas quem não sabe química, física e termodinâmica, põe tudo o que é no PowerPoints e depois a realidade não é como eles pensam.”

Na época, João Galamba, secretário de Estado da Energia, foi perentório na resposta ao manifesto: “É um manifesto anti-hidrogénio, anti-eólicas, anti-solar, anti-Europa e anti-fundos europeus. É colocar Portugal como uma espécie de Coreia do Norte, à margem das fontes de financiamento.”

O governante defendeu o investimento, com a expectativa confessa de, em 2030, 5% do consumo total da energia nacional proviesse já de H2V. Em 2022, ouvido no Parlamento, reiterou: "Quem pôs o hidrogénio na agenda foi o Governo. E muitas vezes tem que entrar assim: a martelo.” E foi ainda mais longe: “Não tenho dúvidas nenhumas de que o hidrogénio e os seus derivados serão o maior projeto industrial em Portugal desde o 25 de Abril.”

Todavia, em setembro de 2024, o tom mudou. Já fora da vida política, João Galamba fez um “mea culpa” por ter sido “demasiado entusiasta” do H2V.

“Hoje atribuo um papel menos relevante ao hidrogénio e tenho uma visão mais focada do uso do hidrogénio que se resume ao setor da aviação e ao setor do transporte marítimo”, disse, numa conferência organizada pelo jornal “ECO”.

O que o fez mudar de opinião, Galamba não disse. A Renascença tentou contactar o antigo ministro, mas não obteve resposta.


Maria da Graça Carvalho, ministra do Ambiente e Energia. Foto: Tiago Petinga/Lusa
Maria da Graça Carvalho, ministra do Ambiente e Energia. Foto: Tiago Petinga/Lusa

Pouca produção

O hidrogénio verde – produzido, maioritariamente, via eletrólise da água, utilizando eletricidade de fontes de energia renováveis - “não é nada de novo”.

No final da década de 90 e também início dos anos 2000, houve “um hype do H2V, sobre a designação de economia do hidrogénio. Havia mesmo um plano de transformar a Islândia numa economia de hidrogénio”, recorda Pedro Horta, investigador e coordenador da cátedra de Energias Renováveis na Universidade de Évora.

A ideia, todavia, nunca ganhou corpo, devido a questões financeiras. “Estamos a falar de uma alteração de paradigma da indústria. Portanto, estamos a falar sempre de grandes investimentos. Ora, quando chegou a crise financeira [de 2008], esses investimentos foram todos por água abaixo, não havia dinheiro disponível.”

O investigador acredita que o H2V “pode ser parte da solução” para o problema das emissões de carbono, chegando a representar, no futuro, “10, 15 ou 20% da energia que consumimos”. Porém, sublinha: “Não há aqui uma silver bullet [bala de prata] que vai resolver o problema todo. Vamos ter sempre de encontrar uma combinação de diferentes soluções tecnológicas.”

Até lá, a indústria do H2V tem ainda de trilhar muito caminho. Em particular, na produção de eletrolisadores. “Estamos a falar de passar a produção de eletrolisadores de 100 toneladas por ano para 100 milhões de toneladas por ano. É escalar o mercado por um fator de 100”, frisa Pedro Horta.

O coordenador da cátedra de Energias Renováveis na Universidade de Évora não fica, por isso, surpreendido com o recuo de alguns projetos que haviam conseguido verbas do PRR para fazer investimentos em H2V.

Com “prazos restritivos” para a execução das verbas, empresas e consórcios começaram a pensar: “Vamos ter os eletrolisadores entregues ou não? Os fabricantes conseguem fornecer ou não conseguem fornecer ou não conseguem. O que acontece se não for dentro do prazo? Já não temos o subsídio.”

A experiência de Manuel João Mendes, professor do Instituto Superior Técnico e investigador do CENIMAT, atesta as palavras de Pedro Horta.

O investigador do IST integra o projeto M-ECO2, em que um dos propósitos é explorar a utilização de energia solar para a produção de H2V, ao qual foi necessário fazer um “downsizing” (diminuir o tamanho, em português): “Em vez de ser uma instalação tão grande como a que estava inicialmente prevista, será uma estação mais pequena, com foco mais na parte científica, na parte de demonstração.”


António Costa na inauguração do primeiro projeto de injeção de Hidrogénio Verde na rede de gás. Foto: Rui Minderico/Lusa
António Costa na inauguração do primeiro projeto de injeção de Hidrogénio Verde na rede de gás. Foto: Rui Minderico/Lusa

Pouco mercado

Potencial energético à parte, outra das barreiras à disseminação do H2V é que “falta ainda um mercado consolidado”, alerta Manuel João Mendes. Mesmo com grandes desafios pela frente, “tudo seria solucionável se houvesse procura”.

De momento, contudo, não há essa procura.

“Há muitas questões que, presumo, do lado de uma empresa tornam estes investimentos ou estes co-investimentos um bocadinho mais arriscados”, nota Pedro Horta. “Às tantas, a decisão é: nós temos algum capital, vamos colocá-lo numa coisa que nos dê menos problemas e menos dúvidas que nesta. E vamos esperar que outros o façam [primeiro] para entrarmos mais tarde.”

Para o investigador da Universidade de Évora, os fundos do PRR levaram algumas empresas a explorar setores que não dominavam. “Sem ter à partida know-how de base. Noutros casos, não. Empresas como a Bondalti ou como a Galp já produzem hidrogénio, sabem o que é isto, percebem o mercado, sabem de que produto estamos a falar. Mas para outras empresas era uma nova área.”

A Renascença questionou a Direção-Geral de Energia e Geologia relativamente ao número de projetos licenciados de produção de H2V em Portugal, mas, até à hora de publicação deste artigo, não obteve resposta.


Eletrolisador da empresa Gestene. Foto: André Kosters/Lusa
 

Mudar a canalização ao país

Uma das dificuldades associadas ao H2V é o seu transporte e armazenamento. Apesar de estarmos a falar de um gás, o hidrogénio não pode ser transportado nas mesmas condutas e gasodutos que o metano (o dito gás natural).

“O metano é uma molécula grande, que ocupa um bocado de espaço. Agora, imagine o que é ir à pesca com uma rede para pescar carapaus e uma rede para pescar atuns. E é exatamente disso que estamos a falar. O hidrogénio é a molécula mais pequena que existe. Precisamos de uma rede ultrafina”, explica Pedro Horta.

Ou seja: caso no futuro o H2V se torne essencial à rede energética, será necessário mudar toda a “canalização” do país.

Em Portugal, em muitos dos “complexos industriais” onde já há produção de H2V, o consumo ocorre no local. Existem, ainda assim, exceções, como a Floene, no Seixal, que adiciona uma pequena percentagem (perto de 12%) de H2V na sua rede de distribuição de metano, criando assim uma espécie de “gás natural aditivado”.

“A questão da distribuição e transporte do hidrogénio é uma parte muito importante dos custos. Diria que corresponde a metade dos custos do H2V para o utilizador final”, estima o investigador da Universidade de Évora.

Pelo menos na teoria, Portugal está em boa posição para desbravar caminho no armazenamento do H2V.

Como tem uma “densidade energética alta”, o hidrogénio pode ser utilizado para armazenar energia proveniente de fontes renováveis. “Neste momento, estou com muito sol, muito vento, e não consigo consumir isto tudo. Então, vou guardar. Ou vou guardar numa barragem ou na forma de hidrogénio.”

O H2V pode ser, por via de processos químicos, constituído como um combustível líquido. “Há uma parte significativa da economia que nós não vamos conseguir eletrificar. Ou pelo menos, facilmente. O caso de processos de alta temperatura na indústria e transporte de longo curso. São consumos energéticos que não fáceis de eletrificar. À partida, vão estar sempre um pouco dependentes de combustíveis líquidos ou gasosos”, explica Pedro Horta.

Assim que se perceba que há um mercado, o investigador acredita que a indústria vai desenvolver a tecnologia necessária – “motores de combustão, queimadores para hidrogénio” - para tornar este cenário real.

“Isto é realista? É, mas há aqui um conjunto de questões que tem de ser resolvido. E podem ser resolvidas de forma fiscal, de forma de incentivos públicos, há muitas ferramentas para resolver estas coisas. Aliás, as mesmas que utilizamos para começar a utilizar petróleo à bruta, como fazemos hoje. Teve de haver apoios públicos e subsídios. Teve de haver e ainda há. É uma aposta política.”

Resta saber se a política já não estragou a fama do Hidrogénio Verde. O ex-ministro Luís Mira Amaral não nega esse “risco”. “Mas a culpa é de quem foi megalómano, era ignorante e não ouviu quem sabia.”


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