Gabi não se pode mover, mas sonha ir à Argentina. Vive na única casa com cuidados paliativos para crianças

A Casa do Kastelo é a única instituição no país com atendimento pediátrico especializado para doenças incuráveis. Acolhe, atualmente, 15 crianças, que chegam de todo o país. Em Portugal, só uma em cada 10 crianças tem acesso a cuidados paliativos.

14 fev, 2025 - 21:28 • André Rodrigues



Reportagem na única casa com cuidados paliativos para crianças
Reportagem na única casa com cuidados paliativos para crianças

Quem entra na Casa do Kastelo pode esperar ver de tudo. Dentro daquelas muralhas, a vida é uma constante surpresa. Que o diga Gabriel, de 12 anos. Na casa que é a sua há oito anos é conhecido como Gabi.

“Desde que estou cá, nunca deixaram de me surpreender”, conta este menino, natural de Amarante. Foi saudável até aos três anos, quando uma encefalite o atirou para uma cadeira de rodas. A doença tirou-lhe os movimentos, ligou-o a um ventilador. Mas não lhe roubou os sonhos.

E o que pode uma criança de 12 anos querer mais do que conhecer o mundo todo? “Exatamente, é isso que eu quero.” Primeiro destino: “Argentina, Buenos Aires”, sorri, radiante, ao olhar para o tabuleiro da cadeira de rodas, carregado de autocolantes com bandeiras de países de todo o globo.

Para Gabi, cada dia é uma vitória. O Kastelo dá-lhe a segurança de que necessita para ser feliz. “Nunca me habituei a sair muito daqui”, admite.

Mas a vida pode ser tão feliz quanto é possível para um menino de 12 anos, que gosta daquilo que é comum a qualquer criança desta idade. Gabi é um confesso adepto do Benfica. Quando lhe lembram que, por agora, é o Sporting quem lidera o campeonato, o otimismo não esmorece: “ainda faltam muitas jornadas”. No futebol, como na vida. E tudo melhora quando há sonhos que se concretizam.


Fotos de vários destinos turísticos ornamentam os corredores da instituição e inspiram os residentes. Foto: RR
Fotos de vários destinos turísticos ornamentam os corredores da instituição e inspiram os residentes. Foto: RR
Renato tem cinco anos e brinca num dos baloiços da Casa do Kastelo. Foto: RR
Renato tem cinco anos e brinca num dos baloiços da Casa do Kastelo. Foto: RR


A Casa do Kastelo, em Matosinhos, é a única instituição de cuidados paliativos pediátricos do país. Foto: RR
A Casa do Kastelo, em Matosinhos, é a única instituição de cuidados paliativos pediátricos do país. Foto: RR

Em setembro de 2024, o Kastelo levou-o ao Estádio da Luz. “Concretizei logo três sonhos de uma só vez: visitei o Estádio da Luz, conheci um jogador da Seleção… o Bernardo Silva, e ainda o Nuno Ribeiro, que é um cantor de que eu gosto muito.”

“Isto não foi coincidência, foi como se me ouvissem”, recorda ainda com admiração.

Daqui para a frente, ninguém sabe quanto tempo mais a vida de Gabi poderá durar. Uma coisa é certa: nem este sorriso nem estas memórias se apagam.

“Cuidados paliativos não é para morrer, é para viver melhor”

Teresa Fraga é a mãe de todos na família do Kastelo. Em 2016 fundou aquela que, ainda hoje, é a única instituição de cuidados paliativos pediátricos do país. Fica em São Mamede de Infesta, no concelho de Matosinhos. Acolhe crianças com deficiência ou com doenças graves que exijam cuidados de fim de vida — das paralisias cerebrais profundas às insuficiências cardíacas graves.

A diretora da instituição conta que há crianças que chegam ali para morrer e que duram mais três ou cinco anos. Se investirem nelas, sublinha, nos estímulos, elas lutam e isso aumenta as probabilidades de viverem mais tempo.

A primeira ideia que quer sublinhar é a de que “cuidados paliativos não é vir para morrer… é para viver melhor. Viver melhor é ter qualidade de vida e ter qualidade de vida é não ter dor”.

“Às vezes, ouço pessoas a perguntar se existem cuidados paliativos para crianças. É claro que sim”, diz a diretora do Kastelo

É simples, nas palavras. Mais complexo na prática, porque é difícil aceitar que crianças tão jovens podem ficar gravemente doentes. “Às vezes, ouço pessoas a perguntar se existem cuidados paliativos para crianças. É claro que sim.”

Mas a diretora do Kastelo diz que o problema está exatamente aí, no facto de existir pouca consciência de que as crianças também adoecem. “Muitas vezes, logo que nascem.”

Quem entra naquele espaço, dificilmente saberá o que é uma vida com saúde. Para os pais, há uma montanha de perguntas que não encontram resposta. “Estamos a trabalhar numa expectativa de algo que é um senão”, assinala Celine Azevedo, assistente social da instituição.

A esperança é uma construção permanente que se faz um dia de cada vez e, muitas vezes, “quando estes pais chegam, essa esperança nem sequer existe”. Em cada pergunta, os pais dos meninos do Kastelo procuram conforto e garantias.


“Cuidados paliativos não é vir para morrer", sublinha Teresa Fraga, que fundou o Kastelo em 2016. Foto: RR
“Cuidados paliativos não é vir para morrer", sublinha Teresa Fraga, que fundou o Kastelo em 2016. Foto: RR
Os melhores dias da assistente social Celine Azevedo são aqueles em que uma criança recebe alta e volta a casa. Foto: RR
Os melhores dias da assistente social Celine Azevedo são aqueles em que uma criança recebe alta e volta a casa. Foto: RR


Vitória tem seis anos e sofre de paralisia cerebral. Faz uma videochamada com a família, a partir da Casa do Kastelo. Foto: RR
Vitória tem seis anos e sofre de paralisia cerebral. Faz uma videochamada com a família, a partir da Casa do Kastelo. Foto: RR

Mas o futuro é uma carta fechada. A maior parte das crianças que passam pelo Kastelo não chega a atingir os 18 anos. “Depende sempre da evolução das doenças, há coisas que não podemos assegurar aos pais. Mas, seja qual for o tempo que eles tenham, eles querem ver a criança feliz e bem cuidada.”

“Aqui todos os dias são gratificantes”, assegura a assistente social. Mas os melhores de todos são aqueles em que uma criança recebe alta e volta a casa. “É a força de que nós precisamos diariamente para vir trabalhar e dizer que vale a pena estar aqui”.

Atualmente, a Casa do Kastelo acolhe 15 crianças com necessidades paliativas. São os pais que as levam à instituição. Chegam de todo o país. Em muitos casos, são centenas de quilómetros.

Para os pais, a vida continua. A distância quebra-se numa videochamada. “É fundamental para que as crianças não se sintam abandonadas e para que os pais possam estar tranquilos”, refere Teresa Fraga.

“Eu senti que estava a abandonar a minha filha”

Todos os dias podem ser dias de visita. A porta da casa está aberta a todos os pais, a toda hora. Não há restrições.

Inês veio de Coimbra para ver a filha, que tem seis anos e nasceu com uma paralisia cerebral em último grau. Não vai andar, não vai falar… “não vai acontecer”, diz esta mulher de 28 anos, cuja experiência da maternidade virou a vida toda ao contrário.


Inês veio de Coimbra para ver a filha, que tem seis anos e nasceu com uma paralisia cerebral em último grau. Foto: RR
Inês veio de Coimbra para ver a filha, que tem seis anos e nasceu com uma paralisia cerebral em último grau. Foto: RR
Só soube da doença de Leonor na maternidade, mas teve de ser prática. "Percebi que a minha filha precisava mais de mim do que eu de chorar.” Foto: RR
Só soube da doença de Leonor na maternidade, mas teve de ser prática. "Percebi que a minha filha precisava mais de mim do que eu de chorar.” Foto: RR


Árvore de peluches nos jardins da Casa do Kastelo. Foto: RR
Árvore de peluches nos jardins da Casa do Kastelo. Foto: RR

Inês foi mãe há seis anos, quando estava quase a concluir o curso de Contabilidade. Foi um travão a fundo. O pai da menina já não a vê desde 13 de março de 2020, o dia em que a Covid-19 fechou o país em casa.

“Se a Leonor tinha de ter um pai distante, prefiro que ela nem sequer tenha noção que tem um pai. No mundo dela está tudo bem… é melhor assim”, afirma com um sorriso, que esconde a carga que ficou lá atrás, desde o dia em que soube do diagnóstico.

Estava no hospital e a neuro-pediatra abriu o jogo: “chorei nos 15 minutos de viagem para casa… depois chorei mais 10 minutos e a Leonor começou a choramingar, porque estava com fome. Foi aí que percebi que a minha filha precisava mais de mim do que eu de chorar”.

O caminho tem altos e baixos e várias curvas. Nesta experiência nada é linear. E mesmo que saiba que a entrada da filha no Kastelo foi a melhor das soluções, há uma culpa que a acompanha sempre: “eu vou deixar a minha filha… e venho embora? O que é que estou a fazer”.

“Na neonatologia, havia médicos que me disseram que daquela noite ele não passava. Mas o Fabrício fez oito anos a 7 de novembro do ano passado", conta Vera

A boa notícia é a rede familiar sempre presente. “Tive a sorte de ter o meu pai, que ficava com a Leonor para eu, por exemplo, ir treinar ou ir a um jantar com as minhas amigas. Mesmo que fossem só duas ou três horas, eu deixava de ser a mãe da Leonor para passar a ser só a Inês”.

Mas nem todas as mães têm essa sorte. Vera chegou do Brasil em 2022, depois de uma gravidez torturada por sucessivos episódios de violência doméstica.

Quando lhe perguntam se pensa voltar a São Paulo, a resposta é pausada, mas decidida: “É o meu país, mas não tem nada lá mais que me espera. Nem sequer a minha mãe fala connosco desde então.”


Os pais têm de lidar com vários sentimentos de culpa, incluindo a "questão do julgamento social”, nota a psicóloga Ana Manarte. Foto: RR
Os pais têm de lidar com vários sentimentos de culpa, incluindo a "questão do julgamento social”, nota a psicóloga Ana Manarte. Foto: RR
Vera foi vítima de violência doméstica. Tem um filho de 8 anos que não vê, não fala nem ouve. Foto: RR
Vera foi vítima de violência doméstica. Tem um filho de 8 anos que não vê, não fala nem ouve. Foto: RR


Um unicórnio espreita de um dos quartos da Casa do Kastelo. Foto: RR
Um unicórnio espreita de um dos quartos da Casa do Kastelo. Foto: RR

O filho tem oito anos. Saiu de dentro da mãe com 32 semanas de gestação. Por causa da prematuridade, não vê, não fala, não ouve, “mas só quem conhece o Fabrício vê que esse menino não tem 99% de incapacidade”.

Vera diz que precisa de estar bem para cuidar bem do filho, mas pesa-lhe na consciência a sensação de “abandono de incapaz”.

E quando pensa no dia em que pode perdê-lo, é a vida toda que se vai: “Quando estive na neonatologia, havia médicos pediatras que muitas vezes me disseram que daquela noite ele não passava. Mas o Fabrício fez oito anos a 7 de novembro do ano passado. E só me tem a mim.”

Quando uma gravidez desejada se transforma num sonho destruído, “o primeiro estado de culpa destes pais é ter de tomar uma decisão, como a de colocar a criança numa unidade de cuidados, e depois também há muita questão do julgamento social”, sublinha a psicóloga Ana Manarte.

"Os nossos problemas acabam por ser minúsculos à beira dos destes meninos”, desabafa o professor de Educação Musical

Mas não é só. “Há também a culpa por não terem conseguido fazer mais e melhor no casamento, culpa por não terem conseguido dar atenção ao outro filho”, nota.

A deficiência dos filhos é uma provação nunca superada para nenhum pai e é uma experiência solitária. Lá fora, a sociedade disfarça a pena com uma capa de empatia, mas, reforça a psicóloga, “são raras as pessoas que conseguem calçar os sapatos do outro”.

Até na hora da partida. Teresa Fraga tem experiência de sobra com situações de pais que perdem um filho e vêem todo o mundo à sua volta desaparecer: “No funeral está muita gente, na missa de sétimo dia, já só está 50%... e na missa do mês, se houver, já só estão os pais e a família mais chegada”. Em cima da dor, os dias passam-se a colar cada pedaço do universo que se desfez.

Nos dias encantados do Kastelo, a vida é feita de coisas simples e “a psicologia é tudo menos formal”. Ana Manarte diz que, muitas vezes, a reconstrução “acontece no jardim”.

“Eu acompanho uma mãe que já perdeu o filho. Agora é o pós-turbilhão de emoções e de tudo aquilo que aconteceu na vida dela", conta. "Aquilo que eu mais trabalho com esta mãe é a tranquilidade de perceber que fez tudo aquilo que podia e fazer.”


A psicóloga Ana Manarte passeia com uma das crianças que recebe cuidados paliativos na Casa do Kastelo. Foto: RR
A psicóloga Ana Manarte passeia com uma das crianças que recebe cuidados paliativos na Casa do Kastelo. Foto: RR
A Árvore das Memórias, nos jardins, presta homenagem a todos os meninos que passaram pela instituição e que já morreram. Foto: RR
A Árvore das Memórias, nos jardins, presta homenagem a todos os meninos que passaram pela instituição e que já morreram. Foto: RR


Gabriel Monteiro é professor de Educação Musical e conduz sessões de risoterapia, de guitarra na mão. Foto: RR
Gabriel Monteiro é professor de Educação Musical e conduz sessões de risoterapia, de guitarra na mão. Foto: RR

A culpa mais difícil de ignorar é aquela que não existe. “Mas esta mãe tem crescido muito”, reconhece a psicóloga, com a satisfação possível de quem sente que a missão nunca está acabada. Mas vai-se cumprindo. Um dia de cada vez.

No final do dia, a experiência do Kastelo é a de uma gratidão constante. “Vê no sorriso dos meninos, é a forma que têm de agradecer”, descodifica a diretora da instituição. E leva-se para lá das muralhas.

Gabriel Monteiro, professor de Educação Musical, assume como missão “fazer estas crianças felizes a toda a hora" e não hesita: "Isto é o nosso paraíso”.

A grande lição de vida é a relativização de tudo. “Conseguimos ver as coisas de uma forma tão feliz que às vezes os nossos problemas acabam por ser minúsculos à beira dos destes meninos”.

Gabriel, o professor, também é pai. “Somos euro milionários por termos filhos saudáveis.”

Nas suas sessões de risoterapia, de guitarra na mão, o professor Gabriel – ou pai, como muitos meninos lhe chamam – dá um passeio pelos corredores do Kastelo. Alivia a dor, acalma o sofrimento. Enche o espaço de sons e de cor. Por momentos, anula a doença e devolve a alegria.

Em Portugal, mais de 70% dos doentes com necessidades paliativas não têm acesso a estes cuidados em fim de vida. No caso das crianças, o cenário é ainda mais complexo: só uma em cada 10 recebe esta assistência. E é num Kastelo encantado que passam os seus dias.


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