Enerhodar: ocupação e fuga da cidade mais nuclear da Ucrânia

Três anos depois do início da guerra, subsistem 10 mil habitantes na cidade satélite da central nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa. Atualmente ocupada pelos russos, estes são alguns dos relatos de moradores deslocados de Enerhodar, onde se situa a central ucraniana disputada por Kiev e Moscovo.

10 abr, 2025 - 06:29 • José Pedro Frazão, enviado da Renascença à Ucrânia



Ouça a reportagem de José Pedro Frazão. Imagem: Rodrigo Machado
Ouça a reportagem de José Pedro Frazão. Imagem: Rodrigo Machado

Alyna tinha a esperança de acabar a carreira em casa. Ao fim de 30 anos, uma vaga em Enerhodar apareceu no seu caminho como os chamamentos a que as pessoas não ficam indiferentes. Uma mãe acamada há quase uma década, uma irmã sobrecarregada como cuidadora, um emprego na área de especialidade, ao pé de casa. Tinha tudo para dar certo, mas a "operação militar especial" russa invadiu o seu sonho em larga escala.

"Ninguém esperava que ao cabo de oito anos de uma guerra de baixa intensidade, a Rússia viesse a lançar um ataque desta dimensão". Sentada numa sala de aula, em pleno complexo universitário que abriga o centro dos deslocados de Enerhodar, Alyna parece ainda algo incrédula com a cronologia que ali a traz.

"Se a Crimeia, Luhansk e Donetsk queriam estar mais próximas de Moscovo, o resto da Ucrânia nem por isso. Mas sem a invasão russa de 2014, nada disto teria acontecido."

"Isto" foi a entrada massiva russa por todos os poros do sul e sudeste ucraniano, já ensanguentado por dez anos de combates, agora invadido militarmente como água que se entorna numa tábua. Alyna pensa que os ucranianos deveriam ter defendido melhor Enerhodar. "Se a fronteira tivesse sido minada e reforçada, teria havido um combate e teríamos estado preparados para a guerra".


Alyna, moradora em Enerhodar, diz que ninguém estava preparado para a invasão russa

Alyna identificou os russos "a um ou dois quilómetros de Enerhodar", no dia 26 de fevereiro de 2022. A data de entrada dos russos, em Enerhodar, é um clássico de informação e contra-informação. A 27 de fevereiro, os russos estavam próximos da cidade, relatava o presidente da câmara Dmitry Orlov que, na rede Telegram denunciava, a existência de marcas na cidade destinadas a sinalizar locais estratégicos para desembarque de tropas, com a presença de "grupos de sabotagem" na cidade.

Às 10h00 da manhã de 28 de fevereiro desse ano, o major general Igor Konashenkov declarou que as Forças Armadas da Federação Russa tinham "tomado o controlo" da cidade de Enerhodar, sustentando que os militares russos "guardavam e controlavam a área em torno da central nuclear de Zaporizhzhia", cujos funcionários "continuavam a trabalhar na manutenção de instalações e controlo da situação radioativa no modo normal".

Orlov foi negando esse controlo russo nessa mesma manhã, até confirmar que os russos estavam mesmo às portas do posto de controlo improvisado pelos ucranianos na entrada da cidade.


Dmytro Orlov, presidente da Câmara de Enerhodar
Dmytro Orlov, presidente da Câmara de Enerhodar

A 5 de março, Konashenkov insistia que o controlo russo era efetivo desde 28 de fevereiro, sublinhando que a guarda nacional ucraniana desertou dos seus pontos "ainda antes da chegada das unidades russas".

No entanto, um relatório oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia reconheceria, meses depois, em 12 de setembro de 2024, que o controlo da central nuclear só aconteceu em março.

A troca de acusações mútuas aconteceu mais tarde noutros dois grandes eventos: o rebentamento de uma zona de escritórios da central nuclear, em março de 2022, e o rebentamento da barragem de Kahkovka.

Ocupação: momento zero

Três anos depois, Orlov, agora com 39 anos, recebe-nos em Zaporizhzhia, confirmando que a ocupação começou na noite de 3 para 4 de março e que poucos militares ucranianos estavam no posto de controlo improvisado montado à entrada de Enerhodar.

"Na semana antes da ocupação, quando as cadeias logísticas da entrega de alimentos e medicamentos já estavam interrompidas - e em geral tudo estava assim - tudo funcionava de forma instável. Nessa semana os trabalhadores do setor da energia deram a cara. Foi a primeira vez que houve uma união tão grande de toda a cidade. Nesta ação de protesto contra a ocupação à entrada da cidade, provavelmente todos apareceram, exceto as crianças e os que trabalhavam em centrais nucleares e térmicas, independentemente de quaisquer narrativas políticas. No espaço de uma semana, criou-se um posto de controlo improvisado. Foi uma iniciativa puramente pacífica, não havia praticamente nenhum militar lá. Eram residentes pacíficos que saíram com bandeiras ucranianas para mostrar que não tinham medo de tanques e dos ocupantes armados", explica o autarca eleito em 2020 e entretanto nomeado por Zelensky para chefe da Administração Militar de Enerhodar.

As imagens mostram a presença de milhares de pessoas sobretudo no dia 3 de março de 2022. Quinze dias depois, o número dois de Orlov na autarquia seria detido num posto de controlo fora de Enerhodar. Só seria libertado 333 dias depois.


Oksana, 55 anos, promete passear de novo pelas ruas de Enerhodar quando a paz o permitir

A chefe de divisão da ação social estava a braços com o problema da falta de mantimentos e alimentos na cidade. Oksana, hoje com 55 anos, não imaginava sequer escapar de Enerhodar, onde o pão começou a desaparecer das prateleiras dos supermercados. A Câmara começou uma distribuição pelos mais necessitados e acamados.

"Tinha ali a minha casa, porquê sair? Tive oportunidades de o fazer, contudo as pessoas estavam a ficar e eu era chefe do serviço. Os trabalhadores eram gente pela qual eu era responsável e seria uma traição da minha parte ir embora", confessa passados três anos em Zaporizhzhia, para onde foi a maioria dos que decidiram fugir à ocupação em Enerhodar.

No início, nas primeiras semanas, os ocupantes "não se comportaram demasiado agressivamente" face aos residentes, mesmo em lojas e mercados, o que surpreendeu os habitantes. "Devem ter recebido ordens superiores nesse sentido", suspeita Oksana, que trabalhou de março a maio de 2022 sem grandes problemas.

Mas, na frente laboral, as coisas começaram a complicar-se com "representantes do governo de ocupação" a exigir lealdade à Rússia. O chefe direto de Oksana saiu da cidade, muitos começaram a ficar em casa com medo de represálias.

“Um dia chegaram ao escritório e disseram que precisavam de um novo diretor. Eu estava sozinha no fim da fila dos funcionários e, claro, fui a primeira a dar o meu apelido, os meus nomes próprios do meio e o meu cargo, que era subdiretora. E eles disseram: ‘não nos importamos, você será a chefe do nosso departamento’. Respondi que não estava preparada, que eu trabalho e tenho um emprego e não tinha qualquer intenção de o mudar. Perguntaram-me para quem trabalhava e eu disse que trabalhava para o Departamento de Proteção Social da Câmara Municipal de Energodar. Ao que ele respondeu que 'não há Câmara, não há Ucrânia, agora a Rússia é que estará aqui'.”


Vista panorâmica de Enerhodar, na região de Zaporizhia. Foto: Câmara de Enerhodar
Vista panorâmica de Enerhodar, na região de Zaporizhia. Foto: Câmara de Enerhodar

"Ir para a cave" era o medo maior em Enerhodar, conta Oksana. É sinónimo de torturas, violações, sem explicações, sem papéis. Quando lhe sugeriram que poderia ir conversar em detalhe com o comandante, esta ucraniana pressentiu o perigo e durante três dias, andou a dormir escondida em casas de amigos e colegas. Foi ao apartamento buscar rapidamente documentos e alguns objetos pessoais e dirigiu-se ao autocarro de evacuação.

Ao longo da Primavera, pelos relatos destes deslocados, também na central nuclear muitos recusavam-se a trabalhar para os russos. Alyna sentiu em abril que a pressão chegava à porta de casa.

"Agentes dos serviços de informações russos chegaram ao local onde eu morava com a minha irmã e a minha mãe. Eram dois homens com metralhadoras e agentes do FSB, que começaram a dizer que estávamos a conduzir atividades extremistas no território da Federação Russa. E que não podíamos publicar nada nas redes sociais. Foi quando a minha irmã perguntou: ‘O que é que temos aqui, a Federação Russa?’,e ele disse: ‘Sim, e estaremos aqui por muito tempo’, recorda Alyna.

Deixaria nas horas seguintes Enerhodar e a mãe, acamada. Nunca mais a veria, morreria um ano depois. Para trás ficou tudo, até as fotos de família.

Oksana mudaria de ideias de maio para julho e sairia de Enerhodar de um dia para o outro. Cortou o cabelo para não ser reconhecida nos postos de controlo. Embora "ninguém estava particularmente interessado em mim e verificassem os nossos documentos em cada barreira. Não me lembro se havia nove ou mais postos até chegarmos. Felizmente, consegui sair apenas num dia, porque as pessoas demoravam cinco, sete ou 14 dias a sair", recorda.

Ficaria dois anos na Ucrânia Ocidental até regressar a Zaporyzhia, a 120 quilómetros de estrada para Enerhodar.


Central nuclear demorará três anos até voltar a funcionar normalmente, diz Dmytro Orlov

Dmitro Orlov faz o retrato negro da realidade de Enerhodar sob ocupação, com trabalhadores da central "recrutados nas ruas", com seis meses de salário em atraso, faltas de água constantes e jardins de infância com crianças "a inculcar tópicos militares". As alegações não podem ser aqui comprovadas de forma independente

Central Nuclear = Paz + 3 anos

As autoridades deslocadas em Zaporizhzhia estimam que 10 mil pessoas (um quinto da população antes da invasão) vivam em Enerhodar, das quais quatro mil trabalham na central nuclear que ocupava 11 mil trabalhadores até fevereiro de 2022.

"É necessário restaurar a barragem de Kakhovka. Realizar uma inspeção abrangente de tudo o que está na estação, tudo o que lá roubaram e muitas coisas que simplesmente precisarão de ser substituídas, renovando as qualificações das pessoas. São processos que não podem ser feitos num ou dois meses. A central nuclear não está a funcionar há muito tempo, as linhas de energia estão quase todas destruídas", revela Orlov, que estima que a Ucrânia precisa de três anos para repor a situação em caso de paz. Depois da invasão, a barragem de Nova Kavkova ruiu, o nível do Rio Dniepr baixou, pondo em causa os circuitos de refrigeração.

Uma casa à espera da paz

Até lá os deslocados de Enerhodar vão sabendo das suas casas, da destruição, da vida na cidade sob ocupação. Oksana, por exemplo, sabe que quando não há corte de eletricidade, há luz na sua casa de Enerhodar.

"Vive lá alguém. Não conheço essas pessoas. Disseram-me que é um casal jovem, um rapaz e uma rapariga que estão a planear formalizar a sua relação e que estão à espera de ganhar um apartamento. Compreendo que hoje em dia simplesmente não nos dão apartamentos. E eu tenho este medo de que eles gostem do meu apartamento e queiram ficar lá", sorri Okana, que promete passear de novo pelas ruas de Enerhodar quando a paz o permitir.

"Nunca planeei mudar-me para lado nenhum. Gostei sempre muito da nossa cidade. Pequena, confortável, tranquila, calma, bonita, verde. É indescritível. Já não há lugares como aquele."


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