Sem-abrigo. O inverno do Porto é "duro", mas baixos salários mantêm imigrantes na rua

Na cidade do Porto, na escarpa das Fontainhas, diversos imigrantes em situação de sem-abrigo enfrentaram as baixas temperaturas dos últimos dias nas tendas em que pernoitam habitualmente, apesar dos centros de acolhimento temporário montados pela autarquia. Ainda que muitos estejam a trabalhar, o que ganham não é suficiente para alugar uma casa.

17 jan, 2025 - 07:37 • Miguel Marques Ribeiro



Vários sem abrigo procuram a escarpa das Fontaínhas para montar a sua tenda e passar a noite. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
Vários sem abrigo procuram a escarpa das Fontaínhas para montar a sua tenda e passar a noite. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR

Ibrahim tenta descrever o frio que se sente quando se vive na rua. “É tão duro, sabes. Tão difícil”. Nos últimos dias, a descida acentuada da temperatura obrigou a Câmara Municipal do Porto a acionar temporariamente o nível amarelo do Plano de Contingência para os Sem-Abrigo, que entra em vigor sempre que os valores diários da temperatura mínima são inferiores a 3º C ao longo de vários dias consecutivos.

Uma situação que afetou de forma particular os ocupantes das tendas montadas nas escarpas das Fontainhas, uma zona da cidade virada para o rio e cujo miradouro é, paradoxalmente, muito procurado pelos turistas devido às vistas panorâmicas.

Nos socalcos de granito coexistem as barracas de quem não tem um teto para viver, com as hortaliças e verduras que crescem em terrenos usados para agricultura comunitária.


A Câmara do Porto acionou o nível amarelo do Plano de Contingência para as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo devido às baixas temperaturas. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
A Câmara do Porto acionou o nível amarelo do Plano de Contingência para as Pessoas em Situação de Sem-Abrigo devido às baixas temperaturas. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR

Ibrahim e um grupo de colegas nascidos como ele em Marrocos vieram de outra zona da cidade visitar o amigo Amil que, para já, ainda não regressou a casa.

Com o dia a decair, acendem uma fogueira para preparar o chá e algo para comer. Ibrahim conta que agora vive num quarto, mas recorda os quatro meses que passou na escarpa, por debaixo do túnel que em tempos foi usado pelos comboios que ligavam Campanhã à Alfândega — e onde agora estão montadas duas tendas lado-a-lado, com os destroços abandonados de outras três.

"É muito duro viver na rua. Perdes o teu equilíbrio. Ficas perdido" - Ibrahim

“É muito duro viver na rua. Perdes o teu equilíbrio. Ficas perdido”, explica. Esta época do ano é particularmente complicada. “O inverno não é bom para se dormir nas ruas. É tão difícil. Eu não consigo explicar-te, terias de sentir, ou melhor, de experimentar”.


A zona das Fontaínhas é muito procurada por turistas devido às vistas sobre o Douro. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
A zona das Fontaínhas é muito procurada por turistas devido às vistas sobre o Douro. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
Um tanque comunitário é usado por sem abrigo para a higiene pessoal, apesar de a água não ser potável. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
Um tanque comunitário é usado por sem abrigo para a higiene pessoal, apesar de a água não ser potável. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR


"Tenho um telhado debaixo do céu. Sou o mais sortudo de todos os que aqui vivem" - Amin

Quando o chá está pronto a servir, antídoto para o frio que se começa a sentir, chega Amil. Ele considera-se "abençoado” enquanto mostra o lugar onde dorme. Conseguiu montar o seu habitáculo numa pequena construção que sobrou do bairro que ali existiu há alguns anos e que foi mandado demolir pela Câmara Municipal. “Tenho um telhado debaixo do céu. Sou o mais sortudo de todos os que aqui vivem” — e que deverão ser cerca de uma dezena de pessoas, segundo o cálculo feito pelo grupo.


Chegado ao país há seis meses, este marroquino, que prefere não revelar a idade exata (“tenho mais de quarenta anos”), garante que as temperaturas desceram mesmo abaixo de zero nas últimas noites. “Estou habituado”, assegura.

Para prevenir a descida de temperatura, a autarquia do Porto fez cumprir durante dois dias o nível amarelo do Plano de Contingência para os Sem-Abrigo, que prevê que estações de metro estejam abertas durante a noite para proporcionar condições de maior conforto térmico a quem vive na rua.


Uma vaga de frio atingiu Portugal esta semana, com as temperaturas a descerem de forma mais acentuada a partir do final do dia.  Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
Uma vaga de frio atingiu Portugal esta semana, com as temperaturas a descerem de forma mais acentuada a partir do final do dia. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR

No entanto, segundo dados fornecidos pela autarquia, quem quis pernoitar dentro de portas optou pelo Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano (CATJU) — nove pessoas na terça-feira e 22 na quarta.

A Câmara adianta ainda que, nos dois dias de aplicação do Plano de Contingência, foram realizados 39 atendimentos nas duas estações de metro, a maioria na quarta-feira, dia em que todo o território de Portugal Continental esteve em alerta amarelo devido ao frio. As rotas realizadas pela autarquia na Baixa e Boavista permitiram ainda fazer um total de 127 abordagens a sem-abrigo, de que resultaram 16 encaminhamentos para o CATJU, oito em cada noite.


Os sem-abrigo da escarpa das Fontaínhas parecem ter-se mantido relativamente indiferentes a estas medidas preventivas. Das pessoas contactadas pela reportagem da Renascença, nenhuma dormiu fora do seu lugar de pernoita habitual.

Vários talhões desta zona estão a ser usados para cultivo e pequena agricultura. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR
Vários talhões desta zona estão a ser usados para cultivo e pequena agricultura. Foto: Miguel Marques Ribeiro/ RR

Sif, que ocupa uma tenda do lado poente do túnel, não sabia que podia recorrer aos locais de acolhimento temporário. O argelino de 28 anos tem, no entanto, uma certeza: os salários baixos são a principal razão para estar a viver na rua.

“Não é difícil encontrar uma casa. O difícil é encontrar um bom salário”, diz com convicção. E acrescenta: "Algo tem de mudar, até para bem dos portugueses".

"Não é difícil encontrar uma casa. O difícil é encontrar um bom salário" - Sif

Os períodos passados na escarpa têm sido intermitentes. “Às vezes, quando trabalho, pago o hostel por 350 euros por mês. Mas é tão duro para nós… Não conseguimos pagar tudo. Comprar boa comida… E viver com tranquilidade”. Resta assim voltar a montar a tenda num lugar sobranceiro ao rio.


O salário que ganha como estafeta da Glovo está longe de ser suficiente. Uma realidade partilhada com Amin, que trabalha no que "vai aparecendo", da construção à agricultura. “As rendas são caras aqui no Porto. Alugamos uma cama por 300 euros. Só a cama... podem ser seis ou oito pessoas por quarto. E eu não tenho um trabalho regular diário”, sublinha.

No entanto, nada que faça este imigrante baixar os braços. “Continuo a sorrir, a fazer a barba, a tomar banho. Sim, não perco a cabeça.”

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