“Os enfermeiros são mais que minha mãe. Muito carinho me dão"

Natal é tempo de esperança. Conheça o trabalho dos enfermeiros da Unidade de Cuidados na Comunidade de Seia e a diferença que fazem na vida de 20 idosos da região e das suas famílias. Estes "anjos da guarda" percorrem diariamente mais de uma centena de quilómetros para tratar feridas, gerir regimes terapêuticos e levar uma palavra de conforto.

17 dez, 2024 - 06:42 • Liliana Carona



“Os enfermeiros são mais que minha mãe". Reportagem de Liliana Carona
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“Os enfermeiros são mais que minha mãe". Reportagem de Liliana Carona

Todos os dias, nunca menos de 100 quilómetros são percorridos pela equipa de enfermeiros e enfermeiras da Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) de Seia, conduzidos pelo motorista Carlos Silva, de 51 anos.

“É um trabalho gratificante, que é necessário, ainda mais nesta zona que é envelhecida e as pessoas têm poucas possibilidades de se movimentarem, de irem aos nossos serviços e o concelho de Seia é extenso, há zonas distantes, curvas contracurvas, estradas em mau estado e localidades muito isoladas”, destaca, garantindo estarem “sempre disponíveis para o que seja necessário, seja Natal ou não seja”, afirma Carlos Silva.

A Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) presta cuidados de saúde e apoio psicológico e social de âmbito domiciliário e comunitário, especialmente às pessoas, famílias e grupos mais vulneráveis, em situação de maior risco ou dependência física e funcional ou doença que requeira acompanhamento próximo.

Na primeira paragem da viatura da UCC, a enfermeira Isabel Cruz, 44 anos, aponta para uma moradia. “São aquelas nossas duas irmãzinhas muito queridas, que nós vamos cuidar, já andamos lá há algum tempo”, explica.

Sem condições para saírem de casa, em Torrozelo, estão duas irmãs, diagnosticadas com os primeiros sinais de demência, que recebem a visita das enfermeiras semanalmente ou quando precisam.

Deitadas uma ao lado da outra, prometeram ainda jovens que nunca se largariam, mesmo que a memória falhasse. “É uma vergonha”, dizem ao ver entrar a dupla de enfermeiras pela porta adentro. “Podemos ver isso? Vamos esticar o pezinho. Isso, à vontade. Quem a viu e quem a vê”, vai ouvindo Maria da Conceição, de 93 anos, que tem vindo a tratar feridas, resultado de uma fratura na perna e braço. “Tenho de agradecer àquelas senhoras que estão além daquele lado. As senhoras é que têm feito um milagre”, afirma Maria da Conceição, sem nunca soltar a mão das enfermeiras.

Evitar internamentos e ter apoio da família e enfermeiros

A enfermeira Isabel Cruz descreve uma situação que pensava que fosse correr pior atendendo à idade, “porque partiu a perna e depois partiu o braço”, tendo chegado a propor à família a transferência para uma unidade, mas a enfermeira Isabel garante que “a família é muito capaz” e por isso “conseguiu-se fazer todo este processo na casa dela, na casa da sobrinha, evitando-se um internamento numa unidade”.

Mesmo num quadro de demência, que podia ter um desfecho menos feliz, “as duas irmãs sorriem e estão bem tratadas”, observa a enfermeira, não escondendo a felicidade por ver a evolução dos tratamentos: “quase que pode ter alta”.

Aos pés da cama de Maria da Conceição, as sobrinhas Ana Dunhão, 48 anos, e Conceição Dunhão, 61 anos, admitem não conseguir dar a mesma resposta que as enfermeiras dão à tia e à mãe, Helena, 85 anos.


Mais de 100 km são percorridos diariamente pela unidade móvel de saúde. Foto: Liliana Carona/RR
Mais de 100 km são percorridos diariamente pela unidade móvel de saúde. Foto: Liliana Carona/RR

“É muito importante, porque as deslocações eram muito difíceis. E para nós foi uma mais valia, porque, se não fosse isso, elas teriam de ir para uma instituição, e não é o mesmo que estar em casa, porque eu já trabalhei num lar e tenho a perfeita noção, que é muito diferente”, começa por destacar Ana, em concordância com a irmã Conceição.

“Estamos aqui todos em família. Quando falamos se querem ir para um lar, elas não querem, tanto ela, como a minha mãe dizem que não”, revela, assumindo “nunca ter imaginado que houvesse assim este apoio das senhoras enfermeiras, porque têm tido um acompanhamento espetacular, todos muito carinhosos”.

A tia foi sempre “uma segunda mãe” e Conceição Dunhão recorda que a progenitora sempre lhe deixou um pedido: “Se um dia me acontecer algo, tomem conta da tia”.

“Enfermeiras milagrosas”

A receber o carinho de casa e das enfermeiras, as duas irmãs Maria da Conceição, 93 anos e Helena, 85 anos, acreditam estar diante de um truque de magia.

“Têm sido realmente extraordinárias, milagrosas. Muito simpáticas. A gente já não tem de ir a Seia, tem quem venha curar. Encorajam-nos, dão-nos ânimo para continuar, têm sido extraordinárias, incansáveis”, sorri Conceição.

“Ajudam-nos muito a melhorar, parece que a gente fica melhor de um dia para o outro, é um pozinho, uma magia que nos deixa logo boas de um dia para o outro. São umas simpatias”, enaltecem em uníssono. Maria da Conceição remata: “o que eu era e o que eu sou”.

Maria da Conceição vivia em Lisboa, solteira, sem filhos, mas sempre com ligação afetiva às sobrinhas e, no dia em que teve necessidade de ajuda, regressou ao interior para junto da irmã, “apresentando as duas, sinais de demência”, mas que “não apagam a ligação como irmãs”, salienta Isabel Cruz, enfermeira há 24 anos.

“É bom ver que ainda existem essas relações de família, de união, de interajuda, de proximidade, de preocupação com o outro”, conclui.

O bolo negro, a receita que Maria da Conceição passou à filha e à sobrinha que hoje com ela vivem é partilhada com as enfermeiras. Em cima da mesa já servido e o aroma a canela a espalhar-se pela casa, partilhado com as enfermeiras, que à despedida prometem mais uma visita: “ainda voltamos antes do Natal”.

Capacidade para 20 utentes sem esquecer as respetivas famílias

Sempre que alguém precisa de tratamentos de saúde, sai a carrinha da Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) de Seia.

“Então vamos à D. Rosa Pedro, que é aqui mais perto, já deve estar acordada e que tem a filha como cuidadora”, descreve a enfermeira Eugénia Pereira, 47 anos, coordenadora da Unidade de Cuidados na Comunidade de Seia desde 2011, ano da sua abertura.

De momento, a equipa é composta por cinco enfermeiros e enfermeiras, e disponibiliza ainda serviços de nutrição, assistência social, psicologia e fisioterapia.


Carinho e palavras é o que os utentes mais precisam. Foto: Liliana Carona/RR
Carinho e palavras é o que os utentes mais precisam. Foto: Liliana Carona/RR

Com capacidade para 20 utentes, há nove pessoas que, atualmente, beneficiam dos serviços desta unidade.

“Estamos a falar de pessoas dependentes que já não podem deslocar-se, não têm forma de o fazer, podem estar acamadas ou não, com necessidade de tratamento de feridas, de gestão de regime terapêutico, podem necessitar de cuidados paliativos e quando falamos na pessoa doente, falamos também na sua família”, explica Eugénia Pereira.

A enfermeira especialista acompanha Rosa Pedro, de 86 anos, residente em Seia. “Ela tem feridas nos membros inferiores há pelo menos 18 anos. No entanto, quando ela conseguia deslocar-se, ia ao Centro de Saúde, que é aqui perto, e fazia lá os tratamentos. A partir de um certo momento deixou de poder deslocar-se, não tem mobilidade, e então tivemos que passar a ser nós a fazer os tratamentos”, esclarece Eugénia Pereira.

Muito mais do que tratar feridas ou gerir medicação

Faz parte da rotina o cuidar, mas o enfermeiro Duarte Marvanejo, de 38 anos, não nega que “nestas alturas do ano, dá mais força para continuar”, os casos que vai vendo. E explica: “porque muitas das vezes são estas palavras de incentivo e de empatia que nos fazem acreditar que o trabalho que andamos a fazer durante o ano é um trabalho que faz a diferença na vida das pessoas. Temos utentes que acabam por não ter ninguém, nós às vezes somos quase a única visita”, nota.

Rosa Pedro, de 86 anos, e o marido Álvaro Ferreira, de 87, vivem com a filha e cuidadora Ana da Conceição, de 68 anos. Mas apesar do cuidado da família, é nas equipas de enfermagem que a visitam que vê esperança em dias melhores.

“Os enfermeiros são mais que minha mãe. Muito carinho me dão. Eu não dormi nadinha toda a noite e o enfermeiro já aqui está”, relata, enquanto sai do quarto de banho.

“D. Rosa foi por causa da tosse que não dormiu”, questiona o enfermeiro Duarte, enquanto enche uma bacia com água quente, para lavar as feridas (úlceras venosas), causadas por problemas de circulação sanguínea, que impossibilitam Rosa, de andar, sem dor.


Enfermeiro Duarte Marvanejo lava e trata as feridas a Rosa Pedro, de 86 anos. Foto: Liliana Carona/RR
Enfermeiro Duarte Marvanejo lava e trata as feridas a Rosa Pedro, de 86 anos. Foto: Liliana Carona/RR

“Se não fôssemos nós a fazer estes tratamentos, eles não poderiam estar em casa, teriam de estar nos internamentos hospitalares”, refere o enfermeiro Duarte, sob o olhar atento de Rosa, que acena positivamente com a cabeça.

“Eu já estive no hospital quatro meses e sei como é. Aqui eles tratam-me como aos filhos. Tenho a certeza que muitas vezes estes enfermeiros perdem tempo de estar com os filhos, para estar comigo”, afirma Rosa.

No quarto, só se ouve o som da água e dos gemidos de Rosa Pedro, que vai vendo as feridas sendo limpas e tratadas. “Nós, nesta época, mantemos os cuidados, não deixamos ninguém para trás, vamos a todos os locais que necessitam, para as pessoas também poderem desfrutar, no domicílio, das suas famílias”, sublinha o enfermeiro Duarte Marvanejo, que recebe a alcunha de “santo”, enquanto a enfermeira Eugénia é a “chefa”.

Mas mais do que o tratamento das feridas e das dores do corpo, Rosa Pedro precisa de palavras.

“Quando estou um bocadinho ao sol, porque eu tenho uma varanda, a enfermeira Eugénia passa e fala-me sempre. E é muito bom a gente ter uma fala. Às vezes não é um tratamento, é uma fala que nos dão”, assume Rosa.

Mas que fala é essa? O que lhe diz a enfermeira? “Diz-me, muitas vezes, que um dia ainda venho a andar, são palavras de incentivo”, relata, emocionada, acrescentando que recebe a visita dos enfermeiros duas a três vezes por semana e sempre que precisa.

Rosa Pedro sabe como é o amor, ela que está casada há 69 anos, abraçada ao marido, os dois oferecem aos enfermeiros o que têm, pelo tanto que dizem receber.

“Uma filhó para o caminho e queijo da serra. Trabalham no Natal, mas também não vão sair daqui de estômago vazio”, desafia Rosa. “Um Bom Natal, e voltamos sexta de manhã”, assegura a dupla de enfermeiros.

Apesar das histórias desta reportagem, serem histórias de esperança, para outro trabalho jornalístico, não faltariam outros relatos, outros desfechos. No apoio domiciliário, ao entrarem em casa de muitos dos utentes, os enfermeiros e enfermeiras percebem situações de pobreza extrema, falta de conforto térmico e a mais completa solidão.


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