Crianças de Gaza "estão esfomeadas, desesperadas", mas ainda sonham "ser astronautas"

Há carga pronta para encher nove mil camiões de mantimentos, mas está impedida por Israel de entrar em Gaza. Há alimentos a estragar-se de um lado, enquanto do outro encerram distribuições de comida por falta de recursos. A Save the Children estima que quase um milhão de crianças enfrentem um risco de fome severa e relata à Renascença que há pais a "misturar comida com relva" para esticar o pouco que sobra.

17 mai, 2025 - 08:55 • Catarina Santos



Vídeo: Há pais a "misturar comida com relva" ou a dar ração animal aos filhos, relata à Renascença diretora humanitária da Save the Children

Desde 2 de março, as autoridades israelitas impedem qualquer entrada de comida, combustível ou medicamentos na Faixa de Gaza. Às clínicas da Save The Children no terreno chegam cada vez mais casos de crianças a sofrer de malnutrição.

“Há milhares e milhares de crianças que sofrem de malnutrição, mas todas as crianças em Gaza têm fome e todas estão em risco sério de fome”, explica Rachael Cummings, diretora humanitária da Save the Children.

Numa videochamada a partir de Gaza, onde trabalha há mais de um ano, a responsável conta à Renascença que “não há, literalmente, comida disponível”. Para “tentar engrossar os poucos mantimentos que têm”, os pais “recorrem a métodos inacreditáveis, como misturar comida com relva ou tentar encontrar comida para animais para dar aos filhos”.


Natural do Reino Unido e enfermeira de formação, Rachael fala numa situação de “absoluto desespero”. “Se uma criança malnutrida adoece com diarreia ou pneumonia – e claro que o ambiente à nossa volta é propício a surtos destas doenças --, pode morrer muito rapidamente”.

A organização gere duas clínicas e vários postos de nutrição, educação e serviços de proteção infantil, em Deir al-Balah (centro) e Khan Younis (sul). O serviço que conseguem prestar, considera a responsável, é “uma gota no oceano” tendo em conta as necessidades no território -- e está em risco de deixar de ser possível.

Depois do cessar-fogo entre janeiro e março, a situação humanitária no terreno não parou de se agravar. Instituições que cozinhavam e distribuíam comida, como a World Central Kitchen, tiveram já de parar as operações por falta de mantimentos.

Os mercados, afirma, “estão praticamente vazios” e o que sobra é “extremamente caro”. Dá o exemplo de um quilo de tomates, que pode custar “algo como 10 dólares -- mas ninguém tem sequer 10 dólares”.

Comida para dois milhões parada na fronteira

Enquanto isso, “há literalmente milhares e milhares e milhares de camiões à espera, às portas de Gaza”, não só com comida, mas com “provisões médicas, equipamento para garantir água e saneamento básico, material para abrigos”, lembra a enfermeira. “Estamos profundamente preocupados, como toda a comunidade humanitária em Gaza, porque os recursos são finitos” -- incluindo o combustível, fundamental para as deslocações das equipas e para alimentar os geradores que permitem o funcionamento dos serviços.

De acordo com o Gabinete das Nações Unidas para Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA), há nove mil cargas com provisões vitais prontas para entrar em Gaza. Mais de metade contém produtos alimentares que poderiam suprir as necessidades de dois milhões de pessoas durante meses.


Gaza. Quase meio milhão de pessoas em nível catastrófico de fome

Os bombardeamentos desta semana vieram agravar ainda mais as condições para quem sobrevive no enclave. “Só nos últimos dois dias, cerca de 20 mil pessoas tiveram novamente de se deslocar”, afirma Rachael Cummings, o que também comporta riscos acrescidos para as crianças.

"Durante estas deslocações em massa e evacuações, as crianças ficam extremamente vulneráveis e em risco de se perderem”, acabando muitas vezes sozinhas. Quando chegam às mãos da Save the Children, os técnicos tentam “apoiá-las o melhor que podem”, dentro do quadro de escassez de recursos. Mas muitas não têm sequer este apoio, porque estão em áreas onde os trabalhadores humanitários não conseguem chegar.

Todos os quadrantes da vida destas crianças foram afetados: não têm educação formal desde o início do conflito, há 19 meses, não têm estabilidade, não têm casa, perderam familiares – e agora praticamente não têm comida. “Claro que isso tem um impacto imediato, a médio e longo prazo, no desenvolvimento cognitivo das crianças e no seu crescimento”, sublinha a enfermeira. Um impacto que é inegavelmente físico, mas que será ainda mais difícil de medir a nível psicológico.

“Precisamos que nos deixem fazer o nosso trabalho”

A Save the Children tem cerca de 200 funcionários a trabalhar na Faixa de Gaza. “Desde que as hostilidades retomaram”, Rachael tem tido cada vez mais dificuldade em “garantir a segurança” da equipa, que precisa de se mover pelo território para conseguir chegar “às crianças e às suas famílias”, e dos profissionais de saúde que operam nas clínicas.


Crianças palestinianas deslocadas recolhem comida em Jabalia, norte de Gaza, a 9 de maio de 2025. Foto: Mohammed Saber/EPA
Crianças palestinianas deslocadas recolhem comida em Jabalia, norte de Gaza, a 9 de maio de 2025. Foto: Mohammed Saber/EPA
Israel intensificou esta semana os ataques à Faixa de Gaza, forçando novas deslocações em massa. Foto: Ammar Awad/Reuters
Israel intensificou esta semana os ataques à Faixa de Gaza, forçando novas deslocações em massa. Foto: Ammar Awad/Reuters


Em novembro de 2024, um funcionário da Save the Children foi morto na sequência de um ataque israelita em Khan Younis, quando regressava da mesquita, deixando a mulher e uma filha de três anos. Foi a segunda baixa da organização, depois de um outro trabalhador ter sido morto, com a mulher e quatro filhos, logo no mês inicial do conflito, em outubro de 2023, quando o edifício onde residiam foi atingido por bombardeamentos israelitas.

Desde 7 de outubro de 2023, pelo menos 430 trabalhadores humanitários foram mortos em Gaza, lê-se no relatório de 14 de maio do OCHA. Até essa data, a ONU contabilizava mais de 52 mil palestinianos mortos no enclave, tendo como base os dados do Ministério da Saúde de Gaza.

“Os trabalhadores humanitários deveriam ser protegidos, ao abrigo da lei humanitária internacional”, recorda Rachael, “tal como as escolas, hospitais e instituições de saúde”. Contudo, sublinha, “70% das infraestruturas de educação de Gaza foram danificadas ou destruídas” e ainda há dias mais um hospital foi atingido.

“Precisamos que nos deixem fazer o nosso trabalho”, sustenta, recordando que, até agora, a reação da comunidade internacional “não funcionou”. Num artigo publicado recentemente, Rachael vaticinava o “falhanço coletivo” da humanidade, espelhado no número crescente de mortes em Gaza. “A comunidade internacional deve usar todos os meios disponíveis para defender a lei internacional”, escrevia então. Caso contrário, defendia, “não se trata apenas de inação, mas de cumplicidade”.


Todos os dias há, por isso, decisões impossíveis a tomar. “Antes de os membros da minha equipa deixarem as suas casas ou abrigos, têm de encontrar água, comida, alguma lenha para a noite. E tudo isso antes de fazerem uma viagem difícil até ao escritório.”

O custo pessoal é difícil de medir, mas algumas histórias que contam a Rachael ajudam-na a ter uma ideia – e incluem crianças a pedir “por favor não vás trabalhar hoje, papá, queremos-te aqui, queremos-te em casa”.

“O que me dá esperança”, congratula-se a responsável, é “a determinação do staff”, que se apresenta ao trabalho “todos os dias, para servir as crianças”.

Com mais de 20 anos de experiência no setor humanitário, Rachael Cummings passou já por cenários como o Bangladesh, Serra Leoa ou Ucrânia. Frisa que “todos os contextos são diferentes”, mas admite que “nunca tinha vivido nada” como o que está a testemunhar em Gaza. Acredita que o enclave está a atravessar um “ponto de inflexão” e que apresenta, hoje, “o ambiente mais desafiante para uma criança”.

Com “70% do território de Gaza” transformado em “área interdita”, destinada a operações militares, não sobram “espaços seguros para as crianças”, sustenta Rachael. “As pessoas não têm para onde ir.”

Um cenário que poderia fazer antever as condições ideais para a estratégia defendida por ministros do governo israelita: a criação de corredores que permitam o acolhimento de palestinianos noutros países vizinhos – como, de resto, o próprio presidente dos Estados Unidos já chegou a propor.


Mas, por maior que seja o desespero no terreno, Rachael não acredita que os habitantes de Gaza deixem o território de ânimo leve. “As pessoas com quem falo estão comprometidas com Gaza”, diz sem hesitação. “Esta é a terra deles, é a casa deles. Estão decididos a ficar aqui, querem estar aqui para reconstruir Gaza, para que os seus filhos sejam educados em Gaza”.

Tiveram um vislumbre do que isso poderia ser durante o cessar-fogo, de janeiro a março, quando milhares de famílias regressaram às suas terras natais, ao que restava das suas casas e começaram a imaginar a reconstrução. Foi nesse período que Rachael Cummings ouviu a resposta que mais a surpreendeu – e que lhe devolveu mais esperança.

A enfermeira estava num dos espaços para crianças que a Save the Children tem em Khan Younis. Naquele dia, tinham passado por ali umas 60 crianças para participar em “atividades recreativas, de aprendizagem, jogos que permitissem às crianças serem crianças”. No fim, fez-lhes a pergunta: “O que querem ser quando forem grandes?”

As respostas “foram iguais às de qualquer criança, em qualquer parte do mundo: havia professores, enfermeiros, médicos, advogados, alguém que queria ser astronauta...”, recorda, sorridente. “Eles tinham esperança no futuro.”

“Creio que é importante as pessoas lembrarem-se disto: as crianças em Gaza estão sempre com fome, estão desesperadas, mas mantêm a esperança”, sublinha. Na leitura de Rachael, isto cria uma obrigação adicional a todos os trabalhadores humanitários. “Nós também temos de manter a esperança, para lhes conseguirmos aliviar o sofrimento -- e também para chegarmos ao ponto em que seremos capazes de reconstruir Gaza com os palestinianos.”


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