“Paliativos não são a arte de dar a mãozinha, são ciência.” Metade dos pacientes referenciados morre antes de chegar lá

A vontade da maioria dos doentes é morrer em casa, mas Portugal é um dos países onde isso menos acontece. Faltam apoios aos familiares e a rede de cuidados paliativos continua a não dar resposta. Reportagem numa IPSS de Braga onde chegam pacientes "de Trás-os-Montes e da zona centro do país”.

15 abr, 2025 - 06:00 • Isabel Pacheco (reportagem) , Rodrigo Machado (ilustração e fotomontagem) , Salomé Esteves (gráficos) , Paulo Teixeira (sonoplastia)



Pode não haver nada a fazer pela doença, "mas há tudo a fazer pela pessoa”, defendem paliativistas. Fotos: Isabel Pacheco/RR. Fotomontagem: Rodrigo Machado/RR
Pode não haver nada a fazer pela doença, "mas há tudo a fazer pela pessoa”, defendem paliativistas. Fotos: Isabel Pacheco/RR. Fotomontagem: Rodrigo Machado/RR

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Sentada num cadeirão frente à janela, Luísa Morais olha para a imensidão do verde da paisagem a partir do quarto na unidade de cuidados paliativos do centro de acolhimento O Povorello, em Braga.

A esclerose lateral amiotrófica (ELA), diagnosticada em 2021, retirou-lhe a mobilidade, trouxe-lhe dores e medos — que aqui, garante, ficam do lado de lá da porta.

Não é medo de morrer. É mesmo medo da vida. Medo do que me espera, do sofrimento”, confidencia Luísa que, após uma pausa para um suspiro profundo e com os olhos embargados em lágrimas, explica que aqui não pensa "tanto nisso”, porque se sente “segura”.

“Lá em casa eu choro muito”, admite.

Luísa é acompanhada pelo Hospital Santos Silva, em Vila Nova de Gaia. Foi encaminhada para 30 dias de internamento nos cuidados paliativos para descanso do cuidador, o marido. É a segunda vez que o faz. A primeira foi em agosto. “Gostei tanto que quis voltar”, brinca Luísa que, desta vez, admite já ter definido os planos para o futuro.

“Gostaria de terminar aqui os meus dias. Não era em casa”, assegura. “Aqui sinto-me mais confortável e apoiada e em casa não tenho isso. Então, para mim, seria bom, ficava descansada”.


“Qual é o plano dos nossos governantes para garantir todos os cuidados que os nossos idosos necessitam? Não há plano”, considera a enfermeira Margarida Fernandes

No quarto ao lado, ainda estão colados na parede os balões dourados dos 80 anos de Fernanda Martins. “Feitos há dias”, conta-nos a filha, Maria Lopes, enquanto aconchega os pés da mãe, doente oncológica em fase terminal.

Maria e a irmã são visitas diárias. Mas nem uma nem outra podiam cuidar de Fernanda. “Eu adorava cuidar da minha mãe, mas não somos enfermeiros nem médicos. Não lhe podemos dar a morfina”, começa por explicar.

De qualquer maneira, acrescenta, não tinha “possibilidade de ter lá um enfermeiro em casa para tratar dela, nem deixar o emprego". E questiona: "Íamos viver do quê?”


Luísa Morais está internada no Povorello e já decidiu: é nos cuidados paliativos que quer passar o dia de Páscoa. Foto: Isabel Pacheco/RR
Luísa Morais está internada no Povorello e já decidiu: é nos cuidados paliativos que quer passar o dia de Páscoa. Foto: Isabel Pacheco/RR

Maria vive e trabalha em Braga, a poucos quilómetros do centro de acolhimento. Reconhece “a sorte” de ter a mãe a poucos minutos de distância. Mas nem todos os casos são assim.

Ao Povorello, a única IPSS do Norte com camas para cuidados paliativos, chegam pacientes "de Trás-os-Montes e, até, da zona centro do país”. O retrato é feito pelo diretor do centro de acolhimento. Frei Jacó Silva lamenta que a falta de oferta em internamento tenha reduzido os paliativos — que abrangem “uma ampla assistência” — a cuidados apenas de “fim de vida”.

“Isso é muito bom para quem consegue chegar, mas também nos deixa preocupados e até tristes por sabermos que muitas pessoas que precisam não conseguem”.

O centro de Acolhimento o Povorello, inaugurado em 2011 pela fundação Domus Fraternitas, dispõe de 10 camas — as únicas de paliativos para uma região com 850 mil habitantes no âmbito da rede nacional de cuidados integrados.

Frei Jacó lembra que a fundação já apresentou um projeto para “mais 30 camas”, mas, uma vez que o financiamento depende do Ministério da Saúde, “sem vontade política, não avança”.

Em 2023, cerca de metade dos pacientes referenciados não tiveram acesso em tempo útil aos cuidados paliativos, segundo os últimos dados divulgados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS). 12% foram internados a mais de uma hora de viagem de onde residiam.

Para Margarida Fernandes, enfermeira especializada em paliativos, é a prova de que falta ao país um “plano” que assegure o futuro dos mais velhos.


Os cuidados paliativos não são "uma antecâmara da morte", afirma Margarida Fernandes, do Povorello. "Aqui vive-se até ao último momento”. Foto: Isabel Pacheco/RR
Os cuidados paliativos não são "uma antecâmara da morte", afirma Margarida Fernandes, do Povorello. "Aqui vive-se até ao último momento”. Foto: Isabel Pacheco/RR

“Qual é o plano dos nossos governantes para garantir todos os cuidados que os nossos idosos necessitam? Não há plano”, atira a profissional de saúde. "Os idosos precisam de um lar, não têm. Precisam de uma pessoa que cuida, não têm. E o familiar não se pode desempregar”, exemplifica.

“Temos de perceber que o envelhecimento só por si vai trazer doenças que são crónicas e requerem um grupo pessoas especializadas, os paliativistas, para dar resposta”. Margarida faz questão de sublinhar que estas necessidades “não são só para os doentes com cancro”: são "para os idosos que sofrem muitas vezes em casa, nos lares, completamente esquecidos”.

Rafael Velho, médico paliativista, reconhece que são cada vez mais os doentes com patologias avançadas ou crónicas que necessitam de suporte paliativo. Mas muitos “acabam por nunca o conseguir porque, simplesmente, não há meios suficientes”.


Comparando com as orientações europeias, a resposta paliativa em Braga “é uma fração”, sublinha ao clínico. “No fundo, acaba por chegar até nós quem tem um bocadinho a sorte de ser referenciado e de conseguir chegar em fase útil da sua vida.”

Paliativos: “a feliz oportunidade”

Percorremos o corredor da unidade de paliativos até à sala “Isabel Levy”, conhecida como a sala dos “últimos desejos”.

“Se o doente tiver condições e quiser realizar uma última vontade aqui, é para isso”, explica-nos Frei Jacó, que revela que o espaço já serviu para um “casamento”. “Já vieram crianças após o batizado, pode ser feito um almoço com uma comida diferente ou um encontro familiar, porque vai ser a última vez”, remata.

Cuidar da dignidade da pessoa até ao último suspiro é o lema do Povorello, inspirado em São Francisco de Assis. O centro tenta dar resposta, mesmo quando a ciência e a medicina não conseguem. É aqui que entra a espiritualidade.


“Quando recebemos um doente, explicamos sempre que não há nada a fazer por esta doença, mas há tudo a fazer pela pessoa”

“Uma das coisas mais bonitas proporcionada pela espiritualidade, aqui no Poverello, é o âmbito da reconciliação. A gente até diz que os paliativos são uma feliz oportunidade. Bem-aventurados aqueles que passam pelos cuidados paliativos porque é uma oportunidade de rever a vida.” Frei Jacó sintetiza: “É uma oportunidade para fazer não apenas uma retrospeção familiar dos acontecimentos, mas à luz da fé.”

Para Margarida Fernandes, os cuidados paliativos, mais do que uma oportunidade, são “um direito de todos”. A coordenadora da equipa de enfermagem do centro de acolhimento lembra que uma doença incurável pode limitar a esperança de vida, mas não pode, nem deve, retirar a sua qualidade e dignidade. “Quando recebemos um doente, explicamos sempre que não há nada a fazer por esta doença, mas há tudo a fazer pela pessoa.”


Teresa Macedo, Marta Miranda e Maria José Mendes integram a equipa de cuidados paliativos do Hospital de Braga. Foto: Isabel Pacheco/RR
Teresa Macedo, Marta Miranda e Maria José Mendes integram a equipa de cuidados paliativos do Hospital de Braga. Foto: Isabel Pacheco/RR

“É este o nosso ponto de partida. Pegamos na pessoa e não na doença, e a partir daqui desenvolvemos um trabalho atendendo a todas as dimensões: física, psicológica, espiritual, religiosa”, elenca a enfermeira que integra há 12 anos a equipa de cuidados paliativos.

Paliativos não é a arte de dar a mãozinha. Paliativos não são borboletas. Os paliativos são ciência”, sublinha a especialista, contrariando uma ideia simplista e enganadora frequentemente associada a este tipo de cuidados médicos. “Aqui, não é uma antecâmara da morte. Aqui vive-se até ao último momento”, garante.

“Para cada pessoa doente há uma família doente”

Quando a vontade do doente é permanecer em casa no final da vida, entra em ação a equipa comunitária de suporte em paliativos de Braga. Marta Miranda é uma das três enfermeiras que, há três anos, vai ao domicílio prestar cuidados. Da sua experiência, assegura que a maioria dos pacientes prefere morrer em casa e, quando isso acontece, “pode ser efetivamente mais tranquilizador e acolhedor”.

“É curioso como é que se consegue controlar sintomas em casa com doses de fármacos muito mais baixas do que num ambiente hospitalar”, assinala a enfermeira, reconhecendo, por outro lado, que quando há condições “o cuidar de um ente querido em casa pode ser uma experiência de crescimento pessoal muito grande”.

Mas, ainda que a maioria dos doentes prefira morrer em casa, nem sempre tudo corre como planeado, admite a enfermeira Maria José Mendes. “Apesar de dizermos muitas vezes que a decisão do doente é que prevalece, não é bem assim, porque eles precisam de quem cuide e muitas vezes isso não é possível”, lamenta a profissional da Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos do Hospital de Braga.


“Atualmente as pessoas têm vidas muito complicadas, precisam de ganhar para a casa, para o seu dia a dia e o facto de terem que deixar o seu emprego torna as coisas ainda mais complicadas.”

Teresa Macedo coordena a Equipa Intra-Hospitalar. A médica lembra-nos que “para cada pessoa doente há também uma família doente” que precisa de acompanhamento e, sobretudo, tempo e meios para cuidar.

Desde logo, aponta a responsável, “é preciso que as famílias se organizem e que cuidem dos seus em casa com apoio dos profissionais de saúde e do serviço social”. Mesmo assim, ressalva, “as licenças para cuidar de alguém próximo doente são demasiado curtas e não remuneradas”. E, por vezes, “a única pessoa capaz de cuidar é o único aporte económico da casa”.


Em 2023, cerca de metade dos pacientes referenciados não tiveram acesso em tempo útil aos cuidados paliativos. 12% foram internados a mais de uma hora de viagem de onde residiam (dados ERS).

Resta, em muitos dos casos, o hospital como alternativa, mas também aqui os recursos não são os ideais. Só a equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos que dá resposta ao concelho de Braga precisaria do dobro dos profissionais.

“Temos que lidar com o que temos”, reconhece Teresa Macedo. “Tentamos tirar o melhor partido dos recursos que temos, devagarinho lá iremos. Mas as necessidades são muitas, ainda”.

Enquanto isso, no Povorello, Luísa Morais já decidiu: é nos cuidados paliativos que quer passar o dia de Páscoa.

“Sou livre de ir embora a qualquer hora, mas não quero. Estou a pensar em ficar aqui porque [o dia de Páscoa aqui] também é bonito", acredita Luísa, que andou a informar-se devidamente. "Eles não me contam. Eu é que vejo na página que eles têm."


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