Desmantelamento da Kafala no centro das reformas
“Esta é a mudança mais importante, está no centro de todas as reformas laborais realizadas nos últimos quatros anos”, diz Max Tunon, sem qualquer dúvida, sobre o desmantelamento do sistema Kafala, de patrocínio da mão de obra estrangeira. Um sistema que tornava os trabalhadores totalmente dependentes dos seus empregadores, que não lhes permitia a mudança de emprego e potenciava o trabalho forçado e os abusos. Ou que dava ao empregador o poder de deportar o trabalhador migrante quando queria.
Para o responsável da OIT em Doha, como os trabalhadores já podem mudar de emprego, também podem negociar melhores condições de trabalho e salários. Por outro lado, os empregadores – a bem ou a mal, com punições quando violam a lei – também são incentivados a melhorar as condições de trabalho.
“350 mil trabalhadores já mudaram de emprego nos últimos dois anos, desde que a lei foi aprovada. Mas há desafios na implementação. Ainda há empregadores que querem impedir os migrantes de mudar de emprego e ameaçam-nos com a deportação, por exemplo.”
A Amnistia Internacional aplaude as reformas que estão a ser feitas, nomeadamente o fim do sistema Kafala. Mas também alerta para algumas dificuldades que persistem no terreno.
Foi estabelecido um salário mínimo para todos os setores, incluindo o trabalho doméstico, e a obrigação das empresas pagarem através de bancos do Qatar, sob controlo do Ministério do Trabalho. Além disso, as empresas têm de providenciar alojamento e alimentação aos trabalhadores migrantes ou pagar as verbas correspondentes, definidas pelo Governo.
O acesso à justiça é outra das conquistas para os trabalhadores, que agora se podem queixar ao Ministério do Trabalho sobre abusos das empresas.
Em resposta às organizações não-governamentais, que reivindicam do Governo do Qatar o pagamento de compensações aos trabalhadores feridos ou famílias das vítimas, o ministro do Trabalho respondeu que não iria dar essa compensação. Mas, para Max Tunon, há alguma confusão na interpretação das palavras do ministro, “porque ele disse que o ministério pagaria compensações a todos os casos que lhe chegassem e que estivessem relacionados com acidentes de trabalho ou falta de pagamento de salários. É, em primeiro lugar, responsabilidade dos empregadores, mas o Governo está aberto a pagar a compensação. Há inclusive um fundo criado em 2018 que já pagou 320 milhões de dólares em salários”.
Mais difícil de compensar, admite o representante da Organização Internacional do Trabalho, são os casos em que os trabalhadores já regressaram aos países de origem. “É difícil, mas tem de se ver o que pode ser feito”, sublinha.
Mudanças vão continuar depois do Mundial
A Organização Internacional do Trabalho vai continuar no Qatar após o Campeonato do Mundo, tem aliás um escritório permanente em Doha. À Renascença, Max Tunon apontou três grandes prioridades para os próximos anos.
“Queremos que todos os trabalhadores beneficiem da reforma do sistema Kafala porque ainda há muitos empregadores que pressionam quem quer mudar de emprego. Também queremos garantir o pagamento de salários em atraso a quem não está a receber e facilitar o acesso a canais onde podem apresentar as reclamações porque podem levar muito tempo a recuperar o seu dinheiro.”
E finalmente, os trabalhadores domésticos. “É um grupo mais vulnerável em qualquer parte do mundo. A legislação garante-lhes direitos iguais, nomeadamente no salário, mas quando chegamos à duração do tempo de trabalho, constatamos que há quem não tenha uma folga semanal. Isso tem de mudar”, defende a OIT.
Apesar de as mudanças ainda estarem em curso, Max Tunon considera que o Qatar é uma referência e pode ser um exemplo para outros países da região do Golfo Pérsico.