Racionamento, mais IVA e IRS, menos apoios sociais. O que vai acontecer aos nossos bolsos se a NATO entrar em guerra?

Um conflito armado com a Rússia não passa de uma possibilidade, mas o Ocidente está já a preparar um reinvestimento em defesa. Os planos são vários, mas a pergunta impõe-se: afinal, onde vamos buscar o dinheiro? Eis um guia para compreender aquilo que ganhamos e abdicamos se a Europa for empurrada para uma guerra.

17 jun, 2025 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves , Salomé Esteves (infografia)



Ouça aqui a reportagem da Renascença. Ilustração: Salomé Esteves/RR
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Ouça aqui a reportagem da Renascença. Ilustração: Salomé Esteves/RR

Jovens assustados a receber as cartas de recrutamento militar em casa, racionamento de alimentos, abrigos artesanais construídos em caves de escritórios, adolescentes a eternizarem memórias em diários que viraram fontes históricas. A Segunda Guerra Mundial acabou há precisamente 80 anos e as imagens na nossa cabeça de um grande conflito na Europa têm tanto de cinematográfico como de desatualizado – sem telemóveis, sem internet, sem globalização.

Por isso, os ensinamentos trazidos pela história até podem ajudar na precaução, mas não serão suficientes se a grande muralha de paz construída pela NATO desabar e o Velho Continente ficar exposto a um conflito em todas as frentes, incluindo a cibernética.

Cientes disso, os responsáveis dos países da Aliança Atlântica reúnem-se no final deste mês, a 24 e 25 de junho, em Haia, nos Países Baixos, para uma cimeira que promete marcar os nossos tempos. Em cima da mesa, estará, claro, a possível subida da meta do investimento em defesa para os 5% do PIB, mas também o reforço da indústria militar nas próximas décadas e o desenho de centenas de cenários de resposta, caso a Rússia não queira ficar apenas pela Ucrânia.

Tudo isto mexe com dinheiro e, em tempos de crise, os instrumentos não abundam. Por isso, e na perspetiva de Henrique Pita Barros, economista e investigador das consequências económicas e sociais de conflitos armados, se a Europa entrar repentinamente em guerra, os nossos bolsos vão ser os primeiros a sofrer, principalmente com um aumento de impostos.


“Se o Estado fosse aumentar impostos em empresas, por exemplo, estaria a tirar competitividade à própria economia e isso poderia ter um efeito negativo no crescimento económico, no investimento. Portanto, vai-se àqueles onde é mais fácil retirar algum dinheiro extra – que seriam as pessoas, com o IVA e o IRS”, prevê.

O objetivo passa por proteger o tecido económico e os salários numa altura de grande fragilidade para o país e, ao mesmo tempo, garantir que “as pessoas aceitam” o sacrifício de apertar os bolsos em prol da defesa do país. Para isso, aponta Pita Barros, o Estado tenta evitar ao máximo retirar verbas aos setores da educação e da saúde e, por vezes, opta por criar impostos (sobre os lucros de guerra ou sobre heranças, por exemplo) que apaziguam a tensão social: “Esses mecanismos redistribuem o esforço por quem tem mais”, aponta.

Seja com mais retenção na fonte ou com um imposto sobre fortunas, uma coisa é certa – nestas circunstâncias, o Estado vê-se obrigado a intervir mais na economia, seja qual for a cor do governo.


O secretário-geral da Nato, Mark Rutte, já se mostrou favorável subir a meta de investimento em defesa para os 5% do PIB. "Estamos muito perto de um acordo alargado", disse, já este mês. Foto: Olivier Matthys/EPA
O secretário-geral da Nato, Mark Rutte, já se mostrou favorável subir a meta de investimento em defesa para os 5% do PIB. "Estamos muito perto de um acordo alargado", disse, já este mês. Foto: Olivier Matthys/EPA

“O Ministério da Economia que nós, hoje em dia, temos como organismo habitual a funcionar no Estado, foi criado no contexto da Segunda Guerra Mundial”, aponta Ana Paula Pires, especialista em história económica e social contemporânea.

Entre 1943 e 1944, em pleno Estado Novo, a dificuldade de abastecimento de bens essenciais, o disparo da inflação e a má distribuição da riqueza durante a Segunda Guerra Mundial levaram a que o governo de Salazar ordenasse um racionamento de produtos, como o pão, arroz e batatas. Antes disso, já a eletricidade também tinha sido limitada em algumas partes do país.

Na atualidade, essa hipótese dependerá sempre da duração e da dispersão geográfica de um possível conflito, mas Pita Barros considera que é uma “estratégia se o mecanismo de preços deixar de funcionar” – resta saber se vão ser os estados ou a União Europeia a coordenar esse processo.

“A União Europeia podia ter essa tentação, mas não é claro, para mim, como seria a reação dos países a esse papel da UE”, questiona.


Vamos ter mesmo de nos endividar?

A narrativa é quase como ver um copo meio cheio: pagamos mais impostos e há sacríficos inevitáveis, mas áreas como a saúde e a educação permanecem intocáveis. Ainda assim, a pergunta para queijinho não desaparece: isto chega para suportar o esforço de uma guerra? Para Pita Barros, a resposta é óbvia: “não” e uns vão sofrer mais do que outros.

“O mais simples para qualquer governo será cortar prestações que beneficiam pessoas com menos representação no sistema político, a começar por imigrantes, que não votam. Esse seria o incentivo mais racional de um governo que quer ganhar eleições”, antevê, ressalvando que a presença de migrantes e refugiados (nomeadamente ucranianos) pode vir a ser um fator de tensão se a Europa entrar em guerra: “Tende a haver uma culpabilização do estrangeiro que chega, da pessoa que é estranha”, alerta.

Fora isto, e numa altura em que os estudos académicos ainda são parcos e é difícil quantificar o possível esforço de ter uma Europa em guerra, há passos que Pita Barros acredita que podem ser dados desde já, nomeadamente “reformar o Estado para garantir mais eficiência” e aproveitar os pacotes de apoio da União Europeia.

Em fevereiro deste ano, a Comissão Europeia apresentou o plano Prontidão 2030, para reforçar as capacidades de defesa dos Estados-membros nos próximos cinco anos e que tem o valor de 800 mil milhões de euros, divididos em duas parcelas.

Vai-se àqueles onde é mais fácil retirar algum dinheiro extra – que seriam as pessoas, com o IVA e o IRS

A primeira assenta num envelope de 150 mil milhões de euros em empréstimos concedidos por Bruxelas aos 27, para adquirirem equipamentos militares. A outra consiste num aliviar das rígidas regras orçamentais: os estados-membros não têm de cumprir as normas relacionadas com o défice e a dívida pública, desde que isso signifique um investimento em defesa – uma medida que, segundo as contas europeias, deve custar 600 mil milhões de euros.

Na perspetiva do também professor no ISEG, estas são todas formas diferentes da mesma solução: a contração de dívida. É a hipótese mais rápida e segura para arranjar fundos sem minar o Estado Social, mas também traz água no bico: “Qualquer contração de dívida significa que são as gerações futuras que vão pagá-la”, avisa Pita Barros.

Mais vale agora do que depois

Faz parte da natureza humana: ninguém gosta de saber que, daqui a um par de anos, vai ter um problema em mãos para resolver, ainda para mais quando envolve dinheiro e dívidas. Perante o presumível descontentamento das populações sobre o aumento do investimento em defesa (que já se começa a delinear), a bola fica do lado dos políticos: têm de explicar por que razões este sacrifício é um “mal menor”.

“Se não houver investimentos em defesa, pode haver tentação de qualquer outro país próximo da Rússia ser alvo de um ataque futuro. A ameaça, especialmente nos países de leste, os bálticos, etc., é prejudicial para a economia. Quando há incerteza, há uma retração do investimento das empresas e isso é prejudicial aos países”, esclarece Henrique Pita Barros.


Interativo. 16 armas que marcaram a guerra na Ucrânia


É uma “narrativa de sacrifício coletivo” que tem de conseguir apresentar os “efeitos positivos para as gerações futuras”. Em Portugal, esse trabalho está, desde o início, dificultado: primeiro, devido à memória da Troika, depois porque “não estamos perto da Rússia”, o que torna “menos claro no dia-a-dia o porquê de estes sacrifícios serem necessários”.

Esta perceção vem refletida nos números. Segundo o Eurobarómetro publicado em maio deste ano, apenas 8% dos portugueses consideram que segurança e defesa são temas prioritários para o país (na Europa, a fasquia sobe para os 15%), estando mais preocupados com o estado da saúde (39%), habitação (28%) e com o aumento do custo de vida (30%).

Para Ana Paula Pires, historiadora e professora na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade dos Açores, a chave para garantir um povo concertado com a estratégia de segurança passa por ir “para lá da espuma dos dias” e deixar de lado a “demagogia” de recusar mais despesa em defesa “porque vamos ficar sem dinheiro para pagar as pensões”.

Esta investigadora (que estuda o impacto das duas guerras mundiais em Portugal) apela aos responsáveis políticos para destacarem o “impulso de desenvolvimento económico e de inovação” e o “efeito multiplicador de emprego” que o investimento militar pode ter, nomeadamente numa economia “vulnerável e muito dependente do turismo”.

Há um impulso de desenvolvimento económico e inovação, com a indústria. Não se pode olhar apenas para o lado maléfico da destruição, da morte, associado à defesa

“A internet foi desenvolvida para fins militares e depois tornou-se aquilo que todos nós utilizamos e não podemos passar sem ela. Durante a Primeira Guerra Mundial, os anestésicos eram gases que foram desenvolvidos e depois foram aplicados às cirurgias. Portanto, não se pode olhar apenas para o lado maléfico da destruição, da morte, associado à defesa”, salienta.

Munições, a luz ao fundo do túnel

A vontade parece começar a existir, mas o investimento não pode ser feito como dantes, num modelo centrado em “empresas que tinham como único cliente o Estado”. Manuel Poêjo Torres, antigo analista e gestor de projetos da NATO, pede “maior ambição” e o apoio estatal a “start-ups” e “clusters” de defesa, mas que sejam capazes de se desenvolver e afirmar internacionalmente.

Para isso, há áreas prioritárias, onde se deve apostar desde já, nomeadamente a produção de munições, onde Portugal já foi uma referência no passado.


Durante a tomada de posse do XXV Governo, Luís Montenegro prometeu antecipar a meta dos 2% do PIB para a defesa já para este ano. Foto: José Sena Goulão/Lusa
Durante a tomada de posse do XXV Governo, Luís Montenegro prometeu antecipar a meta dos 2% do PIB para a defesa já para este ano. Foto: José Sena Goulão/Lusa

"Fomos um grande produtor de munições, toda a gente vai precisar de munições e a produção de munições não tem um cliente exclusivo. Toda a gente que usa artilharia 155 milímetros vai precisar de munições para essa artilharia. Portanto, é uma forma de sustentar uma indústria e Portugal já o fez no passado, pode voltar a fazer”, apontou.

Outra possibilidade passa por atrair indústrias de defesa que abastecem os países da NATO, mas que estão sediadas fora da aliança, como Israel ou a Coreia do Sul. Esta seria uma forma, segundo Poêjo Torres, de tornar Portugal numa “plataforma de lançamento de material de defesa”, benéfica para o país, mas também para toda a NATO, uma vez que conseguiria ter mais facilmente material que corresponde aos requisitos definidos pela própria aliança.

Nada disto se faz, contudo, sem transmitir que “a ideia de defesa e segurança nacional é uma responsabilidade de todos” e que pode impulsionar rendimentos e benefícios para todos. “Tenho a certeza que até a empresa de alfaias agrícolas, algures perdida no interior do país, terá um contributo em metalurgia que possa oferecer”, desafia.


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