Foto: Clemens Bilan/EPA
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"Ampel-Aus", o fim do semáforo, foi a palavra do ano na Alemanha. Em Portugal, uma expressão parecida seria o "fim da geringonça". O governo alemão, conhecido como a "coligação semáforo", colapsou. Há pelo menos um ano que os partidos na coligação governamental trocavam farpas e o SPD, os Verdes e os liberais do FDP entregaram oficialmente os papéis para o divórcio no mês passado. O Parlamento federal alemão confirma a separação esta segunda-feira.

Desentendimentos "irreconciliáveis" entre o chanceler Olaf Scholz, do SPD, e o ministro das Finanças, Christian Lindner, terão levado à demissão de Lindner, em novembro. Em tom confrontativo - pouco comum em Scholz - o chanceler disse ter perdido a confiança no parceiro do FDP. "Fui obrigado a dar este passo para proteger o nosso país de possíveis danos. Precisamos de um governo eficaz, com força para tomar as decisões necessárias", afirmou Scholz.

O contexto global torna a situação ainda mais grave, acrescentou o chanceler: "Há uma guerra na Europa, a tensão aumenta no Médio Oriente e a nossa economia está estagnada". Mas o que provocou esta crise?

"It's the economy, stupid!"

No centro do desentendimento na coligação está sobretudo uma coisa: dinheiro.

O SPD, de Scholz, e os Verdes pediam mais investimento público - e mais endividamento estatal - para alavancar a economia. Já Lindner e os liberais do FDP seguraram firmemente o travão da dívida, exigiram menos impostos para as empresas e cortes em subsídios sociais e ambientais. O SPD e os Verdes recusaram as propostas por uma questão de princípios.

Pouco depois da queda do governo de coligação, Christian Lindner, líder dos liberais, explicou no Parlamento as razões da sua intransigência sobre disciplina orçamental. "A política mais social de todas é aquela que garante que as pessoas não têm de recear perder os empregos", justificou.


Foto: Filip Singer/EPA
Foto: Filip Singer/EPA

No entanto, Olaf Scholz acusou o ministro de "irresponsabilidade" por se recusar a chegar a um compromisso, recorrendo a "táticas partidárias mesquinhas" em vez de pensar no bem de todos. Sobretudo porque, como disse Scholz, a guerra na Ucrânia trouxe problemas acrescidos às empresas e aos cidadãos alemães. Os custos de produção aumentaram. A economia "precisa de apoio" urgente.

Também já não falta muito até Donald Trump regressar à Presidência dos EUA. Trump prometeu aumentar as tarifas aduaneiras - incluindo para automóveis, o produto mais exportado pela Alemanha - e o futuro das relações comerciais e diplomáticas entre os EUA e a Alemanha é incerto.

O fim da "era dourada" alemã

Até há pouco tempo, tudo parecia correr de feição à Alemanha. O país parecia ter encontrado a fórmula mágica para o crescimento económico: custos de produção equilibrados, consumo interno moderado e receitas chorudas das exportações.

A energia barata da Rússia, aliada ao carvão e às centrais nucleares, permitia controlar os custos de produção. Os salários dos trabalhadores eram altos, mas dentro de limites estabelecidos, e os alemães não se endividavam de forma excessiva. A China providenciava artigos baratos enquanto a Alemanha vendia mercadoria de ponta, cara, mas ainda assim competitiva, com o selo de qualidade "Made in Germany".

Essa foi a chamada "época dourada" alemã, com a indústria automóvel na dianteira. Mas os tempos são outros. A economia estagnou, e o setor está em crise.


Nos últimos meses, a Volkswagen ameaçou cortar milhares de postos de trabalho, reduzir salários e fechar fábricas na Alemanha. "Estamos todos assustados", relatou uma funcionária aos jornalistas durante um protesto em Hannover, no início do mês.

"Muitas das pessoas que estão quase a reformar-se têm medo de perder o emprego. Eu sou mãe de dois filhos. Desloco-me mais de uma hora todos os dias para vir trabalhar para aqui. Adoro o meu trabalho. Não o quero perder."

Não é só a Volkswagen que tem reportado dificuldades. Em novembro, a fornecedora de peças Bosch anunciou que, nos próximos oito anos, deverá extinguir 5.500 postos de trabalho, sobretudo na Alemanha. A Schaeffler, outra fornecedora do setor, anunciou que deverá despedir cerca de 4.700 pessoas na Europa e fechar duas fábricas. A norte-americana Ford revelou que pretende eliminar 4.000 postos de trabalho, sobretudo na Alemanha e no Reino Unido. A francesa Michelin planeia encerrar duas fábricas; a medida deverá afetar 1.250 trabalhadores.

O admirável mundo elétrico

Vários fatores explicam esta crise no setor automóvel: os custos de produção dispararam nos últimos anos, a procura europeia diminuiu e a concorrência asiática é cada vez mais forte. O emblemático carro alemão parece perder terreno para uma nova geração de veículos.

A China é atualmente o maior produtor mundial de carros elétricos, ultrapassando a Alemanha. O investimento chinês no desenvolvimento de baterias e software durante mais de uma década está a dar frutos.

Segundo Thomas Puls, do Instituto da Economia Alemã em Colónia (IW), a China e outros concorrentes da Alemanha partiram em vantagem na corrida pelos veículos elétricos: "Tanto a Tesla como as fabricantes chinesas, em particular, têm as suas origens na indústria elétrica. E há uma grande diferença entre construir um veículo como empresa "elétrica" - comprando a fornecedores externos os componentes de que não se tem sequer ideia, como o chassis - e tentar 'eletrificar' um produto existente", como fazem as fabricantes alemãs tradicionais.

"É sabido que a integração do software é um problema para as fabricantes tradicionais", refere Puls em declarações à Renascença.


Os críticos argumentam que a indústria automóvel alemã se encostou demasiado à fórmula de sucesso do passado e a milhares de milhões de euros em subvenções estatais. Mas o setor diz que não é bem assim.

Simon Schütz, porta-voz da Associação da Indústria Automóvel (VDA, na sigla em alemão), garante que as fabricantes não têm estado de braços cruzados. "Estamos a fazer a maior transformação de sempre rumo à mobilidade elétrica. Investimos somas recorde", afirma Schütz.

Entre 2024 e 2028, os fabricantes e fornecedores da indústria automóvel alemã tencionam investir globalmente cerca de 280 mil milhões de euros em investigação e desenvolvimento. Outros 130 mil milhões de euros serão destinados à construção e conversão de fábricas. "Estamos determinados", resume o porta-voz da VDA.

Consequências para Portugal

Esta transformação no setor afetará seguramente países como Portugal, que fabrica carros e peças para marcas alemãs. Há também um prazo a cumprir: até 2035, a União Europeia quer acabar com as vendas de veículos novos com motores a gasolina e gasóleo. As empresas terão de se adaptar.

"Se é [uma empresa] especializada em peças para motores a combustão, vai ter problemas", comenta o economista Thomas Puls.

Muito dependerá da dimensão do negócio e da flexibilidade dos líderes empresariais, conjetura Puls. "Há grandes fornecedores alemães que se estão a afastar dessas áreas de negócio [relacionadas com o motor a combustão] e investem em produtos elétricos e eletrónicos. Mas se for um fornecedor mais pequeno, sem condições para abrir novas áreas de negócio, provavelmente o mais conveniente será procurador um novo mercado", sugere.

Puls sublinha que é imperativo estar preparado, pois o mercado do motor a combustão "continua a encolher". Paris, por exemplo, criou zonas sem carros, à semelhança de outras cidades europeias. "É claro que isso não ajuda à vendas", diz o economista.


Simon Schütz, da Associação da Indústria Automóvel alemã, mostra-se otimista. A transformação elétrica é possível, ela já começou, mas todos têm de fazer os trabalhos de casa: "Acredito que as empresas já entenderam isso", afirma o porta-voz.

O caminho passará por aumentar a produtividade, aprimorar a tecnologia, pensar mais no consumidor asiático, desenvolver as soluções neutras em carbono, reduzir o preço dos automóveis. Mas aqui, a política alemã também tem um papel a desempenhar, acrescenta Schütz.

"Location, location, location"

A indústria automóvel aguarda ansiosamente pelas eleições antecipadas na Alemanha, previstas para 23 de fevereiro. Os empresários querem clareza. Já têm uma lista de exigências pronta para o próximo governo: Querem impostos mais baixos, energia mais barata e menos burocracia, mais parcerias sobre matérias-primas e acordos de comércio livre.

São medidas cruciais para garantir a competitividade da localização "Alemanha", evitando que as empresas se desloquem para outros países, refere Schütz. "É claro que a transformação para a mobilidade elétrica significa a perda de determinados empregos. A questão é onde serão criados os empregos do futuro", explica o porta-voz da Associação da Indústria Automóvel.

"Com áreas como o software, e outras áreas cada vez mais importantes para o setor, temos de perceber onde serão feitos os investimentos e onde serão criados os empregos do futuro. Gostaríamos que fosse aqui. Essas decisões de investimento estão a ser tomadas neste preciso momento. Por isso é importante e urgente que as questões da localização e competitividade sejam abordadas agora, para garantir que esses empregos sejam criados aqui."


Alemães enfrentam uma campanha focada nas dificuldades da economia do país. Foto: Filip Singer/EPA
Alemães enfrentam uma campanha focada nas dificuldades da economia do país. Foto: Filip Singer/EPA

A CDU, o partido à frente nas sondagens para as eleições de fevereiro, reconhece que esse é um problema importante a resolver. Friedrich Merz, líder dos conservadores, lamenta que a Alemanha já não seja "suficientemente competitiva".

Algumas soluções possíveis: abordar investidores privados, reduzir a burocracia e aprovar projetos mais rapidamente, sugeriu Merz, no mês passado, em entrevista à rádio alemã Deutschlandfunk.

Será isso suficiente? Será prioridade? Para o próximo chanceler alemão, as questões por resolver são muitas. Além da crise no setor automóvel e da estagnação económica, a ascensão do populismo no país, a falta mão de obra qualificada, o atraso na modernização de infraestruturas e na digitalização, e poderá ser necessário aumentar o orçamento para o setor da defesa e segurança. Quando o novo chanceler tomar posse, Donald Trump já estará de volta à Casa Branca. O Presidente eleito norte-americano ameaçou deixar desprotegidos os aliados que não cumpram com os seus compromissos militares.


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