Crescem em casas sem livros e sem jornais. "Os alunos da Baixa da Banheira ouvem que vão ser sempre bandidos"

Pelo segundo ano consecutivo, a Escola Secundária da Baixa da Banheira fica no último lugar dos rankings. Há pobreza, dificuldades sociais e alunos que se habituaram a ouvir que serão sempre bandidos e que terão os piores empregos, mas também há um diretor que os defende e o "herói" Neemias Queta que, de uma empena de um prédio, pode ser a imagem de que é possível quebrar o ciclo das dificuldades.

04 abr, 2025 - 00:00 • Cristina Nascimento



Ranking das Escolas. Escola Secundária da Baixa da Banheira é a última escola da lista. Ilustração: Salomé Esteves/RR
Ranking das Escolas. Escola Secundária da Baixa da Banheira é a última escola da lista. Ilustração: Salomé Esteves/RR

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O relógio bate quase as 17h00. Ao fundo, ouve-se música, alunos a cantar, batem palmas e riem. O diretor da escola aproxima-se e sorri (até um pouco emocionado) para o grupo que vai também lançando algumas piadas aos jornalistas da Renascença no local. Estamos na Escola Secundária da Baixa da Banheira, a escola que teve a pior classificação nos rankings de 2024.

Não é uma novidade. “Há já muitos anos que a escola deixou de ficar perturbada por causa dos rankings”, começa por dizer José Lourenço, diretor da escola, localizada na Moita, distrito de Setúbal. Ainda assim, admite que “entristece por muitas razões”.

“A primeira é porque nós, o corpo docente e as famílias, achamos que os rankings comparam resultados de contextos tão diferentes que a comparação acaba por não ser significativa”, diz.

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Para o ranking das escolas contam as notas dos exames de 12.º ano, nos cursos cientifico-humanísticos. Ora, na Escola Secundária da Baixa da Banheira essa é a realidade de apenas duas meias turmas, uma de ciências, outra de humanidades que “conseguem chegar ao fim do 12.º ano”. Serão cerca de 30 alunos, num universo de 1.500 alunos, que fizeram apenas 115 provas e com uma média de 6,35 valores.

Na Secundária da Baixa da Banheira as aulas começam pelas 8h00 e a escola funciona até à meia-noite. Há aulas para os científico-humanísticos, mas também são lecionados nove cursos profissionais e ainda a formação de adultos.

Quisemos saber o que falta à escola para ter melhores resultados. Mais professores, mais assistentes operacionais, mais investimento?

“A brincar, eu costumo dizer que bastaria a escola mudar para outro lugar, para dois ou três quilómetros de distância”, diz José Lourenço, professor de Físico-Química, na escola há 36 anos, os últimos 11 como diretor.

Lourenço lembra que “o contexto das famílias e dos jovens é determinante nos resultados escolares", como "vários estudos internacionais o demonstram”. E, nesta escola, o ponto de partida dos alunos é mais difícil.


“A brincar, eu costumo dizer que bastaria a escola mudar para outro lugar, para dois ou três quilómetros de distância”, diz José Lourenço, professor de Físico-Química, na escola há 36 anos, os últimos 11 como diretor.

“Estamos a falar de alunos cuja história de família, e a pessoal, não é muito ligada à academia. Crescem sem livros em casa, sem jornais. Os próprios pais têm uma formação académica muito frágil”, descreve, explicando que isso, depois, tem consequências nas aprendizagens.

José Lourenço diz que “o tempo que eles levam a fazer as aprendizagens académicas de nível mais elevado é muito grande, levam muito mais tempo a aprender os mesmos conteúdos do que outros alunos com um histórico de escolarização mais adequado”.


José Lourenço há 11 anos diretor da Escola Secundária da Baixa da Banheira. "Adoro a minha escola". Foto: Ricardo Fortunato/RR
José Lourenço há 11 anos diretor da Escola Secundária da Baixa da Banheira. "Adoro a minha escola". Foto: Ricardo Fortunato/RR

E há o fator financeiro. “Alunos, por exemplo, das escolas públicas de melhores contextos sociais ou das escolas privadas têm possibilidade de contratar explicadores. Estes meus alunos não têm”.


“Estamos a falar de alunos cuja história de família, e a pessoal, não é muito ligada à academia. Crescem sem livros em casa, sem jornais. Os próprios pais têm uma formação académica muito frágil”, descreve o diretor.

Uma escola que faz ver que “eu mereço mais”

Voltamos ao grupo de alunos que, ao fim da tarde, canta ao pé do campo de jogos. Uma das estudantes é Luísa Eduardo, 17 anos, brasileira. Este é o segundo ano na escola, está no 11.º ano do curso profissional de auxiliar de farmácia e é a presidente da Associação de Estudantes.

Neste agrupamento, o absentismo é “uma dor de cabeça”, dizem os números da escola. No ano passado, no terceiro ciclo, em média, cada aluno teve quase 70 faltas injustificadas.

Luísa Eduardo explica que “muitos alunos não conseguem ir à escola por problemas em casa ou alguns começam a vida no trabalho muito cedo. Estão na escola, mas também trabalham, têm responsabilidade em casa e, querendo ou não, é sempre o elo mais fraco que acaba perdendo”.

O dinheiro é uma questão essencial. “Se um aluno achar que é mais importante receber 400 euros por mês em vez de vir para escola nesse dia, ele vai escolher os 400 euros”.

Luísa não pensa assim. “Quanto mais nos empenharmos na escola, melhor vai ser a nossa vida futuramente. A escola é como se fosse um primeiro trabalho, onde você aprende tudo, conhece tudo, você sabe que tem de lidar com professores, que às vezes a gente não gosta muito ou então aqueles que a gente ama… A mesma coisa com os alunos, alguns com quem nos damos muito bem e outros que se detesta, mas tem de se saber lidar e tem de se estudar, esforçar ao máximo”.


Luísa Eduardo, da associação de estudantes, explica que muitos alunos começam a vida no trabalho muito cedo. "Estão na escola, mas também trabalham, têm responsabilidade em casa e, querendo ou não, é sempre o elo mais fraco que acaba perdendo.”

Os pensamentos sobre o caminho a trilhar não foram incutidos pela família. Os pais estão separados, a mãe vive no Brasil e ninguém foi muito longe nos estudos.

“O meu pai é uma pessoa que, querendo ou não, não foi alfabetizada. Também, querendo ou não, boa parte da minha família, por viver no Brasil, não teve esse estudo, muitos deles quase não terminaram o ensino médio”, descreve.

Foi na escola, a que ficou mais mal colocada nos rankings, que Luísa encontrou quem a orientasse. “Para ser sincera, tem a ver com as pessoas com quem eu convivi nessa escola e que me cobraram muito e realmente entenderam o meu valor e fizeram-me entender que eu mereço mais, que eu posso mais, desde que me esforce para isso”.

A presidente da associação de estudantes gostava que mais alunos seguissem estas orientações, mas não é isso que vê à sua volta.

“Falta um pouco nessa escola, mas não só nessa, mas nos jovens de hoje em dia. Essa coisa de ‘eu não preciso fazer uma faculdade, não preciso de um ensino superior, eu trabalho numa coisa ali’, é esse pensamento que acaba fazendo com que o desempenho dos alunos seja tão baixo”, argumenta a jovem.

O diretor José Lourenço acrescenta outra explicação. Nesta escola, 40% dos alunos são estrangeiros e os restantes 60% são segundas gerações de gentes vindas sobretudo dos países de expressão portuguesa. São sobretudo angolanos, guineenses, cabo-verdianos e, mais recentemente, brasileiros.

“São alunos muito racializados desde muito jovens, crianças com 10 anos que são confrontadas com a cor da pele. Ouvem que não prestam, que vão ser sempre bandidos, vão ser sempre piores estudantes do que os outros e vão ter sempre os piores empregos”, explica, com emoção na voz.

“São confrontados com isso num autocarro, num comboio, num barco, na escola — não na nossa escola, mas quando vão a outros lados. Esse processo é muito doloroso, muito doloroso”, reforça.


“São alunos muito racializados desde muito jovens, crianças com 10 anos que são confrontadas com a cor da pele. Ouvem que não prestam, que vão ser sempre bandidos, vão ser sempre piores estudantes que os outros e vão ter sempre os piores empregos”, explica, com emoção na voz.

Não estão na mesma sala, mas Luísa Eduardo parece estar a ouvir e está de acordo com o que diz o diretor. Diz que “muitos, por terem vindo de comunidades de outros países e coisas desse estilo”, acreditam que “a única coisa que vão fazer é terminar a escola, começar a trabalhar num McDonald's, num Continente, num supermercado da vida e que isso é o suficiente para se sentirem realizados”.

Colocaram na cabeça deles que estão destinados a tão pouco e pararam de querer cobrar uma coisa a mais a si mesmos, de tentar atingir o seu máximo de potencial”, lamenta.


Luísa Eduardo chegou do Brasil há dois anos e é a presidente da Associação de Estudantes. Lamenta que os alunos não sonhem mais alto. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Luísa Eduardo chegou do Brasil há dois anos e é a presidente da Associação de Estudantes. Lamenta que os alunos não sonhem mais alto. Foto: Ricardo Fortunato/RR

Famílias que trabalham, mas são pobres e vivem em quartos

A Escola Secundária da Baixa da Banheira tem uma envolvente alargada. “Temos um total a rondar os seis hectares”, diz-nos o diretor apontando para uma zona de árvores, pouco frequentada pelos alunos. A escola, construída em 1977, não tem tido intervenções de fundo, as salas estão equipadas com o material mais básico e até há faltas.

Os alunos percebem que há jornalistas na escola e fazem-se à máquina fotográfica enquanto caminhamos com o diretor para o gabinete de apoio ao aluno e à família. Eunice Lopes, assistente social e coordenadora do gabinete, não nos pode dar atenção de imediato. Percebe-se que houve um desaguisado na escola e, ora o diretor, ora a assistente social, vão pondo cobro à situação.

Finalmente, conseguimos falar uns minutos. Eunice Lopes confirma o cenário de “pais com baixa escolaridade, carências socioeconómicas, famílias que neste momento residem em quartos e não em casas”. Garante que não são casos pontuais, mas sim “um número bastante significativo, dada a crise da habitação”.

Eunice descreve famílias com “pais que se levantam às seis da manhã e que chegam às onze" da noite a casa. "Obviamente que o principal objetivo é sobreviver, acima de tudo.”

O diretor José Lourenço dá outro exemplo. “A maioria das mães entra logo de madrugada na carreira 4701 para a Estação do Oriente, em Lisboa, vão trabalhar um monte de horas. Os filhos ficam em casa, o mais velho leva a mais nova, depois vem a casa dar de comer aos mais novos… Estas pessoas ganham miseravelmente e estiveram o dia todo a trabalhar. Como é que uma mãe com essas condições consegue acompanhar os filhos?”, questiona-se.

Para estas mães e pais, saber que os filhos estão na escola é o suficiente, mesmo que fiquem no recreio e não frequentem as aulas.


A assistente social Eunice Lopes descreve famílias com “pais que se levantam às seis da manhã e que chegam às onze" da noite a casa. "Obviamente que o principal objetivo é sobreviver, acima de tudo.”

“Às vezes [os alunos] portam-se mal e há procedimentos disciplinares e eu chamo os pais. E a mãe pergunta-me ‘mas ele vem à escola ou não vem à escola’… Eu respondo que vem, mas está aqui sentado todo o dia, não vai às aulas. E a mãe responde ‘Ah, pronto, é que se ele não viesse à escola…”

José Lourenço sabe que, para aquelas mães, se os filhos estão na escola, estão descansadas. “Se vai às aulas ou não, isso é outra coisa. É um problema que ela diz que é nosso.”

Novas políticas migratórias de “extrema exclusão”

Luísa Eduardo integrou-se facilmente na escola, elogia a diversidade cultural da população escolar e argumenta que, por isso, a sua integração foi fácil. A assistente social Eunice Lopes também fala de um “contexto multicultural” que, nos últimos anos, passou a integrar comunidades que antes não tinham. Além das pessoas oriundas da África portuguesa, têm também “muitas pessoas do Bangladesh, do Paquistão, da Índia”.

“É uma mais-valia, mas também nos traz muitos desafios neste processo de real inclusão”, diz Eunice Lopes, mostrando-se crítica das “novas políticas migratórias” que, assegura, “são de extrema exclusão”.

“Neste momento temos encarregados de educação que não conseguem sequer ter acesso a uma documentação, a regularizar a sua situação documental”, o que lhes tira o “acesso a direitos fundamentais”.

A assistente social conta que há “pessoas que até já trabalham cá há meses antes e que não conseguem sequer ter um título de residência renovada", uma situação que lamenta. "Isto é gravíssimo e, obviamente, a agonia de todas estas problemáticas também se reflete no sucesso escolar, porque a questão escolar acaba por ser quase a última das preocupações.”


A Escola Secundária da Baixa da Banheira fica numa rua sem saída, rodeada de prédios de um bairro social. De um lado do recreio tem-se vista para a empena do edifício que lembra a todos o "herói da escola" Neemias Queta.Foto: Ricardo Fortunato/RR
A Escola Secundária da Baixa da Banheira fica numa rua sem saída, rodeada de prédios de um bairro social. De um lado do recreio tem-se vista para a empena do edifício que lembra a todos o "herói da escola" Neemias Queta.Foto: Ricardo Fortunato/RR

Há problemas, mas também há sucesso e orgulho

Voltamos outra vez ao grupo de alunos que canta ao fim da tarde ao pé do campo de jogos. É o grupo coral, uma das várias atividades extracurriculares que a escola oferece.

“É uma das coisas mais lindas”, elogia a presidente da Associação de Estudantes. “Eles ensaiam músicas e sempre que tem alguma atividade na escola, aniversário de alguns dos professores, aniversário do diretor, sempre eles estão lá, marcam presença, fazem a música deles e eles cantam muito bem”, diz de sorriso rasgado.

Além da música, o desporto tem tradição nesta escola, ou não tivesse sido aqui que estudou Neemias Queta, o até agora único português campeão da NBA, nos Estados Unidos.

José Lourenço recorda Neemias como um miúdo “enorme e muito magrinho”. “Não tinha a massa muscular que tem hoje e cada vez que o via parecia que se desmontava todo”, diz, a rir, sobre “o herói da escola”.

Nas aulas tinha resultados escolares “sofríveis”, mas tinha “uma vontade, uma energia, uma coragem que fez transcender-se”. E tem pais que, ainda que com pouca escolaridade, conseguiram garantir uma família “muito estruturada”.

Apesar da fraca posição nos rankings quisemos saber se o diretor tem orgulho na escola. A resposta é imediata. “Eu adoro a minha escola, todos os dias venho com muito entusiasmo. O que me cansa são os mecanismos de controlo redundantes do Ministério da Educação”, desabafa.

José Lourenço garante que “os alunos às vezes são indisciplinados, às vezes malcriados", mas não o cansam.

”Não estou minimamente cansado com a escola, tenho uma saudade enorme de dar aulas, às vezes invento assembleias de turmas e uns projetos para estar uma hora ou duas com os alunos. Agora vou dar umas aulas de guitarra… São uns três alunos ciganos que querem aprender, eu vou-lhes ensinar a guitarra”, diz o diretor, deixando essa promessa no ar.


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