Os miúdos não estão OK. Violência está a aumentar entre jovens e anda de mão dada com o telemóvel

Rita, Filipe e Gustavo não se conhecem, mas têm em comum terem sido vítimas de violência na escola. Os números oficiais dizem-nos que a delinquência juvenil está a crescer, enquanto pais e escolas trocam culpas sobre o assunto. Crescer numa família estável, ou até frequentar uma escola privilegiada, já não protege ninguém de se tornar agressor, vítima ou testemunha. A violência sem filtro está nos telemóveis, a companhia que mais preenche o dia dos adolescentes. Demasiadas vezes sem censura.

25 mar, 2025 - 07:00 • Ana Kotowicz , Salomé Esteves (ilustrações e gráficos)



Os miúdos não estão OK. Reportagem de Ana Kotowicz

Não é preciso ver “Adolescência” na Netflix para ficar assustado. Basta olhar para o histórico de notificações que nos pesa no bolso. Aluno ameaça colegas com faca em Sintra. Jovem agredido com catana junto à escola de São João do Estoril.

Nas últimas semanas, a perceção -- que arrisca ser eleita palavra do ano -- é a de que o telemóvel nos chama demasiadas vezes para este assunto. A notícia parece ser sempre a mesma. Mas não é.

Aluno autista brutalmente agredido na Moita. Alunos filmam agressor a dar socos a colega no Barreiro. Jovens agridem-se durante uma aula e um segue para o hospital. Aluno atira cadeira à professora.

Enquanto o dedo faz scroll nestas notícias, fazendo swipe nas que não quer ler, Rita, Filipe e Gustavo vivem na pele agressões físicas, verbais e psicológicas. As sequelas? Rita, 16 anos, começou a mutilar-se e a ter ataques de pânico. Gustavo, 15 anos, fala em suicídio. Filipe, 9 anos e no espectro do autismo, diz que nunca devia ter nascido. Os nomes dos três são fictícios e os pais também pedem anonimato para contar estas histórias, por medo de que os filhos sofram mais nas escolas, todas em Lisboa.

A perceção encontra sustento nos números. O mais recente Relatório Anual de Segurança Interna, o RASI de 2023, mostra um crescimento evidente da delinquência juvenil. Os valores preliminares divulgados em 2024 -- da Escola Segura, da APAV, ou de diversos estudos sobre bullying -- dizem-nos que o padrão vai continuar.

Mas números fechados, oficiais, não se sabe quando serão conhecidos. A apresentação do RASI ainda por este Governo depende de Luís Montenegro, esclareceu a ministra da Justiça na semana passada. O RASI tem de ser apresentado no Parlamento (a lei dita como data limite 31 de março), mas a Assembleia da República está dissolvida. Mesmo que a entrega não seja posta em causa, é certo que o habitual debate não acontecerá. O Expresso avançou alguns valores esta segunda-feira, mas são dados provisórios.

Sobre as causas, os especialistas com que a Renascença falou apontam várias: as escolas são um reflexo da sociedade que está mais agressiva, os movimentos extremistas estão a crescer, a pandemia deixou sequelas, e a cultura do "eu" espalha-se como um vírus...

Mas há um motivo que todos sublinham, com um marcador amarelo fluorescente: já não é preciso assistir a violência em casa para mimetizar comportamentos agressivos. Sem filtro, sem censura, grande parte das crianças e jovens encontra um mundo no telemóvel que, fora do espaço virtual, lhes está barrado por não ser adequado às suas idades.


Rita foi excluída, Gustavo foi filmado, Filipe agredido

“Fico logo muito preocupada se alguma escola, algum colégio, me diz que ali não há bullying, porque isso não é verdade em contexto nenhum e, portanto, é perigoso.” Raquel Raimundo é especialista em psicologia de educação e autora de “Devagar se vai ao longe”, um programa de promoção de competências socioemocionais que pretende dar ferramentas aos alunos para evitarem situações como as de violência.

“Isso significa que a pessoa está a fazer como a avestruz e a não olhar para o problema. Importante é admitir e pensar em práticas preventivas para evitar novos casos”, aconselha.

Nos casos de Rita, Filipe e Gustavo, os pais queixam-se de que as escolas falharam ao não perceberem o que se passava e, depois de avisadas, por não terem atuado. "Eu não culpo as crianças, culpo a escola", diz a mãe de Filipe.

Rita, 16 anos, mudou de turma e até de escola, depois de vários anos a ser vítima de bullying. Sofria agressões psicológicas, uma violência típica das raparigas, quando são elas as agressoras. Foi posta de parte e as redes sociais foram usadas para evidenciar o seu isolamento. Os pais tentaram falar com os pais das agressoras, que desvalorizaram a situação. E quando aconselharam os adultos a lerem o que se passava nos grupos de whatsapp dos filhos, isso acabou por ser usado contra Rita.

"Convidaram-na para uma festa e deixaram-na sozinha, enquanto os outros todos estavam a brincar. Eu chamo-lhe o bullying silencioso, porque não é uma coisa física, mas psicológica, que é fazer de propósito para pôr de parte", conta a mãe de Rita que, inicialmente, desvalorizou os relatos.

Foi quando a filha começou a ter os primeiros ataques de pânico que os pais perceberam que o problema era mais grave do que pensavam.


[Ouça os relatos dos pais na Grande Reportagem da Renascença, na Edição da Noite desta terça-feira. Ficará também disponível no Spotify]


Filipe, aluno do 3.º ano, está no espectro do autismo. Falar sobre o que lhe acontece nem sempre é fácil e foi através dos amigos que a mãe se apercebeu de que o filho era agredido no recreio da escola primária. A situação mais grave foi quando chegou a casa com vergões nos braços, depois de ter sido pisado pelos colegas. Apesar dos vários contactos que fez junto da escola, a resposta foi sempre que ninguém sabia de nada. Tentou transferir o filho dentro do agrupamento, sem sucesso. Acabou por mudá-lo para um colégio.

"Já tinha medo de ir para a escola. Dizia que ia para a escola só para lhe baterem. Chegou a dizer-me que não devia ter nascido, porque ele nasceu para levar tareia dos amigos, que todos lhe batiam na escola", recorda a mãe de Filipe.

Gustavo foi filmado quando usava a casa de banho. A ideia de ver essa imagem nas redes sociais preocupa-o até hoje. Foi filmado noutras situações e ouviu ameaças de levar pancada. Tem um quadro clínico de depressão e ideação suicida.

"O meu filho falou em suicídio muitas vezes. As duas pessoas que o acompanham dizem que está numa situação borderline e não é fácil porque há altos e baixos. Acho que ele não vai reagir e fazer mal a esses colegas, porque não é da maneira de ser dele, mas o meu medo mesmo é que ele faça mal a ele próprio", confessa a mãe de Gustavo.

A escola foi avisada, mas nada mudou. Quando os pais falaram com os pais dos agressores perceberam que nunca tinham sido avisados do que se passava e encontram neles alguma solidariedade.

“Às vezes os pais ficam tristes ou até zangados com a escola, porque a escola não se apercebeu de que o filho estaria a ser maltratado”, diz Raquel Raimundo, frisando que as práticas de bullying são muito escondidas, habitualmente acontecem nos recreios, longe da supervisão de um adulto. “Os próprios pais às vezes só se dão conta quando os filhos já não querem ir à escola.”

Na pré-pandemia, em 2018, a Unesco fez um estudo com 144 países que revelava que um terço das crianças já esteve envolvida em práticas de agressão em contexto escolar, “uma minoria muito grande”. Portanto, conclui a psicóloga, “não há escolas que não tenham” casos de violência.

Em Portugal, o RASI 2023 dá conta de 1.833 ocorrências de delinquência juvenil (crimes praticados por jovens entre os 12 e os 16 anos) -- um aumento de 8,7% e o número mais alto desde 2017. É na área metropolitana de Lisboa -- onde ficam as escolas de Rita, Filipe e Gustavo -- que existe maior número de ocorrências, com destaque para os concelhos de Loures e da Amadora.

Houve ainda 2.048 detenções (+13,1%) relacionadas com criminalidade grupal -- definida como o crime praticado por três ou mais suspeitos. Aumentou 14,6% em 2023: um total de 6.756 ocorrências, o valor mais elevado desde 2014.


Rapazes lutam, raparigas usam silêncio como arma

Luísa Sá, vice-diretora do Colégio Horizonte, no Porto, um colégio só para raparigas, tem feito investigação sobre o modelo "single sex" e sobre as vantagens que pode haver em separar rapazes e raparigas nas escolas. No seu colégio, os conflitos existem, mas acha que tem mais ferramentas para resolvê-los do que numa escola mista.

“No caso das raparigas, o bullying é maioritariamente relacional. As raparigas e as mulheres -- porque isto persiste na vida adulta --, usam a relação como uma arma. Usam o silêncio como uma arma. Usam o olhar como uma arma”, conta a professora.

Já nos rapazes, o bullying é “muitíssimo mais físico”: eles “processam a informação emocional em áreas do cérebro que não estão ligadas à linguagem e, portanto, a sua reação emocional é maioritariamente uma reação física”.

Se o tipo de bullying é diferente, também as estratégias para atacá-lo deveriam ser diferentes e é mais fácil para um rapaz falar de emoções quando não há raparigas na sala, acredita Luísa Sá. A vice-diretora do Colégio Horizonte acredita que uma das razões porque não se está a dar boas respostas ao bullying em Portugal é porque os professores continuam a olhar para os alunos como um todo, que é tudo e não é nada.

“O que acontece numa escola mista é que, perante a exuberância dos rapazes, um olhar matador de uma rapariga não é visto. E num contexto feminino, isto é trabalhável”, considera.

As agressões entre jovens estão a aumentar, e isso é um facto inegável. Mais um exemplo é a violência no namoro. Os dados provisórios de 2024 mostram que a GNR registou 1.592 crimes (em 2023 eram 1.497) e a PSP 1.412 queixas (mais 49).

Mas, nos recreios, há lutas que sempre existiram e que são saudáveis. Aprende-se a gerir conflitos, como diz Luísa Sá.

“Aquilo que eu observo com as minhas alunas são comportamentos normais, de raparigas normais. Uma rapariga de 12 anos a olhar de lado para uma colega? Claro que acontece, tem que acontecer, faz parte do desenvolvimento. O que é preciso é dar resposta a isto”, defende a professora, que gosta de dar um exemplo muito concreto quando fala com os pais. “A birra faz parte do desenvolvimento. É estranho que uma criança de três anos não faça birras. O que não pode acontecer é ela aos 10 anos ainda fazer birras.”

Voltando às diferenças entre rapazes e raparigas, Luísa Sá recorda o filme “Divertida-mente 2”, que fala sobre as diferentes emoções e nos leva à sala de controlo do cérebro de Riley, a protagonista. Numa cena, a amiga da adolescente levanta a sobrancelha e a rapariga perde-se em pensamentos sobre o que aquilo poderá significar. “O que é que ela quer dizer com aquela sobrancelha? Isto para um rapaz é impensável, não é? Para uma rapariga pode estragar um dia inteiro.”

Muitas das agressões, as que acontecem no 3.º ciclo e no secundário, estão relacionadas com a adolescência e com o desenvolvimento do cérebro. A parte que ajuda a tomar boas decisões, o córtex pré-frontal, é a última camada do cérebro a amadurecer: só se desenvolve completamente por volta dos 25 anos.

Na adolescência, usa-se a amígdala para tomar decisões. Só que esta parte do cérebro está associada aos impulsos, à agressividade e aos instintos.

Além disso, Luísa Sá recorda que partilhamos 96% do nosso ADN com os primatas e, apesar de os 4% fazerem toda a diferença, a base comum é muito determinante em termos de comportamento. “Dois machos na selva, quando lutam, a seguir são 'best buddies', não há questão nenhuma. Mas os primatólogos observam que duas fêmeas que lutam na selva nunca mais se olham nos olhos. Portanto, eu tenho uma palavra de código com as minhas alunas que é 'gorila'. Quando eu digo 'gorila', elas já sabem do que é que nós estamos a falar.”


Quando as testemunhas filmam e não interferem

Numa história de violência, primeiro olha-se para a vítima, depois para o agressor. Mas há um terceiro protagonista que não pode ser esquecido: a testemunha, explica a psicóloga Raquel Raimundo.

Uma agressão extrema pode deixar marcas irreparáveis, como acontece nos tiroteios em escolas nos Estados Unidos, onde o trauma acompanha as testemunhas até à vida adulta. Mas é nessas testemunhas que pode residir o travão da violência.

“Há uma situação que acontece com alguma regularidade, que é haver miúdos a serem agredidos e haver testemunhas que, em vez de ajudarem, ainda estão a filmar para depois colocar nas redes sociais”, recorda a psicóloga.

No caso de Gustavo, a ideia de ver uma imagem sua na casa de banho espalhar-se pelas redes sociais preocupa-o até hoje. Se um dos presentes tivesse impedido a gravação, talvez o problema não tivesse escalado.

E é esta a importância das testemunhas de que Raquel Raimundo fala, sublinhando que durante muito tempo só se pensava nas vítimas e nos agressores. “As testemunhas são importantíssimas. Quem leva a travar situações de bullying ou de violência são sobretudo as testemunhas, ao retirarem palco aos agressores, ao apoiarem mais as vítimas.”

Importante, insiste Raquel Raimundo, é trabalhar com as crianças para que elas percebam que mesmo que não gostem de outro aluno, podem ser bons colegas. É uma questão de competências socioemocionais que, na opinião da psicóloga, deveriam ser trabalhadas nas escolas em disciplinas como Cidadania. “Muitas vezes, as testemunhas, aquilo que nos dizem é ‘eu não fiz nada’. E, então, é levá-las a perceber que isso é um problema. Quando vejo alguém ser maltratado, ser humilhado, a ser retirada a sua dignidade, e eu estou a ver e não faço nada… Não fazer nada é um problema.”

Luísa Sá também fala desta falta de capacidade de os jovens se colocarem no lugar do outro. “Na última vez que vi dados científicos fiquei chocada com o facto de hoje percebermos que a atual geração dos jovens tem, em média, menos 40% de empatia do que a geração anterior e, portanto, isto é um número muito assustador, é um número muito preocupante.”

O estudo, de S. Konrath, Edward O'Brien e Courtney Hsing, analisou dados de pesquisas conduzidas entre 1979 e 2009. A queda mais acentuada na empatia ocorreu a partir de 2000. Cada vez mais estudantes dizem não ser problema seu ajudar pessoas em apuros ou tentar ver o mundo pela perspetiva de terceiros.

“É mais difícil para o estudante universitário de hoje ter empatia pelos outros porque grande parte de sua vida social é feita através de um computador e não através de interações na vida real”, defendeu O'Brien na altura. "A nossa melhor sugestão é esforçar-se para sair um pouco do computador todos os dias e tentar recordar-se como é relacionar-se com outras pessoas no mundo real.”


Ilustração: Salomé Esteves/RR
Ilustração: Salomé Esteves/RR

Os filhos da violência doméstica

Miguel Rodrigues, autor do livro “Violência nas Escolas”, acredita que a prevenção da delinquência juvenil não se faz sem se reduzir a violência nas famílias. Este é, para o investigador, um dos motivos para o aumento da violência entre jovens. Mas há outros.

Desde logo, o facto de a relação interpessoal ser menos física e mais digital ou por estarmos a viver mais uma cultura do "eu", diz Luísa Sá -- que costuma lançar às alunas o desafio de contarem quantas selfies têm no telefone, quantas fotografias de amigos, quantas do mundo. “As pessoas cada vez mais tiram fotografias a si próprias e não aos outros, há uma falta de sensibilidade em relação ao outro e uma grande dessensibilização relativamente à violência, que está muito generalizada.”

Voltando às agressões dentro da família, Miguel Rodrigues tem um novo estudo em mãos. Há seis anos que acompanha os filhos da violência doméstica, 1.500 jovens que assistiram a agressões dentro de casa.

“O ambiente da violência doméstica é o grande causador do jovem delinquente”, diz o investigador, frisando que estes jovens apresentam valores 2 a 3 vezes superiores em quase todas as variáveis que podem ser relacionadas com a delinquência. Quando se fala em ilícitos cometidos nas escolas, cometem 48 vezes mais do que outros estudantes. “Consomem 2 a 3 vezes mais drogas. Reprovam 5 vezes mais do que a média nacional. Todos os números são superiores, incluindo a criminalidade”, lamenta o investigador.

Quanto aos números gerais, Miguel Rodrigues acrescenta mais um dado: os números de 2024 mostram que há quase 150 jovens internados em centros educativos (no RASI de 2023 eram 128). “Já falamos aqui de três itens -- delinquência juvenil, jovens internados em centro educativo, jovens agressores de violência no namoro -- nos últimos cinco anos e o valor mais recente é o mais elevado dos últimos cinco anos. Está tudo a aumentar.”

Mas há mais. Miguel Rodrigues fala das crianças que assumem comportamentos que afetam o seu bem-estar, uma variável que surge no relatório de 2023 da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco.

“Em 2011, tínhamos 3.785 crianças nesta variável. Em 2023, o valor mais elevado de sempre, 10 mil: quase triplica. Em 2023, são números com uma percentagem, um aumento extremamente considerável. Mais de 80% em 2023, em relação à média destes últimos 15 anos. Todos os valores nos últimos 5 anos mostram que está tudo a aumentar, e alguns de forma abismal.”

Se há mais de tudo, o que não há é detalhe: não se conhece o perfil do agressor nem da vítima. Na violência no namoro, não é possível perceber em que idade há mais agressões, nas ofensas sexuais não se sabe quantas delas são violações, e por aí fora.

É por isso que Miguel Rodrigues, que já fez parte do programa Escola Segura, da PSP e é investigador do ICPOL -- Centro de Investigação do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna --, pede mais e melhores números em fontes abertas.

E deixa um último alerta. Quando se ordena por tipologia, diz o investigador, a ofensa à integridade física tem o maior número de registos. O furto está em segundo, ameaças e injúrias, em terceiro. Mas não são estes os casos que mais o preocupam.

“A seguir ao roubo, surge um crime dos mais relevantes, que são as ofensas sexuais. Estamos a falar de uma média de quase 103 ofensas sexuais por ano letivo. Deve preocupar-nos a todos porque estamos a falar de uma média de 170 dias de aulas efetivas. Estamos a falar de quase uma por dia, porque os números às vezes são mais elevados. Por exemplo, em 2021 e 2022, foram 174, ou seja, uma por dia.”

Os dados provisórios da PSP referentes a 2024 apontam para 86 ofensas sexuais, às quais ainda falta somar as registadas pela GNR.


Quando o telemóvel é um agente (des)educativo

Os telemóveis deveriam ser tratados como cigarros e proibidos até aos 16 anos. A ideia é de Jack Thorne, argumentista de “Adolescência”, a série que explora os motivos que levaram um adolescente de 13 anos a assassinar uma colega. "Spoiler alert": os conteúdos que via no "smartphone" tiveram um papel decisivo na conclusão da história.

Por cá, o cronista Daniel Oliveira já fez uma comparação semelhante: “Um dia olharemos para uma criança com um 'smartphone' como se estivesse a fumar”, escreveu no Expresso.

Para a psicóloga Raquel Raimundo, um telefone nas mãos de uma criança ou adolescente tem de coexistir com supervisão parental. A violência que lhes passa pelos dedos tem de ser filtrada, e posta em contexto, pelos pais, para evitar a dessensibilização. Mas com jovens entregues cada vez mais a si mesmos, muitas vezes porque os horários de trabalho dos pais não permitem que seja de outra forma, o telemóvel tornou-se no principal agente educativo de uma geração. Só que não educa.

Por isso, já não importa apenas se há violência dentro da família. Importa também saber que violência encontram as crianças nos ecrãs, diz Raquel Raimundo, psicóloga.

“Antes estavam muito dependentes, sobretudo, do quê? Se existia ou não violência na própria família e se havia modelos primários de violência, ou pouca supervisão parental também. Estavam dependentes do bairro, da comunidade onde estavam inseridos", defende.

Só que hoje há "miúdos que passam mais horas online do que com a família" ou do que na escola. "Justamente por isso está ali outro agente educativo que antes não existia. E neste momento, em algumas crianças e adolescentes, é o principal agente educativo. Isso é preocupante.”

Pais e escolas, uma relação difícil

Ninguém nega que há agressividade entre os jovens, mas não é unânime dizer que ela aumentou. E se os pais de Rita, Filipe e Gustavo se queixam de falta de resposta das escolas, entre os diretores há a ideia de que o conflito e a falta de diálogo com os encarregados de educação está a piorar.

Falando pelos colégios, Rodrigo Queiroz e Melo, da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), diz não sentir que as escolas privadas estejam mais violentas. Em contrapartida, nota que é dada mais atenção à violência entre os jovens e àquela que está associada ao mundo digital. “Acaba por haver novas formas de se ser vítima e agressor no mundo digital. E jovens que não tinham tanta propensão para a violência, por ser uma coisa muito visível, sentem-se mais empoderados para serem agressores no segredo do mundo digital.”

Na escola pública, tal como na sociedade, Filinto Lima diz que após a pandemia estão todos menos pacientes. “Em vez de conversar, parte-se para o impropério, para a agressão”, diz o presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP). Para dar conta do problema, gostava de ter mais recursos humanos: psicólogos, assistentes operacionais, assistentes sociais e até mediadores de conflitos.

No Agrupamento de Escolas Padre Bartolomeu Gusmão, em Campo de Ourique, o diretor Jorge Nascimento acredita que não há mais agressões, mas sente que a intensidade dos conflitos mudou.

“Antes os miúdos resolviam mais as coisas, um empurrão para a esquerda e uma chapada para a direita, e o assunto ficava resolvido. Hoje, a agressão que existe deixa mais marcas, é mais dolorosa, porque ficam marcas que não são físicas.” O diretor vê também maior perversidade nos atos dos jovens: “Socorrem-se da panóplia de tecnologias que têm ao dispor e há muita agressividade.”


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Os pais nem sempre ajudam. ”Muitas vezes, não sei porquê, culpam as escolas de tudo e de nada. Era importante que os pais percebessem a missão das escolas. Não há nenhuma escola que esteja contra um aluno, que esteja contra um pai”, defende Filinto Lima.

Além disso, a autoridade dos adultos já não é o que era. “Há uma perda de autoridade dos pais, que muitas vezes são enganados pelos filhos, embora jurem a pés juntos, quando vêm falar com os diretores, que o filho não mente. Os pais confiam de uma forma infinita nos filhos, e desconfiam de uma forma infinita das escolas”, conta Filinto Lima. “Há alguns pais que não veem a escola como um parceiro, veem como um adversário e o conflito agudiza-se.”

Para Jorge Nascimento, alguns dos problemas “vêm dos grupos de whatsapp dos pais, mais do que dos miúdos” que, muitas vezes, interferem com as discussões dos alunos e acabam com “um pai a pedir satisfações a outro pai”.

De repente, “está toda a gente envolvida nisto, quando aquilo seria uma coisa entre garotos". E resolver o problema "entre garotos faz parte do crescer, de saber resolver conflitos, de saber estar com o outro”.

Os casos de Rita, Filipe e Gustavo não caem na fatia de conflitos de recreio que podem ser resolvidos sem a ajuda do adulto. Os três precisaram de ajuda médica, de ser medicados, e revelaram transtornos de saúde mental, como ansiedade, depressão ou fraca autoestima.

Rita está hoje mais integrada na escola, mas continua a precisar de medicação. Gustavo está sob vigilância médica e os pais, que ainda temem que possa fazer mal a si próprio, pensam pedir transferência para outra escola. Filipe encontrou sossego no colégio novo, mas para pagá-lo a mãe teve de dar a volta à sua vida profissional. Em nenhum dos casos é certo que as agressões tenham chegado ao fim.



Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal

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