Carlos (nome fictício) chegou a Portugal vindo do Brasil e há mais de um ano e meio que tem o processo empancado na AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo –, à espera dos documentos para poder trabalhar. Ficar sem rendimento não era opção.
Através da enorme comunidade de brasileiros que foi conhecendo em Portugal, apercebeu-se de que, mesmo sem a situação regularizada, havia uma profissão que poderia facilmente exercer: ser estafeta de comida. “Quem chega não tem documentos para abrir a própria conta. A solução é alugar a conta” de outra pessoa, resume, sem hesitações.
A troca faz-se boca a boca ou através das redes sociais. Multiplicam-se as mensagens em grupos privados de WhatsApp, Facebook, Messenger e Telegram, onde vários membros registados na UberEats, Glovo ou BoltFood alugam as suas contas durante uma semana, uma quinzena ou um mês.
A Renascença infiltrou-se nestes grupos para perceber como o esquema funciona e encontrou preços de aluguer que variam entre os 20 e os 60 euros à semana.
Não são casos pontuais: o padrão repete-se, está disponível em várias plataformas digitais e é confirmado por uma trabalhadora: “Isto são máfias puras, são redes de tráfico”, garante à Renascença, sob a condição de anonimato. Vamos chamar-lhe Tânia — e havemos de regressar a ela mais à frente.
Enquanto aguarda que um pedido lhe caia no telemóvel, Carlos também só aceita falar com a Renascença de forma anónima, porque sabe que o que está a fazer é ilegal. Está sentado na mesa de um dos maiores centros comerciais do país com outras três colegas de profissão e é o único que não tem uma conta própria. Está neste esquema há mais de um ano e garante que nunca teve problemas com as autoridades, nem com a plataforma.
“O dono da conta com que eu trabalho está a trabalhar na restauração e agora aluga-me a conta dele”, revela Carlos.
Ao lado, Mariana (nome fictício) completa: “A maioria das contas alugadas são de pessoas que já trabalharam como estafetas, legalizaram-se no país e agora usam esse aluguer para complementar a renda [salário]”.
O esquema é relativamente simples, mas coloca numa posição de fragilidade quem se sujeita a ele. A cada semana, o dinheiro que Carlos faz com as entregas “cai na conta” do verdadeiro dono. Faz o desconto de 40 euros por semana, os 8% de impostos, e envia o que sobrar para Carlos.
Não é a situação ideal, admite o brasileiro. Carlos diz que a mulher é “dependente” e que, ao trabalhar como estafeta, consegue a “flexibilidade” para ir levá-la ao emprego.
Não estar sujeito a este malabarismo ilegal “seria, com certeza, bem melhor” e esse é o objetivo, sublinha, o mais depressa que puder. “Só estou à espera dos documentos para ter a minha própria conta, já entreguei tudo.”
Até maio do ano passado, havia quase meio milhão de processos pendentes na AIMA. Em dezembro, o ministro da Presidência garantia que a resposta do Estado acelerou nos últimos meses e que mais de metade dos casos pendentes já tinham sido tratados. O de Carlos ainda não estava entre eles.
O estafeta diz que conhece “muitos, muitos, muitos” casos como o dele. Assume que há riscos com isso e revela que há “muitos” donos das contas que ficam com o dinheiro. Há quem trabalhe semanas a fio e nunca receba o rendimento que acumulou. Como estão em situação irregular, não podem fazer queixa.
E há outra fragilidade a que se expõem: em caso de acidente, estes estafetas estão mais desprotegidos e podem ter problemas com os seguros – sobretudo se também a moto for alugada ilegalmente.
“Não é fácil, acontece muito”, desabafa Carlos, apressado. Levanta-se da mesa pouco depois: acaba de receber um pedido no telemóvel e segue veloz para mais uma entrega.