Cleidir quis estudar, mas começou a "faltar o básico"
Com 18 anos, voou de Cabo Verde para Portugal para estudar Biologia Marinha em Braga, mas bateu de frente com a realidade.
“Só o alojamento e a propina era o ordenado da minha mãe, que estava a morar em Lisboa”, explica Cleidir Moura.
Numa viragem forçada, foi para a Marinha Grande para fazer um
curso profissional de Turismo. Só que também esses planos foram
interrompidos. A escola onde estava inscrito e que fornecia refeições
aos alunos faliu.
Foi aí que começou a “faltar o básico”, e a falta de condições
levou-o a começar a “fazer a vida”, ou seja, a cometer crimes, na gíria
prisional. Admite que “não sabia bem o meio” em que estava a meter-se,
mas não se desresponsabiliza. Diz que a decisão foi dele.
Cleidir ficou com o futuro “em stand-by”. Mas acredita
que o que passou na prisão foi decisivo para se endireitar. “A partir do
momento, só pensas em sair. Lá dentro, há muitos se perdem, muitos se
tornam homens”.
Trabalhar foi o escape que encontrou na cadeia e, até foi a
cumprir pena que começou. “O meu primeiro trabalho foi na prisão”, conta
Cleidir, que explica que há dois tipos de pessoas: os que têm horários,
regras e trabalho; e os que ficam à espera que a comida vá ter à cela.
Agora, cá fora, Cleidir Moura explica que os hábitos que criou
foram “decisivos” para estar preparado para o mundo real. “Chega ao
final do mês e recebes 30 euros, mas estás a fazer isso não por
dinheiro, por liberdade”.
“Liberdade” é a palavra que o guiava todos os dias em que esteve
a cumprir pena. Mas quando ela chegou, com ela chegou outro problema: a
falta de documentação legal. O sistema “castiga-te. Assim não vais a
lado nenhum”, dispara Cleidir.
“A Constituição Portuguesa diz que não se pode ser julgado duas
vezes pelo mesmo crime, mas isso não acontece. És sempre condenado
várias vezes cá fora. Para arranjar trabalho, vão sempre colocar-te
entraves”, afirma.
Cleidir Moura conseguiu encontrar emprego através da Associação
Companheiro. Foi essa a sua salvação, conta. Mas nem todos têm essa
sorte, e tal como Gilson Fonseca, este homem também relata casos de
pessoas que não querem sair da prisão por terem medo de enfrentar a
realidade.
"Ainda nos entendem como uma associação que
apoia o crime"
Verónica Leirião, Associação Companheiro
Preconceito chega também a quem apoia ex-reclusos
O acompanhamento psicológico dos reclusos nos meses que antecedem
a sua saída é fundamental para preparar a transição. Verónica Leirião,
psicóloga, é uma das pessoas que põe em marcha este plano.
Trabalha na Associação Companheiro, e é lá que recebe a Renascença.
Acompanha dezenas de pessoas, algumas estão prestes a sair, outras já
saíram. Nega que o futuro dessas pessoas esteja “hipotecado”, defende
antes que fica “adiado”.
Verónica Leirião explica que tem acesso aos processos dos
ex-reclusos, mas que a sua missão “não é julgá-los”. O objetivo é sim
facilitar o regresso à liberdade de pessoas que estiveram muito tempo
longe dela.
Esta psicóloga acredita que o país está a evoluir no que toca ao
trabalho de reinserção, “já muitas coisas vão sendo feitas”, mas “há um
longo caminho a ser feito”. Refere-se a questões práticas como “o que
pode falhar? Onde é que podem ser precisas verbas? A documentação está
em ordem? Onde existe ajuda?”
Verónica Leirião considera que trabalhar na prisão é, “sem dúvida”,
um passo importante para a reinserção ser mais fácil “cá fora”. Mas
também admite que esse é “privilégio” a que nem todos têm direito. Há,
por vezes, falta de oferta dentro dos estabelecimentos prisionais.
Quanto ao estigma em relação aos ex-reclusos, Verónica Leirião
sublinha que ele tem vindo a esbater-se ao longo do tempo, mas que não
deixou de existir.
“Obviamente ainda há e muito. Até para a nossa associação, ainda
sentimos esse preconceito. Ainda nos entendem como uma associação que
apoia o crime, quando na realidade fazemos exatamente o contrário”,
defende a psicóloga, bem habituada a pessoas que estiveram a cumprir
pena.
É um caminho que ainda tem de ser feito. Até porque, conta
Verónica Leirião, continuam a existir casos de pessoas que são afastadas
de uma candidatura por terem cadastro.