Vícios, cultura e raízes
Daniela Ferreira, 25 anos, andava à procura de casa em Lisboa há dois anos; estava a viver com a filha em casa dos pais, após se ter separado do companheiro, mas queria recuperar a sua independência. Em agosto do ano passado, encontrou um T1 em Alcântara, por 139 mil euros. “Uma pechincha”, tendo em conta os preços de mercado atuais. Por isso, decidiu comprar, pedir crédito.
“Cresci em Oeiras, já tinha alugado casas em Lisboa. Comecei por alugar um quarto em Benfica, em 2015. Pagava 200 euros por um quarto, sem recibos.” Quando foi viver com o ex-companheiro, mudou-se para um T1 em Alvalade, um rés-do-chão, a pagar 800 euros. “Uma diferença muito grande de valores.” Mais tarde, quando a filha nasceu, voltou a morar no seu concelho natal. Por um T3 pagava a renda de 800 euros mensais.
Hoje, Daniela paga uma prestação ao banco de 260 euros mensais, tem um empréstimo a 40 anos. Comprar foi a única “opção”. “Fica muito mais em conta mensalmente esta prestação. No fundo, o meu limite era ir até aos 350 euros de prestação. Como ainda sou nova, não me assusta muito esta possibilidade de pagar a casa durante 40 anos, porque sequer não teria outra opção se estivesse a alugar uma casa. Mesmo que fosse um T0 estaria a pagar, no mínimo, 600 euros, 650 euros”, diz.
No início de 2021, Inês Barroso, 32 anos, também comprou uma casa em Lisboa. O raciocínio foi exatamente o mesmo de Daniela. “A questão da renda foi muito importante para comprar ou não uma casa. Eu fiz a compra juntamente com o meu companheiro e para nós o racional partiu muito de ficarmos com uma prestação significativamente mais reduzida do que a renda de uma casa em Lisboa. Tivemos isso em conta”, diz.
Com a pandemia, o casal conseguiu “reforçar as poupanças”, por isso, quando chegou a hora de dar a entrada, puderam investir mais. “Ficamos com um crédito a 25 anos numa primeira habitação. E muito longe da taxa de esforço recomendada pelo Banco de Portugal [33%]. Foi o nosso pequeno milagre da Covid”, diz.
A lógica de compra de casa de Daniela e Inês tem raízes históricas. Advém de um problema sistémico que data, pelo menos, do início dos anos 90. “Há uma construção social que se fez ao longo de séculos, em que as pessoas acham que se estão a pagar uma renda a um senhorio são inquilinos, se estão a pagar uma renda aos bancos são proprietários. Isto não é uma condição material de análise. Isto é claramente uma construção social. Isto é meu, isto não é meu”, aponta Bernardo Alves, do Movimento Habitação Hoje!.
A liberalização do sistema financeiro criou as condições para que houvesse uma grande liquidez para quem quisesse comprar casa, através de hipotecas, empréstimos e outros mecanismos de acesso a crédito. Ora, o que é isto diz sobre o país? “Diz muito sobre as políticas que usamos durante 30 anos de bonificação das taxas de juro, que empurraram muitas famílias para a compra de habitação, quando se deveria estar a apostar, como fizeram outros países, no setor do arrendamento, que se mantivesse ao longo de gerações a um preço razoável para as famílias poderem pagar”, afirma a investigadora Sónia Alves.
Por alguma razão, “Quem casa, quer casa”, um dos slogans publicitários mais conhecidos, nunca foi declinado em “Quem casa, arrenda casa”. “Algo aconteceu como resultado das nossas políticas de habitação: a determinada altura fica mais económico para as famílias comprarem casa do que arrendarem casa, mas isto foi o resultado das políticas de habitação que deram bonificação às taxas de juro, em vez de ter optado por uma dinamização do setor do arrendamento.”
Depois chegou 2012 e a desregulação do setor. O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), lançado pelo Governo de Pedro Passos Coelho, “veio aumentar o valor das rendas”. Ao “congelar as rendas antigas”, em vez de subsidiar as famílias que tinham esses contratos, criou-se “uma distorção no mesmo prédio entre uma renda antiga e uma renda recente”.
“Os programas não foram suficientemente atrativos para os senhorios fazerem obras de reabilitação, porque o valor das rendas, que tinham sido alvo de congelamento durante décadas, não justificava o valor de retorno. Na opinião deles, não justificava esse esforço”, explica a investigadora.
Portugal seguiu “contracorrente”, quando decidiu não dar o subsídio de apoio à renda no caso dos contratos com rendas antigas e muito reduzidas. “Pessoalmente, acho que fizemos uma asneira. Diminuímos a confiança no mercado de arrendamento”, aponta Sónia.
O congelamento das rendas no caso dos contratos mais antigos “afastou a população dos próprios centros das áreas metropolitanas”. “E a construção foi sendo o resultado de uma incapacidade de dinamizar a reabilitação e o setor do arrendamento. Portanto, se tivéssemos feito uma eficaz política de incentivo à reabilitação e ao apoio ao arrendamento, tal não teria acontecido. Não teríamos tido edifícios vagos, devolutos, degradados, nos centros da cidade, que foram um grande incentivo e apetite aos capitais estrangeiros, que encontraram aí um bom objeto de investimento.”
Por outras palavras, as condições para um "boom" de procura no mercado estavam criadas. Talvez por isso, o nascimento dos Vistos Gold (Autorização de Residência para Atividade de Investimento), funcionou, em 2012, como uma injeção de esteroides no setor.