Das peripécias da fundação do festival à aposta em Lisboa, passando pelas relações com a política, as desigualdades e as fraturas sociais, as caras de duas gerações da família Medina explicam os seus planos para o festival que trocou a Belavista pela paisagem ribeirinha do Tejo na Lisboa Oriental. A entrevista foi gravada entre os dois fins-de-semana do evento em Lisboa.
O primeiro Rock In Rio foi 11 a 20 de Janeiro de 1985. O Brasil saía da ditadura militar, era um momento de transição. Era um mero negócio de entretenimento ou vinha acompanhar o tempo que o Brasil vivia nessa altura?
Roberto Medina - Havia algo mais. A minha família foi vítima de perseguição da ditadura. Quando vem a abertura democrática, ela aconteceu dentro do Rock In Rio, com Tancredo Neves [presidente eleito em Janeiro de1985] e tudo mais. Aquilo me inspirou, não só a mim, mas muito jovens daquela época se inspiravam naquele momento que se viva de transição. Foram 25 anos de ditadura.
Havia 2 aspetos. Era um produto que eu estava criando, um inconformismo de um publicitário. Já tinha a minha agência de propaganda grande no Brasil, era 'publicitário do ano' . Eu via propaganda em 360°, como vejo hoje. Estamos aqui na rádio e as ferramentas mudaram e se complementam. Não existe uma boa campanha que não tenha rádio, televisão, porque é diferente quando se mede a audiência com os 'streamings' e os 'likes'. O importante na comunicação é tocar o coração da pessoa e isso se isso com o conjunto do ambiente das ferramentas de comunicação. Então ninguém perde a importância nesse processo.
Na altura faltava isso ao Brasil?
Roberto Medina - Completamente. Há 40 anos, eram basicamente aqueles media académicos, o jornal, a rádio, a televisão e pouca coisa mais. Resolvia-se um projeto de comunicação com um dia na televisão, mais uma capa de jornal e estava resolvido. Eu achava que não era aquilo. A propaganda tinha que contaminar o entorno e era uma voz meio perdida na multidão dos publicitários. Esse produto foi criado também com essa visão.
A companhia de cerveja que investiu naquela época 20 milhões de dólares no evento. E não passou de 1 para 20, não havia investimento em espetáculos ao vivo. Não existia isso no Brasil. Ali foi uma 'virada' de momento brasileiro. Eu não fui à companhia e ninguém me perguntou que ia cantar. Compraram uma campanha de comunicação. Eu fui vender uma campanha de comunicação e ao longo do processo de construção, fui aprendendo a coisa do rock, do metal, do new wave. Comecei a aprender, comecei a ouvir aquilo para poder entender. A minha proposta, o meu projeto era muito mais com a visão de uma pessoa de comunicação do que uma do entretenimento.
Roberta Medina - Para criar uma mobilização.
O Roberto ficou surpreendido com a mobilização do primeiro Rock In Rio ?
Roberto Medina - Fiquei. Uma coisa é o que está na nossa cabeça. Quando vi que tínhamos 250 mil pessoas no primeiro dia, aquela 'turma real' saiu da minha cabeça e vejo que aquilo aconteceu. A mobilização estava ali, na prática, na rua. Foi muito emocionante. Lembro-me dos primeiros jovens entrando no portão e beijando a grama (relva). Pensava 'Meu Deus, acho que fiz esse negócio acontecer'. É engraçado, porque desde o primeiro momento em que eu sonhei com o Rock In Rio, ele não veio fragmentado para mim.
Eu estava na minha casa e ele veio com a quantidade de pessoas que aconteceu. Lá no Brasil, os maiores 'shows' da história eram de 30 mil pessoas. Eu podia ter sonhado com 100 mil ou com 150 mil. Não, era claro que eu ia colocar 1 milhão e meio de pessoas. Mas ver 1 milhão e meio de pessoas é completamente diferente. É um pouco a diferença entre música mecânica e música ao vivo. Eu acho que a vida é ao vivo.
O nosso evento aqui mudou de cara e ganhou um outro patamar. O Rock In Rio deste ano colocou o Rock In Rio numa outra posição. Ele deixa de ser o maior evento de música de Portugal para ser o maior evento de música da Europa.
Essa fotografia vai ganhar o mundo, a ponte, o Tejo e tal, é uma coisa incrível. Ganhou maioridade em todos os sentidos, inclusive na realização, porque todo o filho sai de casa, não é? Então saiu de casa agora com a Roberta, então está ótimo.
Roberta tinha 6 anos. O que é que se lembra do primeiro Rock In Rio?
Roberta Medina - Muito pouco. Lembro-me de me perder na obra. E na verdade não me perdi, estava apenas atrás de uma estrutura e só não sabia onde estava toda a gente. Estava a chorar, perdida na obra. Lembro-me de pôr New Wave no cabelo, era a época das purpurinas, etc. E lembro-me de brincar com os produtos oficiais. Havia óculos incríveis de cada cor. Lembro-me de dormir no chão de um camarote, mas do evento em si não tem memória. As minhas memórias em relação ao evento começam mais à frente e vendo coisas que sinceramente não gostava muito de ver.
Roberto Medina - Porquê?
Roberta Medina -Porque para você foi um projeto muito ruim.
Roberto Medina - Foi muito difícil.
Roberta Medina - A primeira edição foi um projeto muito bom para toda a gente que participou. Foi um sucesso a nível mundial. Ele fala assim, com essa tranquilidade, que era para 1 milhão e meio de pessoas. Mas não havia isso no mundo inteiro. O único festival de referência grande até então foi Woodstock, que não foi criado para ser um festival.
Roberto Medina - E mesmo Woodstock foram 380 mil pessoas e não programado.
Roberta Medina - Ele fala com essa tranquilidade, mas para ele , por uma série de questões que só soubemos 10 anos depois, foi muito desafiador. Eu mesmo só comecei a contar essa história quando estávamos aqui em Portugal e o projeto ficou musculado. Hoje a minha geração tem permissão para falar de erro, crescendo no Brasil e em Portugal, porque os Estados Unidos têm uma mentalidade diferente. O Roberto nunca pôde contar que a primeira edição tinha sido um desastre financeiro, porque isso remetia para um empresário ineficiente . E não, estamos aqui sentados, conversando 40 anos depois, por causa do sucesso da primeira edição.
Agora isso não apaga que eu, com 16 anos, acompanhei-os a passarem o último cheque da dívida da primeira edição, quando já tinha acontecido o segundo Rock In Rio.
O que é que aprendeu e corrigiu do primeiro para o segundo Rock In Rio?
Roberto Medina - No primeiro, eu fui vítima de uma perseguição política incrível pelo Brizola [governador do Rio de Janeiro]. Eu não estava preparado para isso, para tomar a frente nos media. Acontece que era tão absurdo aquilo acontecer na cabeça das pessoas no Brasil que eu tive que me colocar na frente da campanha. Então eu 'virei' muito popular sem querer ser. De repente eu era o Mickey daquela história toda. E aí, o governador de então achou que eu queria ir para a política. Eu nunca quis.
Talvez tenha pensado no seu irmão e nas suas ligações políticas [Rubem Medina, que foi deputado federal pelo Rio de Janeiro em 9 mandatos].
Roberto Medina - Exatamente. O meu caso era fazer um evento, era comunicação, não era esse mundo. Houve uma perseguição muito grande e esse foi um dos fatores. Se não tivesse havido isso, não teria tido um espaço de tempo maior para voltar e eu ia apostar financeiramente.
Roberta Medina - Dava para recuperar mais rápido o investimento, só que a perseguição política fez com que a Cidade do Rock fosse destruída. Até hoje, foi a única que foi construída para ser uma estrutura permanente.
Roberto Medina - Para você ter ideia do tamanho da ‘encrenca’, um dos parceiros amigos era a TV Globo. Roberto [ Marinho, fundador da Globo] ligou-me a dizer: ‘Os artistas foram para a frente da Cidade do Rock. Você vai para lá e comanda os artistas e vão fazer uma caminhada ao vivo até ao Palácio, porque não vão permitir isso’
Eu falei: ‘Eu estou doente, não aguento mais. Eu entreguei o meu sonho, está entregue e está todo o mundo feliz. Eu não estou, mas está todo mundo feliz.’ E o Governador destruiu a Cidade do Rock que era um investimento gigantesco. Mas não mudou muito face ao que fizemos do ponto de vista de entrega de produto. Não mudou. Eu tive prejuízo, mas os parceiros todos ganharam. A televisão ganhou muito com aquilo. A Brahma conquistou 11% do mercado nacional,o que é uma barbaridade porque o Brasil é muito grande.
A indústria fonográfica brasileira, não apenas de rock, cresceu 180% com o Rock In Rio, segundo dados deles. E mais ainda, toda a tecnologia embarcada que veio dos Estados Unidos. Como não tínhamos som, luz e palco, fui beber do mercado americano. Hoje a exportamos para eles. O evento do Rock In Rio, tanto de Portugal como do Brasil, é muito melhor do que o melhor evento americano. Porque há uma coisa binária nos Estados Unidos, eles vendem bilhetes para ver um artista. Eu nunca pensei nisso. Não é isso que as pessoas compram.
A “experiência” é a palavra-chave do Rock In Rio desde o início?
Roberto Medina - Totalmente.
Roberta Medina - Já tinha centro comercial, praça de alimentação, etc.
Roberto Medina - Era uma ‘operação de guerra’ disso. Eu não tinha a preocupação da banda, não era minha, era das pessoas. Eu sabia que eu ia mobilizar as pessoas. Nos inquéritos, daquela época e agora, 50% das pessoas dizem que vão pela banda e 50% pelo evento. Não é verdade. Elas vão 100% pelo evento. O Rock In Rio no Brasil está consolidado, ele esgota de qualquer jeito antes de Abril. 400 mil pessoas vão comprar bilhetes sem saber nada sobre o que vai tocar lá.
Em Portugal também é assim?
Roberta Medina - Portugal é mais desafiador. Há uma parte que faz assim. O mercado português tem alguns desafios, como o poder aquisitivo da população. É muito curioso que quando na última edição no Brasil na altura, em 2001, a realidade financeira do projeto é que 80% precisava de ser pago por patrocínio, pelo mercado publicitário e 20% vinham da venda de ingressos. Quando vimos para Portugal, encontramos um outro modelo, que é 50% do patrocínio e 50% na venda de bilhetes. Isso aumentava o nosso risco, mas era viável pelo poder aquisitivo.
Nos últimos anos, o poder aquisitivo da população vem sendo cada vez mais apertado para manter a qualidade de vida - vocês sabem melhor do que eu - e a oferta cresceu muito, mas não dos festivais. Há muita oferta gratuita de cultura e por isso uma venda de ingresso em Portugal tem um nível de esforço muito maior do temos no Brasil.
Mas o negócio dos festivais não está mal em Portugal.
Roberta Medina - Não está de todo mal, ao contrário, é gigante, só que não tem o mesmo nível de impulso. E aí há uma brutal diferença.A marca Rock In Rio no Brasil é uma bandeira de uma geração enquanto em Portugal é um evento incrível. São coisas diferentes. A primeira edição, que era um projeto incrível que tinha toda a intenção de unir pessoas, podia ter sido só um evento incrível. Mas foi adotado como bandeira daquele momento, na história do país. O festival marcou a liberdade de expressão e o fim da ditadura militar. Isso tem uma dimensão completamente diferente do que fazer um evento incrível.
Roberto Medina - O Rock In Rio vai esgotar o terceiro dia rapidamente e vai entrar com 3 dos 4 dias esgotados com uma plateia incrível e uma cidade nova. Passa para outro nível e passa a trazer mais europeus. Portugal não é pequeno. Lembro-me que gastei 80% do meu tempo do meu discurso com os media portuguesa a falar disso. Portugal é do tamanho do que puder pensar. É maior do que o Brasil, porque é Europa. É olhar o todo, são vizinhos. No Brasil em todo o Rock In Rio, 70 países compram bilhetes lá no Brasil.
Qual é a percentagem de não-portugueses que vêm geralmente a Lisboa?
Roberta Medina - Aqui, em compra fora direta, são 20 mil ingressos de 102 países diferentes. Agora com a possibilidade de ter um parque maior, vamos pela primeira vez apostar fortemente na comunicação Internacional, onde entendemos que dá para crescer muito mais.
Roberto Medina - Acho que agora vai ser mais ainda. O Rock In Rio tem de crescer em experiência. As pessoas têm de estar lá cada vez mais pela festa e pelo encontro. Temos de estar sempre trazendo produtos novos. Outra coisa interessante também que aconteceu nesses 20 anos é que os públicos mais velho e mais novo começaram a entender que era seguro e que era tranquilo.
Não tive esse problema no Brasil. No primeiro festival , com toda a loucura de acontecer aquilo, tínhamos crianças e velhos. Aqui não, porque a entrega dos outros produtos era muito tosca, realmente tosca e as pessoas não se sentiam confortáveis. Aqui não, você tem um ambiente seguro e acho que vai ficar cada vez mais. Essa cidade nova vai se transformando e transformando, como foi no Brasil. A impressão que tenho é que é preciso ‘stressar’ esse movimento de criar produtos.
A banda tem que ser uma estratégia fundamental? Claro que sim, isso é óbvio. O que não é óbvio é o que está em volta da banda. Lembro-me quando fui falar com um Presidente de uma grande companhia americana, em Las Vegas, eu sentia que ele não tinha entendido bem quando ele foi lá em. Quando ele foi ao Rock In Rio - e olhe que a companhia tinha 10 eventos - disse que nunca tinha visto a outra parte fora do palco. Aos poucos, sinto o público mais velho cada vez mais presentes, indo para uma experiência, um passeio, um encontro. Desde o início do Rock In Rio, nunca pensei que era uma questão de bandas, até porque não era. Já tive algumas experiências interessantes no Brasil, onde uma banda muito grande foi ao Rock In Rio com 250 mil pessoas e, no mesmo ano, foi a uma casa de 12 mil pessoas e não esgotou.
É o contexto?
Roberta Medina - É a história toda que se constrói.
Como foi tomada a decisão da saída do Parque da Belavista, a vossa casa desde o início, para o novo espaço, o Parque Tejo?
Roberto Medina – Isso é culpa dela.
Roberta Medina - Eu mandei uns vídeos de imagens aéreas do Parque para ele [Roberto] quando estava a estrear o The Town [festival em São Paulo], que é um evento tão grande quanto o Rock In Rio. Mandei as imagens aéreas do Parque, só para dar um ‘claquete’ assim para começar. Ele não respondeu, zero, nada. Cheguei a São Paulo e perguntei : ‘viu aquilo que eu te mandei ?’ e ele começa ’ai que bonito’. E à medida que eu vou explicando sai a seguinte pérola: “Ah isso já está pronto!’, achando que nós queríamos fazer o Parque do zero. Quem inventa essas ‘maluquices’ do zero é ele e não somos nós.
A história [começa] na Jornada Mundial da Juventude. Conhecemos aqui toda a polémica e a má gestão que, na minha opinião, foi feita em relação à preparação daquele espaço e em termos de comunicação.
Houve má gestão?
Roberta Medina - Má gestão da comunicação das partes políticas, de uma forma clara. O projeto era extremamente positivo para a cidade, com um promotor de imagem incrível, preparando um terreno que era um ‘lixão’, que estava sendo resgatado para ser devolvido à população. E ficámos numa discussão de um valor, que é relevante, mas não perto do tamanho e do potencial que aquilo trouxe para a cidade. Não é apenas a minha opinião, pois se resgatar todas as notícias dos 4 dias anteriores à Jornada, toda a gente estava a falar da mesma coisa. Demoraram muito tempo para explicar à população e ficámos numa discussão superficial, absolutamente não relevante, sobre os metros do palco.
Era por causa do custo do palco.
Roberta Medina - Mas o retorno era sempre muito maior do que o custo. Quatro dias antes, os nossos representantes políticos diziam a mesma coisa. Deteriorou-se ali a imagem de um projeto extremamente positivo e viu-se depois quão bom foi, quão leve. Foi brutal.
A Roberta esteve lá?
Roberta Medina - Fui vendo pela televisão, já estava no Brasil. No meio dessas cenas de discussão do Parque Tejo, em janeiro de 2023, saíram umas polémicas, umas fofocas, como se o Rock In Rio fosse para o Parque Tejo. Ninguém nunca tinha falado connosco. Falei com o presidente Carlos Moedas, ele disse que não, que era informação truncada. Estávamos com um projeto pronto, lançado, desenhado na Belavista.
No final de julho, nas vésperas de ir para São Paulo e com a construção do palco a avançar, o Presidente Carlos Moedas convidou-me a ver o Parque. Chegou a dar-me arrepio na coluna. ‘Jesus, ele vai convidar-nos a ir para o Parque’ e eu, cá comigo que só tinha visto imagens aéreas do Parque Tejo, ‘é que nem pensar, como é que explico ao público, que está acostumado à Belavista, que saio de uma concha natural perfeita, com árvores, lindinho, para um parque descampado plano? Não vai acontecer’.
Claro que fui, aceitei o convite, combinámos que não podia ter ninguém lá para não criar a ‘fofoca’ de que o Rock In Rio estava a ir [para lá].
Foram em segredo, em julho, antes de chegar o Papa.
Roberta Medina - Os construtores estavam a finalizar a cenografia do palco já. Estava com Ricardo, meu marido, que é CEO da operação de todo festival, saí do carro, olhei para o parque e de repente inverteu-se completamente tudo o que eu fui pensando até lá. Agora como é que vou resolver para sair da Belavista? Porque realmente o parque é absolutamente divinal. Mesmo para a operação, com todo o amor que temos pela Belavista, é um parque muito difícil de operar. Não é à toa que não acontecem tantas coisas assim na Belavista.
Mas qual era o fator decisivo? A capacidade de expansão?
Roberta Medina - Estávamos há muito tempo a querer crescer, investir mais em música, em mais palcos e mais atrações, mais experiências. Na Belavista não conseguíamos e, para ter uma ideia, eu ficava pensando se iria conseguir uma ‘passarela’ para o terreno do golfe [ Clube de Golfe da Belavista].
A Belavista estava no limite?
Roberta Medina - Completamente, não tinha para onde crescer.
Mas já estavam a pensar expandir para outro local?
Roberta Medina - Não, queríamos expandir a oferta.
Roberto Medina – Tínhamos essa angústia de não poder criar mais ali no Parque. A propósito da visita do Papa, quero lembrar que há uma miopia generalizada dos media no mundo inteiro, particularmente nos países em desenvolvimento, sobre essa questão do evento, da festa. A festa é o indutor mais barato que existe para o poder público investir para criar riqueza.
Portugal é um exemplo, ao contrário do Rio de Janeiro. Quando cheguei aqui vocês tinham 11 milhões de turistas e hoje têm 22 milhões de turistas. Vocês duplicaram isso com trabalho. 22 milhões é um número importantíssimo. O Brasil, com aquele tamanho todo, tem 6 milhões. Quando os media e os políticos do mundo olham para a festa, entendem-na como despesa e não como receita. Fazer um viaduto é um investimento, patrocinar a vinda do Papa e fazer um investimento do Rock In Rio… O Rock In Rio nunca teve apoio financeiro de nenhum governo, nem lá nem aqui. Deveria ter, quer dizer, a política de entretenimento devia ser muito mais ativa, tanto aqui quanto lá
Existem taxas que não são cobradas.
Roberta Medina - As taxas não são cobradas, não há investimento financeiro no projeto. Digo com a maior tranquilidade que, se as taxas existissem da forma como eles calculam, não havia Rock In Rio. Nem é uma discussão. Ela só volta todos os anos, muda partido e a discussão é igual, por uma questão de provocação política. Se o país quiser cobrar aquelas taxas a qualquer promotor que venha fazer o que quer que seja, não vai acontecer.
Roberto Medina – Santana Lopes foi a pessoa que encontrei quando cheguei aqui como Presidente da Câmara. E ele perguntou-me o que queria dele e eu disse ‘nada, arruma o Parque da Belavista e eu não quero nada de você’. Ele estranhou, fizemos o evento e eu vi uma entrevista dele à saída que me deixou muito feliz. O repórter perguntou quanto tinha sido investido no patrocínio e ele disse “nada, porque achava que não ia acontecer, mas hoje, se ele tivesse pedido com o que está aqui, eu teria investido muito’. Há uma miopia nesse sentido. Também no Brasil faço questão de não ter nenhum apoio, Lei de Incentivo, coisa nenhuma. O terreno é sempre particular.
O Rio de Janeiro, sem grandes mobilizações de turismo ou um projeto efetivo de turismo, tem um impacto económico do negócio cultural e turístico de 28 biliões de reais. E não fazemos nada. No Rio de Janeiro 50% é negócio do Rock In Rio e Carnaval. O poder público não investe nada nesse setor e é uma briga permanente. Sou amigo do prefeito [presidente da Câmara], que começou a fazer coisas, teve a Madonna na praia, vai começar a fazer um calendário e eu vou ajudar. Mas há uma miopia no entendimento disso. No Rio de Janeiro temos 28 mil empregos diretos. E aqui já estamos em 13 mil empregos diretos.
Isto mostra a marca Portugal. Quando vim para cá, a visão do brasileiro era a de um país triste e antigo e quando cheguei, vi que não era nada disso. Hoje gastam-se biliões para construir uma ‘marca de amor’. Fazê-lo em Portugal e no Brasil, num projeto desses, é uma estratégia de governo. Mas porque é que o político não põe isso na agenda? Ele não diz isso, porque os media interpretam isso como gasto. Não é gasto nenhum, é o investimento mais barato que existe. E nos casos de Portugal e do Brasil, é essencial. Vocês vivem de turismo, de paisagem, gastronomia e vive da cultura e dos eventos.
O debate sobre o investimento pode estar relacionado curiosamente com o ano em que o Rock In Rio veio porque, em 2004, Portugal gastou muito dinheiro em estádios de futebol. Aliás, o Brasil também teve essa discussão com o Campeonato do Mundo. As pessoas centraram-se nos gastos e no que iria acontecer depois. Tiveram consciência de que esse era o debate em Portugal, quando vieram para cá?
Roberto Medina – Quando vim para cá, para mim, o grande inimigo era essa coisa da tristeza de Portugal. Era o fado, a tristeza, o ‘sou pequeno’ e eu não entendia. Via uma cidade luminosa, com uma grande gastronomia, colada aos países mais importantes do mundo. Era uma questão de autoestima. Posso estar errado, mas tenho a impressão que o Rock In Rio, no momento dele, e o Felipão [Scolari] mudaram isso. A juventude não se acha um patinho feio, está feliz com Portugal. Vocês são profissionais, particularmente na área da lógica e da engenharia, em que são melhores do que nós. E nós [somos] na área da criação. Na empresa do Rock In Rio, o pessoal de Portugal tem claramente toda a parte de logística, engenharia e o pessoal brasileiro tem a criação, talvez por toda essa dificuldade económica e política do lado de lá e um pouco da influência africana mais direta no povo brasileiro.
Eu brincava muito com vocês sobre futebol. ‘Vocês são muito estranhos, escolhem uma seleção excelente e ficam dizendo durante 2 anos que vão perder. Nós escolhemos qualquer coisa e ficamos a dizer que vamos ganhar e se perdermos é só um dia’
Mas vocês têm muitos ótimos jogadores.
Roberta Medina – Mas antes de bons jogadores, somos otimistas desenfreados.
Mas a propósito da tristeza, temos grandes fadistas que estão a fazer sucesso no Brasil.
Roberto Medina - Nada temos contra o fado.
Noutra perspetiva, há um outro Portugal, não é?
Roberta Medina - Completamente. Como estou morando aqui, não consigo olhar o Brasil da mesma forma que olho para Portugal, talvez porque tenha nascido lá, mas nas gerações abaixo dos 30 anos, Portugal é outro país. Já não existe mais o ‘vai-se andando’. Acabou o constrangimento social. Efetivamente existe uma mudança cultural, que talvez tenha a ver com cada vez maior abertura. Portugal é um país que abriu há pouco tempo, em termos de liberdade.
Roberto Medina – Vocês tiveram o dobro do tempo de ditadura que tivemos no Brasil. Isso fez a ‘garotada’ ficar para baixo e marcou muito as gerações mais velhas.
O Rock In Rio em Lisboa passou ao lado das dificuldades económicas e das crises? Portugal teve uma intervenção externa e o próprio Rock In Rio sofreu por causa disso?
Roberta Medina – Nunca passa. Na verdade, sempre sofre. Digo sempre que, se o Rock In Rio está em Portugal, ele é reflexo do país, da sociedade e se há uma crise financeira, vamos ter dificuldades em venda de bilhetes e de patrocínios. Isso faz parte dessa jornada. É curioso que aconteceu o contrário na edição de 2012, no auge da crise, em que o efeito no público foi o contrário do que nos preocupava. Pensávamos que estando as pessoas muito tristes e preocupadas, como é que iria ser a Cidade do Rock? E o efeito foi o oposto. As pessoas estavam eufóricas por algum momento, nem que fossem aquelas 12 horas para poderem ser felizes e esquecer os problemas do seu dia-a-dia.
Acho que a pandemia também veio reforçar mais uma vez aquilo que não queremos admitir que é a importância da cultura e do desporto, que têm muitos papéis, mas também um papel de reequilíbrio, de respiração, que alimenta a esperança de que o mundo pode ser melhor. Quando vivemos ali 12 horas de alegria, de sorriso, onde os preconceitos não se colocam, isso faz com que acreditemos numa perspetiva de sociedade diferente face à dureza do nosso dia-a-dia.
Mas o mundo não está muito bom. O tal ‘mundo melhor’ está muito difícil.
Roberto Medina - Está a colocar uma questão muito importante nesse momento, porque nós vendemos alegria e integração. No Brasil, particularmente lá em São Paulo onde fiz agora o The Town, fiz questão de fazer uma favela inteira, com 300 casas com horta, com água, com esgoto, pintada, bonita. O que tem o Rock In Rio a ver com uma favela? Ou com 70 salas de aula que eu abri nas favelas do Rio de Janeiro, com 4 milhões e meio de árvores que plantei?
Eu fiz um espetáculo no meio do Rio Amazonas para começar o projeto de plantar árvores na Amazónia, consciência ambiental, blablablá. Eu disse que ia plantar 1 milhão e meio de árvores. E um jornalista português perguntou se 1 milhão e meio de arvores iria mudar a Amazónia? Eu disse que bastava uma. Eu tenho que ‘bater o tambor’ para o poder público correr atrás do problema. Eu tenho de entusiasmar a juventude a ir atrás do problema.
O que está a acontecer é que, com a pulverização das ferramentas de comunicação, a leitura da juventude é de apenas duas linhas. Esse é um desafio que vamos ter. Então o jornalista não está a escrever a notícia e o produtor não quer conversar mais do que aquela entrega. Temos um pano de fundo muito complicado no mundo. 70% das pessoas do mundo, não apenas do Brasil ou Portugal, não querem ouvir o outro. A música, o teatro ou o cinema, aproximam pessoas. A música une diferentes.
É diminuto diante do caos que estamos a viver? É, mas nunca foi tão importante ‘bater o tambor’ sobre a possibilidade de darmos a volta por cima. Eu sou uma pessoa otimista por natureza, senão não tinha feito minha trajetória. Eu continuo a achar que o mundo vai dar certo. Não está no momento bom. E eu acho que a juventude, que é quem pode fazer essa mudança, não está a fazer a mudança.
Mas é difícil, por exemplo, que um Rock In Rio no Brasil faça a diferença num país tão polarizado, com tanta a animosidade entre as pessoas, com tanta desinformação a correr nos telemóveis?
Roberto Medina - Vou dar um exemplo concreto. O nosso último evento ocorreu um mês antes da campanha eleitoral com mais brigas que já houve na história do Brasil, entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Eu estava preocupado com isso porque havia uma briga enorme no Brasil. E não aconteceu nada, ninguém brigou com ninguém, não aconteceu uma vaia.
Roberta Medina – Estamos a falar de um período em que famílias se separaram por conta de opiniões diferentes políticas.
Roberto Medina – Muitas famílias se separaram até hoje. Acho que quebrámos um pouco isso, agora seria suficiente para haver uma transformação? Esse é o nosso papel. Estou com 4 milhões e meio de árvores plantadas.
Mas não proibia ninguém de vir com a tshirt do seu candidato para o seu Rock In Rio?
Roberta Medina – Claro que não, a legislação proíbe campanha política em eventos culturais. Foi essa a única ressalva que fizemos. Relembrámos que não era possível, até porque é uma questão de segurança num evento de 100 mil pessoas. Não me venham aqui para o palco incitando à diferença.
Roberto Medina – Aos artistas mais amigos, eu conversava e dizia para não criar polémica, para deixar as pessoas divertirem-se
Roberta Medina – Campanha é uma coisa, visão do mundo e outra. Isto vai ser sempre um espaço de liberdade.
No início, Brizola e outros estavam muito preocupados se o Roberto queria fazer carreira política. Ao longo deste tempo, essa tentação passou pela sua vida?
Roberto Medina – Não.
Roberta Medina – Não, mas está sempre a ser provocado.
Roberto Medina – Tenho um irmão que era político e fez isso muito bem. Teve 9 mandatos como deputado federal e então representou a família nessa atividade. Acho que hoje, se ele tivesse de tomar a decisão de ir de novo, ele não iria, porque o ambiente político está difícil, está extremado demais. Se formos ao ápice disso, essa curva acentuada não se vai se modificar tão cedo, mas vai acontecer.
O fenómeno das redes sociais deu voz a todo o mundo e claro que é democrático. Mas havia um filtro disso com os veículos tradicionais dos media, com os jornalistas, sejam de esquerda ou de direita. O fato real é que as pessoas foram para o extremo e uma pessoa do centro fica sem graça nos media.
Você é do centro?
Roberto Medina - Sou do centro. Acho que há ideias fantásticas na esquerda e na direita. A direita tem uma entrega mais prática das coisas, realiza melhor. E a esquerda tem um viés social que é fundamental. Eu sou contra o capitalismo extrativista. Acho que todas as empresas têm de pensar no mínimo que 50% das pessoas do mundo estão com fome. Então há que trazer essa pessoa e transformá-lo em consumidor. Até pelo ângulo mais egoísta que uma empresa possa ter, ela tem de ter obrigação social, e a esquerda traz isso para o debate. É mais rica na conversa na cultura. Então as coisas complementam-se.
Conseguiu então ficar à margem de ser pró-Lula ou pró-Bolsonaro?
Roberto Medina - Não é por aí, nem um nem outro. O caminho é das ideias. Temos de deixar de discutir personagens.
Roberta Medina – Ali estava difícil de escolher, viu?
Roberto Medina - Menos personagens e mais ideias, mais coisas. Não é apenas o programa de promessa de fazer isso, mas sim como é que se faz isso? Onde está o dinheiro para isso? Acho que é o momento de mais executivos na política, uma visão mais pragmática, executiva, onde a ideologia fique ali [de lado].
Roberta Medina – Se fossem gestores, poderia funcionar de forma diferente.
A Roberta também tem a mesma atitude política? Faz parte de ser promotor de espetáculos ? Acha que em determinados momentos tem de afirmar um apoio a este ou aquele candidato num determinado momento histórico do país?
Roberta Medina - O nosso projeto é de alto nível de exposição. É formador de opinião e acho que ele não deve nunca ser politizado. Estamos num ambiente de democracia, onde somos simplesmente palco para milhares de pessoas. Não importa o que a Roberta acha naquele momento e o Rock In Rio não deve, na minha opinião, nunca ser partidário.
Roberto Medina – Também acho.
E a relação foi sempre igual com as várias cores políticas, nomeadamente em relação à Câmara de Lisboa?
Roberta Medina - Sempre, maravilhoso. Temos uma relação muito boa com todas as cores políticas. É impecável. Isso dá-se pelo diálogo. Trabalhamos juntos, escutamos. Acima de tudo, temos a consciência de que o nosso primeiro parceiro que tem que estar feliz connosco é a cidade que nos acolhe. Temos uma construção muito conjunta com todos os governos. Já são 20 anos com vários representantes e sempre foi uma relação muito positiva
Roberto Medina – No Brasil também, depois da situação do governador. Só para complementar o que eu penso sobre o Rock In Rio, a diferença é que o nosso cabeça de cartaz é cada pessoa, não é o artista. Fomos o primeiro evento do mundo a iluminar a plateia e os americanos não queriam. Eles é que produziam para mim, não queriam e eu fiz sozinho ‘no peito’. Porque é óbvio que 200 mil pessoas são muito mais que qualquer artista do mundo. Não há artista mais importante que a pessoa que vai ali, que acredita no teu sonho. O artista tem o seu peso, como a logística, é tudo um conjunto em que a pessoa tem de estar feliz. É nisso que apostamos.
Ao longo deste primeiro fim de semana, lemos muitas queixas de muita gente em relação ao novo espaço.
Roberta Medina - E muitos elogios também.