E se a Rússia começar uma guerra pelo Atlântico? Os riscos de uma ameaça física e cibernética para Portugal

O maior risco é no leste da Europa, mas a hipótese de ver uma ofensiva começar por Portugal ou Espanha não está totalmente afastada. Se isso acontecer, as atenções vão virar-se principalmente para o campo digital e cibernético – embora isso não apague a defesa antiaérea e antimíssil ainda insuficiente.

17 jun, 2025 - 20:12 • Alexandre Abrantes Neves , Salomé Esteves (mapas)



O que acontece a Portugal se a NATO entrar em guerra? Ilustração: Salomé Esteves/RR
O que acontece a Portugal se a NATO entrar em guerra? Ilustração: Salomé Esteves/RR

Não é o cenário mais provável, mas está dentro dos medos palpáveis da NATO. Se a Rússia não quiser ficar pela Ucrânia e concretizar a ameaça que anda a cozinhar desde a invasão da Ucrânia em 2022, a entrada para uma ofensiva na Europa pode fazer-se pelo Atlântico, incluindo por Portugal. A explicação é estratégia simples – quando o foco está num só lado, os restantes locais começam a ser presas apetecíveis.

“Quando a NATO está a empregar planos de defesa para controlar o leste, existe todo um flanco ocidental que continua a estar defendido, mas não tem a mesma atenção que tem o leste. Pode haver pressão sobre uma frente ocidental, comprometendo a segurança do Atlântico Norte entre Reino Unido, Espanha, Portugal e Estados Unidos da América”, aponta Manuel Poêjo Torres, antigo analista da Aliança Atlântica.

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Se tal acontecer, o mais provável é que o conflito se desenrole paralelamente em duas frentes, com uma a ocidente e outra a leste, junto da Ucrânia e da Polónia. O objetivo não é difícil de compreender: pressionar as tropas por todos os lados para as enfraquecer: “É uma forma de dividir para conquistar”, resume Poêjo Torres.

Esta ameaça não é nova dentro da NATO e promete ser um dos múltiplos cenários que vão ser analisados na cimeira do final deste mês nos Países Baixos – ainda para mais quando o secretário-geral da Aliança Atlântica, Mark Rutte, já admitiu várias vezes a possibilidade de haver um ataque russo até 2030.


Na perspetiva de Francisco Proença Garcia, tenente-coronel na reserva e diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica (IEP-UCP), se a Rússia optar por Portugal, a guerra não vai começar nas ruas, mas num espaço pouco palpável e onde a Europa demora a responder.

Eles têm uma tecnologia fantástica no ciberespaço, superior à que nós temos na União Europeia. Esse outro espaço de batalha de que nós, normalmente, não nos apercebemos – porque é cibernético e são zeros e uns – é constante”, clarifica.

Para o coronel Assis Barbas, diretor do Curso de Defesa Nacional e investigador em cibersegurança, as ameaças neste domínio vão ser um aprofundamento dos acontecimentos de que, por vezes, já ouvimos falar, como “ciberataques a infraestruturas críticas, como hospitais” ou tentativas de intromissão em atos eleitorais, como aconteceu este ano na Roménia.

Já quanto aos famosos cabos submarinos (que abastecem as redes de internet), este militar aponta que a ameaça existe, mas que aí o Kremlin vai ter de ser mais pragmático e cauteloso.


“É um risco que nos afetará a nós, mas também a eles. Se nos afeta a forma de comunicação, a eles acaba a afetar a forma de conseguir obter informações. É algo que os decisores estratégicos terão de ter em consideração”, acredita.

Este é o resultado final da chamada “guerra cognitiva” que a Rússia tenta lançar há anos na Europa, com desinformação e propaganda, para gerar “desconfiança dos cidadãos na comunicação oficial” e semear perceções negativas sobre os governos e as organizações internacionais.

De zero a dez, diria que a probabilidade de se concretizar uma ameaça é um oito. Só nos falta a ameaça física, que espero que não cheguemos lá”, defende Proença Garcia.

Os nossos ares estão protegidos?

A ofensiva física no Atlântico pode ser a última opção na lista de tarefas russa, mas o Kremlin não a esqueceu e prova disso são as inúmeras missões de patrulhamento a navios russos nas águas portuguesas.


Manuel Poêjo Torres, antigo analista da NATO, alerta que "o flanco ocidental está a ficar desprotegido". Foto: Marta Pedreira Mixão/RR
Manuel Poêjo Torres, antigo analista da NATO, alerta que "o flanco ocidental está a ficar desprotegido". Foto: Marta Pedreira Mixão/RR

Desde o início da guerra na Ucrânia, e segundo números avançados pelo chefe do Estado-Maior da Armada ao jornal Público, já foram registados 143, sendo que, em mais de 20%, houve suspeitas de espionagem. Também em abril deste ano, as forças do Reino Unido intercetaram aviões russos que tentavam entrar no espaço aéreo da NATO. “Estão a testar a nossa reação”, acredita Proença Garcia, que durante vários anos foi também professor e investigador na Academia Militar.

Estes exercícios militares sem autorização têm deixado as agências de inteligência europeias cada vez mais atentas e articuladas com as forças de segurança e a Polícia Judiciária se for preciso agir. Ainda assim, é impossível reduzir a ameaça a zero, até porque o aumento da tensão costuma trazer maiores perigos de infiltração e sabotagem de espiões russos. Se forem bem-sucedidos, o terreno para uma ameaça física fica facilitado, não tanto por terra e por mar (“alguém ia reparar”), mas através de ataques aéreos.

Todas as cidades da Europa estão protegidas por uma coisa que se chama ‘missile defense’. É um projeto da NATO que está em vigor desde 2021 e protege as cidades com mais de 120 mil habitantes, mas só para mísseis não hipersónicos”, clarifica o diretor do IEP-UCP.


Nessa hipótese, e tal como na maioria dos conflitos, os especialistas apontam que os principais alvos serão militares (nomeadamente as bases aéreas e navais e os quartéis de maior dimensão), os locais com maior densidade populacional, como Lisboa e Porto, e os portos estratégicos de Sines e Leixões. “É uma forma de congelar a movimentação de retaliação e de defesa do próprio país”, explica Poêjo Torres.

Mas o risco não fica por aí, cruza os mares e chega a duas áreas no meio do Atlântico, que podem parecer mais desprotegidas e um alvo mais fácil de atacar – os Açores e a Madeira.

“São dois arquipélagos vulneráveis a ameaças submarinas, aéreas e estão vulneráveis a cercos que impossibilitam o reabastecimento de bens de primeira necessidade. É mais difícil cercar um território no norte da América do Sul do que um arquipélago no Atlântico. É necessário investir numa lógica de garantir a segurança do nosso triângulo de ferro. Descurar os Açores ou a Madeira é uma receita para o desastre”, avisa o especialista em geodefesa.

As lições da pandemia

A partir do momento em que seja desencadeada uma ofensiva contra a NATO, o país transforma-se em muito daquilo que vivemos na pandemia: restrições à circulação, reposição de fronteiras, controlo dos espaços aéreo e marítimo, reforço do policiamento e de militares nas grandes malhas urbanas, teletrabalho e telescola, sempre que necessário.


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Consoante o nível e a proximidade de ameaça, Portugal pode ou não entrar em estado de emergência ou estado de sítio, ao mesmo tempo que também começam a ser montados sistemas de sirenes e alertas e se inicia a construção de abrigos e preparação de outros já existentes.

Estes são os pontos gerais do protocolo que Manuel Poêjo Torres diz já estarem definidos, mas que não resultam de um plano de defesa, como já existe noutros países. A razão, aponta, é a falta de vontade política.

“Existe um plano de proteção civil, que funciona, acima de tudo, para organizar a sociedade em caso de emergências e de catástrofes naturais. Portugal ainda não tem um programa de defesa total, porque, para a liderança política dos portugueses, não existe ameaça à integridade do território português. Mas isso é uma interpretação política que pode mudar como nas próximas eleições”, assinala.

Seja em Portugal, pelo norte (pelos Bálticos ou pela Finlândia) ou no leste com a Polónia, uma coisa é certa: a resposta das forças da NATO será “capacitada”, em tempo útil e “suficiente para conter a ofensiva”. Mas também não será imediata.


A ativação do artigo 5.º - a superpoderosa cláusula que estipula que um ataque contra um membro da Aliança Atlântica é considerado um ataque contra todos – depende sempre de um pedido formal, com várias etapas, complexas e que exigem consenso.

Em primeiro lugar, tem de ser pedida, por parte do país atacado, uma consulta ao artigo 4.º que, na prática, vai obrigar a uma reunião entre as nações para discutir a ameaça à integridade territorial, independência política ou segurança. Só nesse encontro – no chamado Conselho do Atlântico Norte, o mais importante órgão de decisão política da aliança – é que se discute a ativação do artigo 5.º e o envio de elementos das forças de resposta da NATO para as zonas mais críticas.

Nada na NATO obriga as nações a enviarem para as diferentes frentes de combate tudo o que têm. Aliás, é uma má prática. Uma boa prática é colocar o armamento certo em função das ameaças, garantido que existem reservas estratégicas. A guerra, mais tarde, pode multiplicar-se e as nações ficam desprotegidas”, salienta Poêjo Torres.

E há plano para os 2% do PIB?

Por um lado, a ameaça híbrida, por outro, o compromisso público de colocar o investimento em defesa os 2% do PIB ainda este ano. O governo é cada vez mais pressionado por vozes no setor para apresentar um plano de investimento em defesa, que deve chegar apenas depois da cimeira da NATO.

De zero a dez, diria que a probabilidade de se concretizar uma ameaça é um oito. Só nos falta a ameaça física, que espero que não cheguemos lá

Para Manuel Poêjo Torres, o essencial é que o governo se foque em construir uma estratégia que permita aumentar as capacidades do país em várias frentes, nomeadamente na defesa antiaérea, antimíssil e da costa portuguesa.

“Fazia a diferença termos radares de última geração? Fazia. Fazia a diferença termos capacidades de dissuasão com bombardeiros estratégicos furtivos? Fazia. Fazia a diferença termos sistemas de mísseis, sistemas antimísseis e antiaéreos de última geração? Claro que fazia”, defende, pedindo também um investimento especial em drones que permitam à Marinha “neutralizar ameaças”.

Na perspetiva de Francisco Proença Garcia, a prioridade também tem de passar pelos recursos humanos militares. Além de um “vencimento digno”, as condições de trabalho nas forças armadas devem ser pensadas de uma forma mais ampla, pensando na “motivação, principalmente dos jovens, através de missões internacionais”.

Quanto à eventual reintrodução do serviço militar obrigatório, este académico recusa que essa seja uma possibilidade, salientando que “precisamos de tropas profissionais”. Ainda assim, o sistema atual, apenas com o Dia da Defesa Nacional, é “para mudar”.


“Eu criava um serviço de prestação à comunidade de todos os jovens, obrigatório, mas pode ser nos bombeiros, a ajudar os mais velhos ou mais novos ou pode ser num serviço militar, se eles quiserem. Depois de os jovens terem esta noção de servir a sociedade e não só de querer direitos, penso que temos uma sociedade mais resiliente”, defende.

No que toca ao domínio cibernético, Assis Barbas insta o governo a aprovar finalmente a Estratégia Nacional de Cibersegurança 3.0, para motivar as empresas a consciencializarem-se e a adotarem protocolos internos de defesa.

“É um problema de liderança e de governança. É fundamental trazer as lideranças das organizações que gerem infraestruturas críticas e de instituições públicas para incorporarem no seu ADN e na sua cultura organizacional este domínio. Não é possível o Estado garantir uma total segurança em todo o lado e todo o tempo”, considera.


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