Os invisíveis. Ciganos vivem esquecidos no meio do lixo em Beja

Há quem lhe chame cemitério dos vivos. No bairro das Pedreiras, em Beja, o número de barracas duplicou na última década. Mais de mil pessoas vivem sem água, luz, em plena lixeira e entre dezenas de animais. Das barracas de chapa e madeira saem todos os dias uma centena de crianças para a escola. Em vésperas de eleições autárquicas, a comunidade prepara-se para votar, alinhada no mesmo candidato.

08 out, 2025 - 06:30 • Filipa Ribeiro , Ricardo Fortunato



Vídeo: em vésperas de eleições autárquicas, a comunidade cigana de Beja prepara-se para votar, alinhada no mesmo candidato. Foto: Ricardo Fortunato/RR

Vinte anos depois de terem sido construídas 50 casas com água e luz para realojar famílias ciganas, a realidade multiplicou-se vezes sem conta. Ao lado das pequenas moradias foram construídas mais de 100 barracas de madeira e chapa. Quando casam, os filhos erguem barracas ao lado das dos pais.

No bairro das Pedreiras, em Beja, vivem já mais de mil pessoas (de acordo com quem lá vive), entre elas mais de uma centena de crianças. A maioria dos adultos não trabalha e vivem todos sem luz nem água canalizada. A lavagem da roupa, a sede e os banhos são resolvidos com recurso a uma única bica de água, colocada à entrada do terreno.

Do centro de Beja ao bairro das Pedreiras são dez minutos de carro e é preciso percorrer um estradão de terra para se conseguir chegar à pequena cidade de latão e madeira. Escondido pelos muros e paredes do parque de materiais da câmara municipal e de uma associação de animais, o amontoado de barracas confunde-se com uma lixeira a céu aberto.

Desde que a Renascença visitou este bairro em 2016, a dimensão do problema duplicou.


À entrada, junto à bica de onde sai um fio de água, estão dois cavalos a ser lavados por um dos jovens da comunidade cigana. Ao lado, uma criança de 13 anos espera com seis garrafões na mão: tem a missão de os encher e levar para a barraca dos pais. Serão usados para tomar banho e cozinhar. O rapaz gostava que "todos tivessem água" e considera injusta a realidade do bairro.

Dali é possível ver dezenas de barracas construídas, como se de um quarteirão se tratasse, mas as casas improvisadas chegam a confundir-se com o lixo espalhado.

"Vão arranjar uma casa à gente?" É a pergunta que a Renascença mais ouve num percurso a pé meio das barracas. Todos querem abrir a casa para mostrar a "miséria".


Ouça a reportagem sobre o bairro das Pedreiras, em Beja. Foto: Ricardo Fortunato/RR
OuvirPausa

Ouça a reportagem sobre o bairro das Pedreiras, em Beja. Foto: Ricardo Fortunato/RR

O responsável pela comunidade, Luís, diz que o que se passa é "uma vergonha". Conta que não há contentores nem recolha de lixo no bairro. A Câmara Municipal de Beja terá decidido cimentar dois locais junto ao estradão de terra para a colocação de contentores do lixo, mas nada foi feito.

A solução encontrada pelos moradores foi atirar o lixo para uma outra zona do terreno. A ironia é que na colina em frente — frequentada por bastantes camiões — fica um terreno onde também é despejado entulho.

A paisagem do lixo espalhado pela terra seca e ao longo do estradão de terra, sempre encoberto do exterior por um muro, é também percetível pelo cheiro.

Com música cigana ao longe, as crianças que brincam no bairro das pedreiras misturam-se com os cães e cavalos da comunidade. Logo na primeira barraca, pintada com o número um, está a família de Marcelina Serrano. Numa das cadeiras do "alpendre" improvisado está sentado Damião Manano, de 25 anos. Está desempregado e tem três filhos — um com seis anos, outra com quatro e um bebé de seis meses.


A família de Damião Manano e de Marcelina Serrano vive no Bairro das Pedreiras desde 2006. Foto: Ricardo Fortunato/RR
A família de Damião Manano e de Marcelina Serrano vive no Bairro das Pedreiras desde 2006. Foto: Ricardo Fortunato/RR

A resposta imediata à questão sobre o maior problema do bairro é "ratos e cobras". Damião chega a mostrar uma outra barraca que destruiu recentemente, porque acordou e viu que o filho de seis anos tinha uma cobra enroscada na perna.

A família vive no bairro das pedreiras desde 2006 — um ano depois de terem sido construídas 50 casas para cerca de 250 membros da comunidade cigana. Damião Manano está inscrito no centro de emprego, mas diz que nunca lhe oferecem trabalho por ser cigano. "Dizem que não há trabalho para nós e que não podemos trabalhar. E porquê? Nós somos iguais aos outros!" Damião sublinha que quer "trabalho para mudar de vida".

Numa caminhada pelo bairro, Luís, de 43 anos, prova que conhece como as palmas da mão o lugar onde vive. Não há uma barraca em que não consiga identificar o dono. Na verdade, crescem como cogumelos. Ao lado das casas dos pais, há sempre mais duas ou três barracas coladas, dos filhos que casaram ainda jovens.


Barracas multiplicam-se no Bairro das Pedreiras, em Beja. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Barracas multiplicam-se no Bairro das Pedreiras, em Beja. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Quando casam, os filhos erguem alojamentos improvisados ao lado das casas dos pais. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Quando casam, os filhos erguem alojamentos improvisados ao lado das casas dos pais. Foto: Ricardo Fortunato/RR


Crianças brincam no meio de ratos, cobras e lixo no bairro das Pedreiras. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Crianças brincam no meio de ratos, cobras e lixo no bairro das Pedreiras. Foto: Ricardo Fortunato/RR

Pelo caminho, Luís pára na barraca que construiu — a maior do bairro. Sentada à porta está a mulher, Maria Laura, também desempregada. Confessa que há muito tempo que não consegue sorrir e diz que "está doente com uma depressão". Anda "sempre aborrecida, por não fazer nada". Maria Laura já procurou trabalho, mas diz que "agora não querem ciganos".

Apesar do desânimo geral, ao fundo ouve-se música e ao longe da colina consegue ver-se uma mesa rodeada de gente em festa.

No centro das barracas, destaca-se a de Manuel Dimas. Como as restantes, tem uma forma retangular e uma só divisão, que faz de quarto, cozinha e sala. Aos pés da cama, como se de um troféu se tratasse, está uma televisão.

A mulher de Manuel vai ajeitando as jarras para evidenciar o plasma. O marido, de 27 anos, conta que esteve no último ano a trabalhar como agricultor e a descontar, mas agora está parado. "Há cerca de três meses que estou no fundo de desemprego e ainda não ouve oportunidade para um novo trabalho", conta.


Maria Laura, também desempregada, conta que anda "sempre aborrecida, por não fazer nada". Foto: Ricardo Fortunato/RR
Maria Laura, também desempregada, conta que anda "sempre aborrecida, por não fazer nada". Foto: Ricardo Fortunato/RR
Luís, o responsável pela comunidade, considera "uma vergonha" que não haja recolha de lixo no bairro. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Luís, o responsável pela comunidade, considera "uma vergonha" que não haja recolha de lixo no bairro. Foto: Ricardo Fortunato/RR


Habitações construídas no bairro pela Câmara Municipal, em 2006. Foto: Ricardo Fortunato/RR
Habitações construídas no bairro pela Câmara Municipal, em 2006. Foto: Ricardo Fortunato/RR
"Quero uma vida em que chego a casa e tenho a minha mulher e os meus filhos com higiene e sem correr perigos", afirma Manuel, de 27 anos. Foto: Ricardo Fortunato/RR
"Quero uma vida em que chego a casa e tenho a minha mulher e os meus filhos com higiene e sem correr perigos", afirma Manuel, de 27 anos. Foto: Ricardo Fortunato/RR


Ao contrário dos outros casais jovens que já têm famílias numerosas, Manuel tem apenas um filho pequeno. O bairro das Pedreiras é a sua casa desde 2006. Veio com os pais e acabou por ficar quando casou. Como muitos outros na comunidade, "à medida que iam casando [ele e os irmãos] iam construindo barracas".

Com o filho quase agarrado às suas pernas, junto ao armário onde está a televisão, Manuel confessa que ambiciona ter uma casa e que o seu objetivo é trabalhar para dar uma vida melhor à família. "Quero uma vida em que chego a casa e tenho a minha mulher e os meus filhos com higiene e sem correr perigos."

É precisamente a falta de segurança e a "sobrevivência" do filho que diz ser o mais difícil. Lamenta não conseguir dar-lhe "estabilidade para ele brincar" num local cheio de "cobras, ratos e até cavalos".

Portugal é o país onde os cidadãos ciganos mais se sentem discriminados

De acordo com um inquérito da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (RFA), divulgado no início de outubro, 63% das pessoas da comunidade cigana em Portugal já se sentiu discriminada. Valor que aumentou em 1% entre 2021 (ano em que foi realizado o último estudo) e 2024.

Um dos pontos onde os ciganos afirmam ter sido mais discriminados foi na procura por trabalho: 70% diz ter experienciado algum tipo de tratamento desigual no período em que procurava emprego.

O presidente da Associação de Mediadores Ciganos, Prudêncio Canhoto, desde 2014 tenta fazer a ponte entre a comunidade e a Câmara Municipal de Beja. À Renascença diz que "nenhum cigano" está a trabalhar, apesar da procura. Prudêncio sublinha que a discriminação sobre pessoas ciganas tem aumentado desde que surgiu o partido Chega. "O Chega é que está a mexer muito com isto. Sempre houve pessoas contra, mas agora há mais. Estavam escondidas", lamenta.


"O Chega é que está a mexer muito com isto. Sempre houve  pessoas contra, mas agora há mais. Estavam escondidas", lamenta Prudêncio Canhoto, Presidente da Associação de Mediadores Ciganos. Foto: Ricardo Fortunato/RR
"O Chega é que está a mexer muito com isto. Sempre houve pessoas contra, mas agora há mais. Estavam escondidas", lamenta Prudêncio Canhoto, Presidente da Associação de Mediadores Ciganos. Foto: Ricardo Fortunato/RR

De acordo com o mediador, já nem a Câmara Municipal está a dar emprego aos ciganos, como chegou a acontecer em anos anteriores. Prudêncio lembra que a autarquia também já não tem mediadores para ajudar na integração da comunidade.

Prudêncio avisa que o bairro construído em 2006, com meia centena de casas térreas, há muito que deixou de ter condições para tanta gente. O mediador afirma que, além das casas, há mais uma centena de barracas no bairro e que devido às famílias numerosas já lá vive uma média de mil pessoas.

O mediador lamenta a falta de investimento da autarquia e defende que parte dos fundos para a habitação deviam destinar-se aos problemas no bairro. Defende ainda que seria uma boa alternativa começar a integrar algumas famílias na cidade, colocando-as em casas no centro de Beja.

Já o atual presidente da Câmara, Paulo Arsénio, — que se recandidata, pelo PS —, confirma à Renascença que não houve investimento no bairro nos últimos anos, mas realça que, face à sua dimensão, a autarquia não tem capacidade para enfrentar o problema e defende a intervenção do estado central.


Paulo Arsénio reconhece que, através dos fundos europeus, a autarquia poderia investir até 25 milhões de euros em habitação até março de 2026. Contudo, indica que desse valor foi contratado com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) apenas um investimento de 200 mil euros em edifícios no centro de Beja, destinados ao mercado de arrendamento acessível.

Comunidade cigana une-se para decidir em quem votar

No bairro das Pedreiras, Luís garante que toda a comunidade vai participar nas eleições autárquicas de 12 de outubro. O responsável pelo bairro vai reunir-se com responsáveis das restantes comunidades do concelho para decidir o voto.

Há um acordo entre todos e depois o que for decidido é transmitido aos restantes membros das comunidades. "O que eu lhes disser eles fazem", afirma.

Nos próximos dias, Luís terá ainda que arranjar a Ford Transit avariada que tem estacionada à porta da barraca. É o meio de transporte que vai utilizar para levar todos os idosos a votar no próximo domingo. E o responsável pela comunidade garante que todos vão votar, mesmo os mais jovens — que normalmente "vão a pé".

Ainda com o voto por decidir, Luís dá a garantia de que não será no Chega.


Artigos Relacionados