Rita foi excluída, Gustavo foi filmado, Filipe agredido
“Fico logo muito preocupada se alguma escola, algum colégio, me diz que ali não há bullying, porque isso não é verdade em contexto nenhum e, portanto, é perigoso.” Raquel Raimundo é especialista em psicologia de educação e autora de “Devagar se vai ao longe”, um programa de promoção de competências socioemocionais que pretende dar ferramentas aos alunos para evitarem situações como as de violência.
“Isso significa que a pessoa está a fazer como a avestruz e a não olhar para o problema. Importante é admitir e pensar em práticas preventivas para evitar novos casos”, aconselha.
Nos casos de Rita, Filipe e Gustavo, os pais queixam-se de que as escolas falharam ao não perceberem o que se passava e, depois de avisadas, por não terem atuado. "Eu não culpo as crianças, culpo a escola", diz a mãe de Filipe.
Rita, 16 anos, mudou de turma e até de escola, depois de vários anos a ser vítima de bullying. Sofria agressões psicológicas, uma violência típica das raparigas, quando são elas as agressoras. Foi posta de parte e as redes sociais foram usadas para evidenciar o seu isolamento. Os pais tentaram falar com os pais das agressoras, que desvalorizaram a situação. E quando aconselharam os adultos a lerem o que se passava nos grupos de whatsapp dos filhos, isso acabou por ser usado contra Rita.
"Convidaram-na para uma festa e deixaram-na sozinha, enquanto os outros todos estavam a brincar. Eu chamo-lhe o bullying silencioso, porque não é uma coisa física, mas psicológica, que é fazer de propósito para pôr de parte", conta a mãe de Rita que, inicialmente, desvalorizou os relatos.
Foi quando a filha começou a ter os primeiros ataques de pânico que os pais perceberam que o problema era mais grave do que pensavam.
[Ouça os relatos dos pais na Grande Reportagem da Renascença, na Edição da Noite desta terça-feira. Ficará também disponível no Spotify]
Filipe, aluno do 3.º ano, está no espectro do autismo. Falar sobre o que lhe acontece nem sempre é fácil e foi através dos amigos que a mãe se apercebeu de que o filho era agredido no recreio da escola primária. A situação mais grave foi quando chegou a casa com vergões nos braços, depois de ter sido pisado pelos colegas. Apesar dos vários contactos que fez junto da escola, a resposta foi sempre que ninguém sabia de nada. Tentou transferir o filho dentro do agrupamento, sem sucesso. Acabou por mudá-lo para um colégio.
"Já tinha medo de ir para a escola. Dizia que ia para a escola só para lhe baterem. Chegou a dizer-me que não devia ter nascido, porque ele nasceu para levar tareia dos amigos, que todos lhe batiam na escola", recorda a mãe de Filipe.
Gustavo foi filmado quando usava a casa de banho. A ideia de ver essa imagem nas redes sociais preocupa-o até hoje. Foi filmado noutras situações e ouviu ameaças de levar pancada. Tem um quadro clínico de depressão e ideação suicida.
"O meu filho falou em suicídio muitas vezes. As duas pessoas que o acompanham dizem que está numa situação borderline e não é fácil porque há altos e baixos. Acho que ele não vai reagir e fazer mal a esses colegas, porque não é da maneira de ser dele, mas o meu medo mesmo é que ele faça mal a ele próprio", confessa a mãe de Gustavo.
A escola foi avisada, mas nada mudou. Quando os pais falaram com os pais dos agressores perceberam que nunca tinham sido avisados do que se passava e encontram neles alguma solidariedade.
“Às vezes os pais ficam tristes ou até zangados com a escola, porque a escola não se apercebeu de que o filho estaria a ser maltratado”, diz Raquel Raimundo, frisando que as práticas de bullying são muito escondidas, habitualmente acontecem nos recreios, longe da supervisão de um adulto. “Os próprios pais às vezes só se dão conta quando os filhos já não querem ir à escola.”
Na pré-pandemia, em 2018, a Unesco fez um estudo com 144 países que revelava que um terço das crianças já esteve envolvida em práticas de agressão em contexto escolar, “uma minoria muito grande”. Portanto, conclui a psicóloga, “não há escolas que não tenham” casos de violência.
Em Portugal, o RASI 2023 dá conta de 1.833 ocorrências de delinquência juvenil (crimes praticados por jovens entre os 12 e os 16 anos) -- um aumento de 8,7% e o número mais alto desde 2017. É na área metropolitana de Lisboa -- onde ficam as escolas de Rita, Filipe e Gustavo -- que existe maior número de ocorrências, com destaque para os concelhos de Loures e da Amadora.
Houve ainda 2.048 detenções (+13,1%) relacionadas com criminalidade grupal -- definida como o crime praticado por três ou mais suspeitos. Aumentou 14,6% em 2023: um total de 6.756 ocorrências, o valor mais elevado desde 2014.