"Não se consegue viver ali". Parque ilegal de contentores em Loures preocupa população e ambientalistas

Parque de contentores marítimos ilegal ocupa, desde 2008, terrenos agrícolas e ambientalmente protegidos em Loures. População queixa-se do pó, teme contaminação de águas subterrâneas e lamenta passividade de entidades oficiais, que remetem para autarquia resolução do problema. Empresa admite ilegalidade e acena com importância do seu trabalho para fornecimento de bens alimentares à Madeira e Açores.

16 jun, 2025 - 10:59 • João Cunha



Veja a reportagem em vídeo junto ao parque de contentores ilegal na Apelação, Loures. Foto: João Cunha/RR

Nacional 250, de Sacavém para a Apelação. À esquerda, antes de chegar à povoação e ao desvio para Camarate, salta aos olhos dos mais atentos uma montanha de contentores, amontoados uns em cima dos outros, num parque de chão de pedra solta.

Como se fosse um almofariz gigante, a pedra é desfeita em pó devido ao movimento constante de porta-paletes de grande tonelagem e de camiões que, uns atrás dos outros, lá deixam e levam contentores, depois de reparados, pintados e higienizados. Sobretudo contentores de frio, para acondicionar devidamente produtos alimentares.

É ali, naquela faixa de terreno, que trabalham os cerca de 40 funcionários da Comecont -- Comércio e Reparação de Contentores, Lda. Isto apesar de o local onde se encontra estar classificado, no Plano Diretor Municipal de Loures, como terreno agrícola, onde não é autorizada qualquer indústria.

Além do mais, o parque de contentores viola servidões de Rede Agrícola Nacional, de Reserva Ecológica Nacional e de domínio hídrico.


"Não podemos ter uma janela aberta ou uma porta", conta Valentim Terras. Foto: João Cunha/RR
"Não podemos ter uma janela aberta ou uma porta", conta Valentim Terras. Foto: João Cunha/RR

Ainda assim, a empresa ali está, desde 2008. Desde essa altura que a população se queixa, sobretudo da poeira levantada pelo vento. E das implicações que isso pode ter para a saúde de quem ali vive.

"Em dias de vento, olhamos para ali e não vemos a estrada. Não podemos ter uma janela aberta ou uma porta. Temos de ter tudo fechadinho, porque senão entra tudo", adianta Valentim Terras, residente em Sol Avesso, a poucas centenas de metros do parque de contentores.

Outro residente na zona, que prefere o anonimato, ilustra uma conversa sobre o pó constante com vídeos, gravados com o telemóvel, que mostram funcionários da Infraestruturas de Portugal a limpar a nacional 250, junto aos dois portões da empresa.

Neles vê-se um funcionário, de pá na mão, a levantar pedaços de pó, que depois do inverno, ressequiram e transformaram-se quase em pedra, tapando a estreita berma. Noutro dos vídeos, uma pequena retroescavadora percorre a berma, levantando quilos e quilos de terra carregada desse pó cinzento, levantado do chão à passagem de qualquer viatura na movimentada estrada nacional.


Parque de contentores na Apelação, em Loures.  Foto: João Cunha/RR
Parque de contentores na Apelação, em Loures. Foto: João Cunha/RR

Carina Pinto queixa-se do mesmo que Valentim. Comprou há anos um terreno com uma casa, ao lado do qual surgiu, anos mais tarde, o parque de contentores.

"Não se consegue viver ali, porque o simples facto de virmos à rua já estamos a levar com o pó", diz esta tatuadora profissional, que admite que a "quintinha" que adquiriu tinha um propósito. "É a minha bolha. Passo o dia a marcar o corpo dos outros com tinta, e gostava de deixar a minha marca no planeta. Daí este espaço, onde quando fosse mais velha, podia ter a minha agricultura e usufruir da tranquilidade. Mas o parque de contentores veio estragar o meu sonho."

Carina já falou com os responsáveis da empresa sobre a dificuldade que é viver com pó constante no ar. Foi bem recebida, mas o que viu não chega.

"Não é passar ali com uma mangueira com água para lavar a zona e tentar fazer com que o impacto seja menor, numa tentativa de calar as pessoas à volta por achar que ninguém vai fazer nada", defende.


"Não se consegue viver ali, porque o simples facto de virmos à rua já estamos a levar com o pó", afirma Carina Pinto. Foto: João Cunha/RR
"Não se consegue viver ali, porque o simples facto de virmos à rua já estamos a levar com o pó", afirma Carina Pinto. Foto: João Cunha/RR

Contudo, até agora, de facto, pouco foi feito. Garante que já se queixou a tudo e todos. Mas até agora, nada. "Já me queixei à Camara, à Junta, já fui a reuniões de Câmara pedir reuniões com o vereador do ambiente e do urbanismo, para saber que soluções têm, já me queixei na GNR, na APA, na REN, em todo o lado onde possa ser feita alguma coisa face à ilegalidade que ali existe e ao impacto ambiental que aquilo está ali a causar", explica Carina, que não entende o silêncio das entidades -- sobretudo, diz, quando a empresa tem crescido, a olhos vistos.

A cada ano que passa, há cada vez mais contentores e fluxo de camiões a passar.

Ambientalistas exigem soluções

"O parque tem vindo a crescer e, aparentemente, há pretensões de crescer porque tem havido abordagens a proprietários de terrenos junto ao parque no sentido de venderem os seus terrenos para os agregarem àquela atividade", explica Rui Pinheiro, da Associação de Defesa do Ambiente de Loures, que diz ser inacreditável o que está a acontecer.

"É inacreditável que, no meio de uma povoação e no meio de terrenos agrícolas e de Reserva Ecológica Nacional, tenha sido implantada uma atividade de contentores que se dedica à sua reparação, com decapagem e pinturas, ao ar livre", com as consequências que poderá ter todo o contexto ambiental e de saúde pública.

Rui Pinheiro lembra ainda as condicionantes "impostas pelas servidões de Rede Agrícola Nacional, de Reserva Ecológica Nacional e de domínio hídrico", que determinam que "aquela atividade, naqueles termos, pura e simplesmente não pode existir ali".

Explica ainda que a autarquia de Loures "já reconheceu à Associação que existe este problema e por isso, tem de agir no sentido de o resolver o mais rapidamente possível, porque há um risco ambiental elevado".


Rui Pinheiro, da Associação Ambientalista de Loures. preocupa-se com as consequências que a atividade poderá ter no contexto ambiental e na saúde pública. Foto: João Cunha/RR
Rui Pinheiro, da Associação Ambientalista de Loures. preocupa-se com as consequências que a atividade poderá ter no contexto ambiental e na saúde pública. Foto: João Cunha/RR

A Associação teme, inclusive, que os lençóis freáticos possam estar a ser contaminados. "Nós pedimos à autarquia de Loures que procedesse a análises da linha de água para verificar se, por efeitos de arrastamento, estão a ir metais pesados para o Rio Trancão", mas também para aferir a possibilidade de infiltrações nos lençóis freáticos.

"É possível que haja quem esteja a tirar águas de poços para regas de produtos hortícolas que estejam contaminadas", teme Rui Pinheiro.

Empresa admite ilegalidade

"Nós, de facto, não estamos numa situação muito boa", admite Pedro Fonseca, filho dos proprietários da empresa, que adianta que não compreende que tenha havido uma queixa "e não tenha havido disponibilidade das pessoas para falar e saber o que pretendemos para melhorar".

Pedro assume que "todos os agentes conhecem a situação, seja a Câmara seja a Junta", que estão em conversas com todos e que "todos conhecem a intenção de melhorar a situação". Acrescenta ainda que "qualquer poder" que possa ir à empresa poderá falar abertamente e discutir, "tanto as soluções como os problemas".

Pedro Fonseca revela que vários agentes já estiveram no parque de contentores para fazer fiscalizações, "das quais não resultou, até hoje, nenhuma coima ou prejuízo para a empresa". Por uma razão, acredita a empresa: "Tem havido uma certa compreensão, tanto para a nossa importância como para a nossa situação, no geral. Retirarem-nos daqui e fecharem-nos as portas não é a solução mais correta, quando amanhã vamos iniciar uma cadeia de situações que podem ter reflexos no próprio país".

Sublinha por isso a necessidade de encontrar uma solução, devido à importância desta indústria.


"Retirarem-nos daqui e fecharem-nos as portas não é a solução mais correta", considera Pedro Fonseca, da Comecont. Foto: João Cunha/RR
"Retirarem-nos daqui e fecharem-nos as portas não é a solução mais correta", considera Pedro Fonseca, da Comecont. Foto: João Cunha/RR

"A indústria da reparação de contentores e da logística é responsável pelo fornecimento, no nosso caso, de todos os bens alimentares para as ilhas da Madeira e dos Açores".

A empresa sugere uma minimização dos problemas decorrentes do pó, "que será maioritariamente a grande preocupação das pessoas". Garante que têm sido muito ativos na procura de uma solução, admitindo desde já que "não é particularmente fácil lidar com uma situação como a nossa, de um solo, quando temos vinte ou trinta entidades com as quais temos de comunicar para fazer qualquer coisa", explica Pedro Fonseca.


Empresa recusa acusações de que levam a cabo decapagens, com produtos químicos e jato de areia. Foto: João Cunha/RR
Empresa recusa acusações de que levam a cabo decapagens, com produtos químicos e jato de areia. Foto: João Cunha/RR

Quanto ao problema dos solos, de onde sai o constante pó, "era facilmente resolvido se nos fosse dada a possibilidade de fazer um passeio à porta do parque, se fosse possível isolar o chão, isolar os solos... Eram tudo coisas que tinham um efeito imediato", assegura, mas lamenta que "qualquer melhoramento que se tente fazer, para nós e para a vida das pessoas aqui á volta, bata na burocracia".

Quanto às acusações de que levam a cabo decapagens, com produtos químicos e jato de areia, garante que são falsas. "Mostro-lhe ali as faturas. As decapagens que fazemos em contentores são feitos em serviços externos, na SLM e na Serra Metais. Para minimizar quaisquer impactos, porque um sistema de decapagem traria areia para o ar. Se juntássemos ao problema do chão o problema da decapagem..."

O que dizem as entidades oficiais

A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR-LVT) diz à Renascença que sabe do caso "desde março deste ano, e que enviou ao local uma fiscalização". Mas ao perceber que "a instalação já se encontrava visada pelos procedimentos legalmente aplicáveis para reposição da legalidade, instruídos no Município de Loures, entidade competente em matéria dos regimes jurídicos em causa", informa que continuará a acompanhar os desenvolvimentos deste caso "junto da Câmara Municipal de Loures".

A APA -- Agência Portuguesa do Ambiente/ Administração de Região Hidrográfica do Tejo e Oeste -- diz que "desconhece se efetivamente existe uma ocupação ilegal de terrenos de utilização estritamente rústica, considerando que a verificação e aplicação do plasmado no regulamento do Plano Diretor Municipal de Loures é da competência da autarquia".

E acrescenta que, até à presente data, "não consta nos serviços qualquer pedido de parecer ou licenciamento em matéria de utilização de recursos hídricos para o local ou utilização em causa". Adianta ainda que é do seu conhecimento "uma participação efetuada pela autarquia de Loures, estando prevista no presente mês uma fiscalização ao local, garantindo que existindo matéria factual irá agir em conformidade".

Relativamente à questão de eventuais violações dos regimes jurídicos da RAN e da REN, informa que "a competência sobre tais matérias pertence à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo".


Parque de contentores na Apelação, em Loures.  Foto: João Cunha/RR
 

Também contactada pela Renascença, a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) indica que, "no passado dia 17 de fevereiro de 2025, a Câmara Municipal de Loures reencaminhou uma denúncia relativa à empresa mencionada".

Tratando-se de uma alegada atividade industrial sem licença, localizada em Reserva Ecológica Nacional, a Inspeção-Geral solicitou à Câmara Municipal de Loures, em 24 de fevereiro, "que desencadeasse as diligências necessárias à sua averiguação e atuação em conformidade", uma vez que tal se insere nas competências desses serviços, enquanto entidade coordenadora de licenciamento, fiscalização e gestão de denúncias.

Acrescenta a IGAMAOT que, "por estar também em causa uma alegada operação de gestão de resíduos realizada por essa empresa", foi igualmente solicitado à Câmara Municipal que promovesse "a devida articulação com a CCDR-LVT, entidade competente para a fiscalização em matéria de gestão de resíduos".

Câmara de Loures espera pela Justiça

Por escrito, o município de Loures explica que encetou procedimentos para “aplicação de medidas de tutela da legalidade urbanística, já que tal atividade não se encontrava licenciada, nem era passível de legalização naquele local”, por não corresponder a usos autorizados nos termos do Regulamento do Plano Diretor Municipal e violar servidões da Reserva Agrícola Nacional, da Rede Ecológica Nacional e do Domínio Hídrico.

O procedimento para aplicação de medidas da tutela da legalidade urbanística culminou, segundo a autarquia, com a decisão final de se proceder à demolição do muro de vedação em toda a sua extensão, bem como a cessação de utilização do terreno para depósito e comércio de contentores marítimos e a sua retirada do local. E notificou os responsáveis da empresa da decisão.

Na sequência da notificação da decisão final, a empresa, diz a autarquia, “recorreu aos meios judiciais para impugnar tal decisão”.

Face à interposição da ação administrativa, “o procedimento de reposição da legalidade urbanística, iniciado pelo Município, ficou automaticamente suspenso, aguardando-se neste momento a decisão final do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa”.

Por esse motivo, enquanto o processo permanecer em juízo, a autarquia não pode dar execução ao ato por si determinado.

Prémios PME Líder e PME Excelência

Mesmo estando, desde 2008, a operar este parque de contentores de forma ilegal, pelo menos de 2017 a 2023 a Comecont foi distinguida com o prémio PME Líder.

Um selo de reputação criado pelo IAPMEI -- a Agência para a Competitividade e Inovação, que distingue o mérito das Pequenas e Médias Empresas nacionais com desempenhos superiores. É atribuído em parceria com o Turismo de Portugal, um conjunto de bancos parceiros e as Sociedades de Garantia Mútua, tendo por base as melhores notações de rating e indicadores económico-financeiros.

O grupo das PME Líder que apresente os melhores desempenhos é também, anualmente, distinguido com o estatuto de PME Excelência, criando condições acrescidas de visibilidade para estas empresas de perfil superior. Em 2015, a Comecont foi distinguida com este prémio.


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