Raquel, Simão e Carla despediram-se durante a pandemia para mudar de vida. Como o Covid-19 mudou o emprego

Os confinamentos obrigatórios forçaram milhares de pessoas a trabalhar em casa. Mas a tendência não ficou por aí. No final de 2024, havia mais portugueses em teletrabalho do que no segundo confinamento. Cada vez mais pessoas mudaram de carreira e abraçaram o remoto no pós-pandemia.

10 mar, 2025 - 22:50 • Salomé Esteves



Pandemia Covid-19, cinco anos depois. Trabalho. Ilustração: Salomé Esteves/RR
 

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Em março de 2020, milhares de trabalhadores portugueses arrumaram os seus computadores e montaram escritórios em casa. As reuniões passaram a acontecer à distância, tábuas de passar a ferro ganharam novas vidas como secretárias e muitos empregos ficaram em suspenso.

Para uns, como Raquel, a pandemia foi a oportunidade perfeita para pôr em prática um plano com alguns anos; para outros, como Carla e Simão, o incentivo para abraçar uma oportunidade que não parecia alcançável até então. São três entre um milhão de portugueses que, no final de 2024, trabalhavam remotamente, pelo menos, parte da semana.

Cinco anos depois, como estão os trabalhadores que os confinamentos fecharam em casa?


Mulher trabalha em casa. Foto: Jérémie Lusseau/Reuters
Mulher trabalha em casa. Foto: Jérémie Lusseau/Reuters

Do confinamento a 7.000 km de distância ao teletrabalho para um unicórnio

Quando a Covid-19 começou a espalhar-se pelo mundo, Raquel Cascarejo estava sozinha a mais de sete mil quilómetros de Portugal. Na altura, trabalhava como assistente de bordo em classe executiva, com base no Dubai.

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Em 2020, a pandemia fechou aeroportos pelo mundo inteiro e Raquel ficou sem voar. Os primeiros meses desse ano foram tempos de “muita tristeza e muita incerteza” na casa que partilhava com colegas de trabalho. Os problemas financeiros começavam a acumular-se com a supressão de parte do rendimento e a possibilidade de contratos terminados.

A vida que Raquel tinha há cinco anos, no Dubai, confinou-se a quatro paredes. “Descansei muito, fizemos muitos puzzles, cozinhamos muito, divertimo-nos o quanto possível”, mas, no verão de 2020, “já não estava a fazer o que fui para lá fazer”. Meio ano passou sem conseguir regressar a Portugal.


Raquel Cascarejo, num dos últimos voos como assistente de bordo, em 2020. Foto: Raquel Cascarejo/DR
Raquel Cascarejo, num dos últimos voos como assistente de bordo, em 2020. Foto: Raquel Cascarejo/DR

No verão, Raquel percebeu que estava na altura de pôr em prática o plano para o qual andava a preparar-se há anos. “Quis sempre assentar em Portugal”, mas a decisão foi sendo adiada: havia destinos a visitar, dinheiro para amealhar e promoções para conseguir. Até que chegou ao ponto em que “já não estava feliz” e tinha “a desculpa perfeita" para voltar. “A pandemia ter acontecido acelerou muito a decisão.”

Em agosto de 2020, Raquel despediu-se, tirou umas férias em Portugal e deu um mês à empresa. Em pouco mais de 30 dias, deixou o Dubai e regressou, temporariamente, para casa dos pais.

Nesse tempo, procurou atualizar-se na área em que se tinha formado anos antes: comunicação e marketing. Além de cursos curtos, aproveitou os fins de semana para fazer um curso intensivo de marketing digital estratégico.

Depois de “uns trabalhinhos” desanimadores, ingressou na atual empresa – um dos seis unicórnios portugueses – em março de 2021. O trabalho 100% remoto era o oposto daquilo a que estava habituada até então: “Estando na aviação, tinha de lidar com pessoas todos os dias e estava a sentir que precisava de me isolar um bocadinho”.

Aos 33 anos, mantém-se na empresa onde, diz, não usufrui de todos os benefícios do trabalho à distância. Como todos os seus parceiros estão nos Estados Unidos, Raquel tem “a liberdade de poder ir ao escritório quando quiser”, o que faz “pelo menos uma vez por mês”.


Da capital para Barcelos

Como Raquel, Simão Dias está, hoje, a centenas de quilómetros de onde estava em 2020.

Simão vivia e trabalhava como consultor de tecnologias de informação em Lisboa, quando, em março de 2020, o confinamento o obrigou ao teletrabalho. Ainda ficou seis meses em Lisboa mas, visto que a situação se prolongava, Simão fez as malas e mudou-se para Barcelos, em Braga, onde a namorada vivia.


Metro de Lisboa, no segundo confinamento, a partir de 15 de janeiro de 2021. Foto: Mário Cruz/Lusa
Metro de Lisboa, no segundo confinamento, a partir de 15 de janeiro de 2021. Foto: Mário Cruz/Lusa

Quando as restrições começaram a levantar, Simão foi “pressionado para regressar ao escritório, num modelo de trabalho híbrido”. Tentou negociar, porque já se sentia em casa em Barcelos, mas a empresa foi firme.

Simão teria de estar presente no escritório em Lisboa três dias por semana. “Era impossível e despedi-me."

Já no final de 2020, começou a mandar currículos e, poucos meses depois, foi admitido na empresa onde ainda trabalha, com sede no Porto. As condições eram praticamente as mesmas, mas com uma grande diferença: “Nunca impuseram idas ao escritório obrigatórias”. Idealmente, Simão desloca-se uma vez por mês de Barcelos ao Porto, mas nem isso é obrigatório.

Em 2025, com 28 anos, Simão não se imagina “a regressar às grandes cidades” e, depois de um casamento e à espera do primeiro filho, o futuro é mais claro para o casal: “Não vemos a nossa vida fora deste contexto”.

Simão não está sozinho na troca de uma grande cidade, com problemas de habitação, pelo interior. De acordo com um estudo da McKinsey Global Institute de 2023, “a frequência do escritório é menor nas áreas metropolitanas com habitação mais cara”.


Tempo para decidir com calma

Se para Simão era claro onde fazia sentido construir a vida no pós-pandemia, Carla Silva precisou de experimentar. Trabalhava há dois meses numa pequena empresa de criação de lojas online e websites quando as notícias de contágios por Covid-19 começaram a chegar à Europa.

Ainda no início de março de 2020, antes de ser obrigatório recolher, a incerteza levou Carla e os colegas a pedir para trabalhar em casa: “Não sabíamos se estávamos em perigo ou não”.

“O plano era ficar em casa mais ou menos duas semanas”, mas no fim desse tempo, “foi declarado o estado emergência e o confinamento passou a ser obrigatório”.

Na primavera desse ano, o Instituto Português de Administração de Marketing (IPAM) abriu uma pós-graduação totalmente remota. Carla inscreveu-se logo. Afinal, já andava a pensar em estudar marketing e comunicação, mas tinha adiado por medo de não conseguir conciliar trabalho, deslocações e estudo. Durante um ano, trabalhou durante o dia e estudou à noite e ao fim de semana.

Mas não era só o estudo que lhe ocupava a cabeça fora de horas. “Como os negócios físicos estavam a ser encerrados no país todo, as pessoas tiveram necessidade de criar uma presença online” e a empresa acumulou novos clientes e muito mais trabalho.

Aumentaram a responsabilidades, as chamadas a qualquer momento, a urgência. O stress era tal que Carla “já não estava sequer a conseguir dormir”. Sair da cidade, onde há barulho de noite e de dia, foi o escape. No início de 2022, pegou no computador e mudou-se para uma aldeia em Paredes de Coura, no distrito de Viana do Castelo.

Trocou o ritmo acelerado pelo silêncio e as conversas – e "muita curiosidade” dos vizinhos. Depois de se mudar para a aldeia, “parecia estava a tomar calmantes só de vir cá fora”, conta.


Carla Silva e o namorado no dia em que compraram casa em Paredes de Coura, durante a pandemia. Foto: Carla Silva/DR
Carla Silva e o namorado no dia em que compraram casa em Paredes de Coura, durante a pandemia. Foto: Carla Silva/DR

No verão de 2022, depois de adquiridos novos conhecimentos, Carla “estava pronta para avançar” na carreira. E foi, também, quando recebeu duas propostas de trabalho: uma era exatamente o queria, a outra “não era bem aquilo que tinha planeado”, mas “as condições eram melhores e havia também uma cultura de flexibilidade maior”. Decidiu arriscar pela segunda. “A escolha profissional teve mais a ver com o estilo de vida que eu gostaria de ter, mais do que outra coisa.”

Com a proposta deste novo emprego, numa empresa financeira ligada ao automóvel, também recente, voltou a fazer as malas e a regressar a Vila Nova de Gaia.

Nos primeiros meses, era preciso que a equipa estivesse presente no escritório para que se criasse uma cultura. Mas a promessa da flexibilidade cumpriu-se e o sonho em 2025, aos 32 anos, é comprar uma casa ainda mais no interior, no meio termo entre a aldeia e a cidade.


“O nosso standard é o standard da nossa população”

A pandemia não mudou apenas como se trabalha, mas também como se emprega.

Beatriz Gomes gere as parcerias, recompensas e benefícios na Blip. A empresa tecnológica, fundada em 2009, sempre teve uma inclinação para a flexibilidade: “Nem sequer temos o conceito de picar o ponto”.

Hoje, oferecem três modalidades de trabalho: teletrabalho, híbrido ou totalmente presencial. Mas Beatriz confirma que a vasta maioria dos trabalhadores – cerca de 90% em 1000 não vai regularmente ao escritório no centro do Porto.

“Embora nós não façamos qualquer tipo de controlo do número de vezes em que as pessoas visitam um escritório, ele está disponível a qualquer momento e, portanto, o nosso standard é o standard da nossa população.”


Com a pandemia, não foi a flexibilidade a provocar maiores mudanças para a Blip, mas o perfil de quem se candidata. Se “há uns anos, a talent pool era muito focada na área e na região do Porto”, hoje, a empresa olha para “a disponibilidade de talento num prisma nacional” e tem colaboradores “a partir da Madeira, do Algarve ou de Lisboa”.

E não foi a única alteração. Depois da Covid-19, Beatriz nota que há um aumento de trabalhadores que fizeram uma reconfiguração de carreira. Enfermeiros, psicólogos, militares – entre muitas outras carreiras – aproveitaram, como Raquel Cascarejo, para fazer cursos e formações em áreas alternativas e arriscar uma carreira tecnológica.

Beatriz vê essa alteração de perfil como uma mais-valia: “A diversidade não é só da etnia ou de género, é também muito do 'background' de cada pessoa”. Geralmente, acrescenta, as pessoas que fizeram grandes alterações de carreira trazem “competências comportamentais que as diferenciam” e que ajudam a construir “uma solução muito mais inovadora e muito mais rica”.

“O teletrabalho sempre foi viável”? Os números sugerem que sim

A permanência de milhares de trabalhadores em teletrabalho após o fim das restrições e dos confinamentos provou que, em muitos casos, “o teletrabalho sempre foi viável”, concluiu o Gabinete de Estratégia e Estudos do ministério da Economia, em junho de 2024.

Aliás, um estudo do Grupo Internacional do Local de Trabalho (IWG, International Worksplace Group) alerta que as empresas que continuem a esperar que os trabalhadores passem por horas de deslocações para estar presencialmente no escritório podem enfrentar ondas de pedidos de demissão.

Porque, conclui a mesma organização, dois terços das empresas (67%) observaram um aumento de candidatos que procuram deixar trabalhos que impuseram um regresso ao escritório cinco dias por semana.

O Instituto Nacional de Estatística (INE) só começou a fazer o levantamento dos trabalhadores em teletrabalho ou modelos híbridos a partir do primeiro trimestre de 2021, quando começou o segundo confinamento (a 15 de janeiro). Estes dados mostram que o trabalho à distância não dá sinais de abrandar em Portugal.


De facto, nos últimos seis meses de 2024 mais pessoas – em número absoluto e em proporção da população ativa – trabalharam em casa do que durante o confinamento obrigatório do início de 2021. Na transição para 2025, eram uma em cada cinco ou, no total, mais de 1,1 milhões.

Hoje, Portugal está abaixo da média da UE no número de pessoas que trabalham à distância. Mas o país foi o primeiro Estado-membro a estabelecer um regime jurídico do teletrabalho, em 2003. Depois da pandemia e de o teletrabalho ter sido temporariamente imposto “como meio para mitigar o risco de contágio”, foram introduzidas alterações à lei do trabalho.


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